ANGOLA GROWING
RUI SANTOS , PRESIDENTE DA SISTEC

“O Estado deve renegociar as linhas de crédito governo-governo”

O presidente do conselho de administração da Sistec diz que o quadro actual da economia pode ser a oportunidade para muitas empresas. Já sentiu a pressão do mercado cambial, mas espera facturar até final do ano 66 milhões de dólares, muito abaixo dos 110 milhões encaixados em 2014. Garante também que é preciso redefinir a contratação dos financiamentos externos para equilibrar o mercado de consumo. Não poupa a banca e afirma que o aumento do crédito malparado traduziu a confiança excessiva de algumas instituições financeiras.

É considerado um empresário de sucesso. Como avalia a situação económica do país?

O termo sucesso é relativo uma vez que a empresa que dirijo tem mais de mil trabalhadores. De facto, o sucesso é deles que, todos os dias, com o seu trabalho, fazem a Sistec. Sobre a situação do país, à semelhança do que aconteceu no passado, entendo que o que são dificuldades para uns pode ser visto como oportunidades para outros. Estamos, acima de tudo, a tentar fazer com que a situação actual do país seja oportunidade para nós. Está muito complicado, mas acho que vamos conseguir.

Qual lhe parece ser o maior desafio? Será a pressão do mercado cambial?

A Sistec sempre funcionou com fundos próprios, facto que nos deu alguma vantagem, pois não temos dívidas. Por outro lado, tínhamos um stock razoável, que nos permitiu enfrentar os últimos 18 meses com algum conforto. A situação, nos últimos meses, tende a melhorar no que diz respeito às importações. Entretanto, na empresa, accionámos os mecanismos de contingência e isso está a permitir assegurar a empresa. Ainda não se ultrapassaram as dificuldades, mas, se tudo continuar como até agora, ou melhor relativamente aos últimos seis meses, creio que conseguiremos reequilibrar as coisas. De momento, a empresa está focada em dois aspectos: primeiro, evitar despedimentos de pessoal e, segundo, conservar o património. Nos últimos tempos, esquecemos que há lucros e que há dividendos.

Além das questões cambiais, como o actual quadro macroeconómico está a afectar a actividade da empresa?

A Sistec é parte de um todo nacional. Desde 2014 tivemos reduções nas nossas vendas na ordem dos 50%. No sector tecnológico, fecharam muitas empresas, porque viviam da simples importação e venda e não conseguiram manter-se a funcionar. A Sistec tem várias áreas de negócios e tem uma componente de serviços que tem permitido funcionar com os níveis acima referidos. Simultaneamente, nos últimos seis meses, a situação das importações melhorou um pouco e foi garantido que o Estado estava a olhar para o sector com alguma atenção. De notar que começaram a existir carências, no país, de consumíveis, licenças antivírus, licenças de ‘software’. Isto pararia muita coisa, se a situação continuasse.

Quanto espera facturar este ano?

Este ano esperamos facturar 60%, o que corresponde a 66 milhões de dólares, relativamente a 2014 em que tivemos uma carteira de facturação de 110 milhões de dólares.

Referiu que a Sistec sempre funcionou com fundos próprios, sendo que é também importadora, nunca recorreu a empréstimos?

Nunca precisei de financiamento bancário. Vai ao banco quem precisa, a Sistec nunca o fez e penso que não o fará assim tão cedo. No ‘business plan’, temos de definir a nossa estratégia em relação ao projecto a financiar. Quando achamos que são projectos de difícil cobertura, então recorremos à banca.

A banca deveria apoiar mais as empresas?

A banca tem dois problemas sérios em Angola: no primeiro plano, o problema do crédito que foi atribuído com falta de garantias ou com garantias sobre-avaliadas em função da irrealidade económica que estávamos a viver e, em segundo, uma postura de muitos devedores. Os bancos mais avisados não se empolgaram com valorizações e aguentaram-se. Outros não o fizeram e estão agora com colaterais nas mãos que representam uma fracção dos valores emprestados. Por outro lado, existe, na banca, um problema sério que é o facto de os bancos terem alternativa de negócio em dois sectores onde o risco é mínimo. Mais concretamente no lucro na venda de divisas e nos empréstimos ao Estado com bons juros. Estes dois fenómenos provocam um certo desinteresse nos bancos em fazerem empréstimos a projectos. Por que razão vão os bancos emprestar dinheiro com risco, se conseguem pagar os seus custos e ainda ter resultados positivos por vias menos arriscadas?

