HIRONDINO GARCIA EMPRESÁRIO E PRESIDENTE DA PRESTÍGIO ANGOLA

“O angolano está habituado a cruzar os braços”

Hirondino Garcia vem de uma família humilde e subiu a pulso através de pequenos negócios precários no antigo ‘Roque Santeiro’. Daí ‘pulou’ para um ‘império’, cujo investimento andará à volta dos 200 milhões de dólares. Critica a corrupção e os angolanos habituados a ‘esticar a mão’ em vez de arregaçarem as mangas e trabalhar. Apoia as medidas de João Lourenço, mas está contra a construção de grandes obras, como o aeroporto, dando como alternativa a aposta na saúde e na educação.

 

“O angolano está habituado a cruzar os braços”

A Prestígio surge com desertores da Associação de Jovens Empresários de Angola. Quais foram as motivações?

A Liga de Empresários Executivos de Angola (Prestígio) nasce em 2000, depois de boa parte dos seus membros se ter retirado da AJEA (Associação de Jovens Empresários de Angola). Na altura, entendemos que os passos a percorrer eram mais promissores e, então, havia a necessidade de nos demarcarmos de algumas posições com as quais não corroborávamos. Daí a necessidade de criarmos a Prestígio.

Que posições são essas?

Havia a necessidade de sermos uma organização forte, que fosse parceira do Estado.

Não era mais fácil encontrar isso na AJEA que já estava erguida, praticamente com o mesmo objectivo?

Não sentimos isso na AJEA. Então tomámos um novo rumo. Já lá vão 18 anos, acho que atingimos a maioridade e agora sentimos que, com os próprios pés, podemos caminhar cada vez mais fortes para ajudar no crescimento económico do país.

Sentem-se prestigiados?

Sentimo-nos prestigiados, numa altura em que o país parte para o empresariado sem alguma matriz do passado. Porque não trazíamos qualquer experiência, éramos todos novos, precisávamos de começar. Então, para nós, foi um prestígio fazer parte daqueles que foram pioneiros do empreendedorismo e do empresariado em Angola. Foi através da liga que surgiram as maiores empresas como a Arosfran, a transportadora SGO e a Tuclepa, que deu lugar a Air 26, só para citar estas.

Que avaliação faz do estado da economia?

Angola está, infelizmente, no início da sua actividade económica. Vivemos anos bons entre 1990-2012, em que vimos a economia a crescer todos os dias até à altura em que as coisas começaram a caminhar mal. Angola entrou numa crise terrível e nós, os empresários, sentimos na pele. As economias são alavancadas particularmente com o desempenho das empresas que mais empregos devem criar em países de mercado aberto.

Respondeu sem, no entanto, dizer em que estado se encontra a economia.

Com a crise que abalou o país, vimos o curso das coisas inverter-se negativamente. Mas hoje vislumbramos no fundo do túnel o que pode vir a ser uma economia nascente. Com as mudanças que vão sendo operadas, começamos a perceber que é possível sair do apuro.

Como acha que se pode sair do “apuro”?

Apesar das dificuldades no que toca ao acesso às divisas, que fazem parte da nossa vida, porque vivemos das importações, é preciso ultrapassar isso com o recurso à produção virada para o mercado interno e exportar. O que falta é empenho para que as coisas aconteçam.

Há quem defenda que o ‘boom’ da economia a que se referiu não se reflectiu na vida do cidadão. Concorda?

Teve impacto de alguma forma. Na época em que o país viveu o crescimento económico, o cidadão vivia melhor do que hoje. Portanto, qualquer um que necessitasse ia ao estrangeiro sem muitos sobressaltos. Os angolanos, mesmo os de baixo rendimento, viajavam em grande número para a China, Dubai, EUA e outras paragens, em busca de mercadoria ou de tratamento médico.

Ou seja, havia dinheiro para todos, no caso divisas…

Dizemos sempre que dinheiro não é felicidade, mas o mundo gira à sua volta.

Onde o país falhou?

Temos por hábito de colocar a faca nas costas do Estado, mas nós, enquanto cidadãos, precisamos de mudar. Não é possível continuarmos a exigir mudanças se não formos capazes de mudar. A nossa atitude perante o país tem de ser completamente alterada.