O que defende para equilibrar o mercado do crédito?

Os bancos têm de reequacionar o seu papel e verificar como poderão ser verdadeiros parceiros da economia. Sei que é difícil e sei que a grande maioria dos projectos apresentados aos bancos não tem estudos credíveis de viabilidade e que, em muitos casos, se pode mesmo dizer que o empresário que apresenta o pedido, logo que o obtém, a primeira coisa que faz é comprar um Lexus e um gabinete cheio de frescuras. Os bancos têm de saber separar o trigo do joio e passar a financiar mais a economia, assumindo mais riscos. Ao mesmo tempo e talvez mais do que os bancos, é preciso uma política fiscal justa. O actual sistema fiscal angolano, de certa forma, cópia o sistema europeu, torna o Estado como sócio automático do projecto onde as receitas em tesouraria vão cair em ‘cash’ e sem risco. Isto faz com que muito poucos empresários funcionem com dinheiro seu e procurem um banco para financiar. Assim, se conseguirem o financiamento, se as coisas não correrem bem, quem fica com o problema é o banco e não o empresário. Se o sistema fiscal for universalmente justo - existem formas de o fazer - o investidor nem precisa de banco.

Para além da questão fiscal, que medidas poderiam inverter a conjuntura económica actual?

Angola sofre com o problema das reservas internacionais líquidas directamente relacionadas com o Orçamento Geral do Estado (OGE) e com o funcionamento das empresas que dependem de divisas para desenvolver a sua actividade. O país assumiu compromissos internacionais nos últimos anos, ou melhor, contraiu empréstimos, de acordo com o OGE de 2015, correspondentes a cinco mil milhões de dólares que têm de ser reembolsados anualmente, o que corresponde a 500 milhões de dólares pagos mensalmente. Note que esse valor em dólares e o seu correspondente em kwanzas tem de ser debitado da conta do Tesouro Nacional. Aquilo a que se assiste muitas vezes é que o Tesouro tem menos kwanzas porque a receita fiscal ainda é diminuta. Por outra, as divisas são necessárias para o dia-a-dia do país, sendo que todas as empresas precisam de as usar para comprar mercadorias e pagar serviços. Tendo em conta estes factos, creio que, para inverter o quadro, existem duas soluções que se impõem: primeiro, estender o prazo de pagamento das dívidas assumidas por mais alguns anos, no sentido de que os cinco mil milhões de dólares pagos anualmente sejam amortizados sem custos adicionais, segundo, lutar para reduzir as importações.

Sente que aumentou o pessimismo empresarial em Angola?

Angola estava a viver uma realidade que não é nossa. O ‘boom’ que tínhamos era irrealista e havia excesso de optimismo. Repare-se nos prédios gigantes que estão espalhados pela cidade de Luanda, projectos imobiliários de necessidade questionável que se implementaram... O que estamos a assistir, neste momento, é a um ‘reset’ (reinício) da economia para a colocar no seu lugar correcto. Tínhamos hotéis em que a dormida chegava aos 400 dólares, uma refeição 100 dólares. No segmento da habitação, as rendas rondavam os 20 mil dólares e, quando uma empresa requisitasse um consultor, não pagava menos de três mil dólares. Tudo isto era irrealista. As coisas vão agora cair para o seu valor real. Vamos sofrer um pouco com este reajuste, mas esta é a nossa realidade e é com isto que temos de viver.

E como se pode dinamizar o sector empresarial e aumentar a competitividade?

Quanto à dinamização das empresas, há sectores que irão crescer, nomeadamente a agricultura, minérios fora dos petróleos, diamantes e alguns serviços. Quando se tenta brincar administrativamente com a economia, ela ajusta-se naturalmente quando chega o momento. Foi assim na primeira República e será assim agora. Durante o processo de ajustamento, haverá empresas que vão fechar, pessoas que vão perder os empregos, eventualmente algum aumento de criminalidade e talvez algumas convulsões momentâneas. Mas depois tudo se estabiliza e as coisas começam a funcionar normalmente.

Como evitar o encerramento de mais empresas?