De que está a falar concretamente?

Estou a falar de todos nós. Temos de trabalhar, de facto. Não devemos deixar que o nosso espaço de trabalho seja o tempo todo ocupado por estrangeiros. O angolano está habituado a cruzar os braços. Inclusive o pequeno negócio está nas mãos de estrangeiros. Isto não é normal e não dá para entender. É muito cómodo estar em casa e todos os meses receber 20 a 30 mil kwanzas do arrendamento, enquanto alguém gere uma cantina no seu quintal. Somos nós que devíamos gerir o nosso negócio. Estamos desorganizados e não temos cultura de trabalho. É por isso que faliu o programa de crédito ‘Bue’. Muitos receberam dinheiro e não conseguiram rentabilizá-lo nem sequer devolveram o crédito.

Mas essa não é a principal razão para o país estar mergulhado nesta grande crise económica?

A crise existe porque nos portámos mal. As pessoas não foram capazes de se organizar, deixando que o país pudesse crescer. Um grupinho de indivíduos dividiu as riquezas do país. Esse é o grande motivo da actual ‘calamidade’ financeira.

Nesta altura de crise, justificam-se projectos milionários como o da nova marginal ou do novo aeroporto de Luanda?

Não posso entender projectos desta natureza. Não é o momento certo, porque há coisas que fazem mais falta como a saúde e a educação. Essa questão dos aeroportos, incluindo esta nova infra-estrutura no Bom Jesus, passou por um estudo prévio, mas, neste momento, as estradas é que são prioritárias para permitir a circulação de pessoas e bens. Julgo que esses ‘elefantes brancos’ são feitos para permitir o desvio de fundos públicos e é isso que provoca as ‘derrapagens’. É a partir daí que se viu a crise, com obras de grande envergadura que depois acabam não tendo nem sustentação, nem viabilidade. São estes problemas que devemos evitar.

Mas o país precisa de um aeroporto de maior capacidade, até a olhar para o futuro. Não concorda?

É preciso olhar de várias formas o tempo em que as coisas vão acontecer para permitir a boa aplicação dos recursos financeiros. Devemos ter capacidade de identificar as coisas que mais nos fazem falta, como é o caso da saúde pública e da educação, da tranquilidade em que as pessoas possam circular livremente sem problemas da criminalidade do nível a chegámos. O país precisa de se solidarizar consigo mesmo. Isso tem de acontecer. Não devemos continuar a estender a mão para que outros venham solidarizar-se com os angolanos. Precisamos do apoio de outras nações que venham ajudar-nos a pescar e não a dar-nos o peixe. É preciso preparar o futuro. Dentro de pouco tempo, estarão aqui novas gerações que devem ser mais felizes do que nós. Os angolanos devem olhar para o país com mais seriedade.

É isto o que a nova direcção do país demonstra?

A nova direcção do país mostra-nos esse caminho, mas todos devemos estar alinhados para que cada um se empenhe dentro daquilo que é capaz de fazer.

É favorável às medidas que vêm sendo tomadas pelo Presidente João Lourenço?

Com certeza, estou bastante aliviado. Estou a viver uma fase de alguma certeza, sinto alguma credibilidade no processo, no alinhamento dos governantes e percebo que devemos estar unidos em torno do ‘projecto Angola’. Se seguirmos todos na mesma direcção, o país consegue progredir e os angolanos poderão viver melhor.

E sobre o combate à corrupção?

Não corroboro com corruptos e encorajo o Presidente João Lourenço para que seja implacável neste combate e ponha na cadeia às pessoas que insistirem nessa prática.

Pode apresentar em números os seus investimentos em Angola e em Portugal?

Não gosto muito de falar em dinheiro, porque fiz uma volumosa aplicação. Mas, grosso modo, os investimentos estarão acima dos 200 milhões de dólares.

Angola é dos países da SADC com notáveis fraquezas no seu desenvolvimento. Fala-se muito da diversificação económica, mas os resultados ainda são muito tímidos…

As pessoas ainda não interiorizaram que é preciso diversificar. Alguns ainda sonham com o enriquecimento fácil, apostando na importação. Há pessoas que não estão a permitir o crescimento da agricultura. Os agricultores e camponeses devem ter acesso aos fertilizantes e sementes sem os habituais constrangimentos.