Não há como resolver isso. A economia está a fazer o ‘reset’ e o nivelamento para a sua realidade verdadeira. Angola não tem desempregados. Isso é mais um número que os economistas e os estrangeiros nos impingiram. Num país com 1,2 milhões de quilómetros quadrados de terra fértil, 1.435 quilómetros de costa super-fértil, apenas 25 milhões de habitantes, só não trabalha quem não quer. O desempregado, pelos parâmetros atrás referidos, é medido como emprego tradicional nas cidades. Essa forma de medir o emprego terá de ser alterada.

Que avaliação faz da subida dos preços dos produtos alimentares?

Enquanto não se tomar uma decisão de travagem de importação de comida usando as divisas do Estado, não vamos nunca conseguir travar os preços dos produtos alimentares. Sendo o grosso dos produtos alimentares importados eles serão sempre um reflexo da carência de divisas do país onde a variação será apenas o chamado ‘coeficiente de cagaço’ do mercado em relação ao câmbio oficial.

A propósito, como deve ser alavancado o sector produtivo?

Uma política fiscal justa irá buscar investimentos nacionais e estrangeiros em todos os sectores. A política fiscal não deve necessariamente estar alinhada ao factor dinheiro, como acontece em Angola, e sim ao desenvolvimento. Basicamente, posso apontar algumas realidades. A redução do imposto para as empresas que mais empregam e, em segundo, quanto menor for o grau de dificuldade na obtenção do lucro, o imposto deve ser também reduzido.

A quem atribuir responsabilidades do clima económico que se vive?

Não existem culpados, ou melhor, todos somos culpados. Se quisermos ir mais a fundo na determinação de um dedo que possa ser apontado, podemos talvez dizer que houve alguma falta de atenção para o perigo das linhas de crédito contraídas e a forma como foram negociadas, assim como a aceitação de regras, normas, leis e princípios de gestão adoptados. Com este quadro novo, Angola teve de importar quadros. Com o ‘empolanço’ da economia, esses quadros custam os ‘olhos da cara’ em divisas. Finalmente, e se quisermos apontar mais um dedo, não acredito que os países que são hoje credores de Angola não soubessem que estavam a armadilhar a economia angolana.

Questiona a forma como alguns créditos foram negociados. Mas há quem considere o aumento do endividamento externo incontornável...

Não me parece. Parece-me, entretanto, que o Banco Nacional de Angola (BNA) não deve deixar as Reservas Internacionais Líquidas descerem abaixo dos 24 mil milhões de dólares. Acho que isto é possível se o preço do petróleo se mantiver acima dos 45 dólares. Por outro lado, é importante que o Estado consiga renegociar as linhas de crédito ‘governo a governo’ e que não assuma mais compromissos destes. Ainda assim, que se adopte uma política fiscal justa em linha com o desenvolvimento em vez de estar em linha com a colecta.

A moeda chinesa entrou no mercado internacional como divisa transacionável. Até que ponto isto vai beneficiar ou não o mercado angolano que carece de divisas?

Não sei, sobre a matéria, o suficiente para me manifestar. Acho apenas que, para que Angola mude o seu paradigma económico-internacional, terá de rever em 180 graus tudo o que faz no mercado internacional. Bancos correspondentes, mercados, relações sociais e muito mais. Isso poderia ter consequências políticas muito complicadas e de gestão muito difícil. Não vislumbro, portanto, que possamos beneficiar muito neste aspecto.

Como vê encerrar o exercício de 2016, quando há projecções que colocam o crescimento económico em 0%?

Os economistas gostam de colocar esses rácios, mas a economia funcionará como tem sempre acontecido. Os economistas ignoram sempre o mercado paralelo que se ajusta rapidamente a qualquer realidade. O mercado convencional terá uma redução na fasquia de 40% em relação a 2014, em linha com o que aconteceu em 2015. De qualquer forma, esta questão da economia não se pode resumir a um rácio e a uma linha numa entrevista... O sector alimentar, por exemplo, irá crescer bastante.

O que pensa ter faltado às autoridades para evitar o ‘colapso’ da economia?

Acho que não se pode, verdadeiramente, dizer que faltou algo às autoridades. Num cenário de euforia e economia empolada, é difícil resistir à tentação de se projectar coisas. Quando muito, acho que faltou a velha regra de ‘no tempo das vacas gordas, poupa para que, no tempo das vacas magras, tenhas’.

A crise actual era previsível?

Era previsível. Esta é a quarta que vivemos depois da independência. Se contarmos com o anterior à independência esta é a quinta. Mas, repito, há coisas que acontecem que são difíceis de gerir devido à inércia com que os governos funcionam.