Quem trava a agricultura?

É preciso acabar imediatamente com o monopólio da importação de insumos para o sector agrícola. Uma só entidade não deve importar para todo o país. Isso não abona a favor da diversificação económica.

Há programas em curso, como o Prodesi. Outros ainda apontam o caminho da industrialização na criação de zonas francas. Concorda?

O Prodesi é mais um projecto a ser experimentado, mas o país não deve continuar à espera dessas experiências. Precisamos de avançar com projectos concretos que nos façam perceber que, mais adiante, teremos milho, arroz, enfim, produtos da cesta básica dos quais depende a sobrevivência do cidadão.

Foram aprovadas as leis da Concorrência e do Investimento Privado e o investidor estrangeiro terá, em breve, o visto do investidor. Que análise faz desses diplomas?

Estou preocupado com a implementação, não com a aprovação. Essa questão da Lei do Investimento Privado, por exemplo, vem de longe e temos sido consultados na elaboração. Leis e decretos em Angola temos do melhor. A maka está na aplicação para que sejam úteis aos angolanos.

Que horizonte traça para o relançamento da economia?

Não devemos apenas criticar, mas fazer a nossa parte, trabalhando. Se assim for, dentro de cinco a 10 anos, o país muda. Mas melhorias substanciais levam muito tempo.

O país está endividado com a China, Brasil, Rússia entre outros países e negocia mais um crédito na ordem de quatro mil milhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional (FMI). São dívidas ‘saudáveis’?

Não diria ‘saudáveis’, mas é o que o Estado achou conveniente e sem perceber quais as razões e para onde querem levar o país, ainda é cedo para avaliar.

Como vê o sistema de formação de quadros?

Temos quadros em quantidade, mas o grande problema é a qualidade. Se quisermos desenvolver o país, temos de olhar com muita seriedade o sistema de ensino. É preciso olhar de forma criteriosa para o ensino profissional porque o país não se faz apenas com quadros superiores. Recebo invariavelmente currículos de jovens à procura de emprego e noto que todos têm a mesma formação: ciências jurídicas e económicas. Os ‘cybers’ têm já modelos pré-elaborados desses currículos. É tudo uma grande confusão. Há que apostar na formação profissional que tem um maior nível de empregabilidade. Em Portugal, por exemplo, conheço várias pessoas bem preparadas tecnicamente que trabalham na restauração. É a profissão do amor. Aqui muitos pensam que é desprestigiante. É importante que percebam que têm de se capacitar e isso não implica que corram todos para as universidades aonde apenas vão à busca do ‘canudo’ com o qual depois não fazem nada.

O país não está a formar nada?

Claro que não, porque o nível é extremamente baixo. Infelizmente, destruiu-se aquele sistema de ensino em que, depois da 4.ª classe, o indivíduo estava pronto para ingressar no mercado do trabalho. Por vezes, preocupamo-nos muito com a energia, estradas, água. Faz sentido. Isso é importante, mas, no meio de tudo isso, o mais importante é o homem. O país tem de deixar de ser a ‘clínica de doutores’. É preciso criar uma escola que forme homens de verdadeira instrução e educação.

HIRONDINO GARCIA, nasceu “infelizmente”, em Luanda, em 1962, porque gostaria de vir ao mundo de outro local do país e não com “muita confusão”. Actua na restauração, mas os seus negócios vão desde a construção civil, passando pela agricultura e imobiliário. Em Portugal, está ligado à produção de vinhos. A sua ascenção nos negócios inicia-se em 1991, no extinto mercado ‘Roque Santeiro’ com uma mala de peixe. “Fui à procura da vida, hoje sou um empresário satisfeito com a minha actividade. Não sou do grupo dos que recebeu benefícios. Em vez de ir buscar dinheiro, primeiro fiz”, afirma, acrescentando: “As pessoas continuam a pensar que o Estado deve providenciar. O Estado apenas deve traçar políticas e criar um bom ambiente de negócios”. Desafiou a universidade. Sem licenciatura, entrou e fez com distinção o mestrado em marketing, em Espanha. É também filantropo.