ANGOLA GROWING
DIÓGENES DE OLIVEIRA

“O INADEC não deixará de fiscalizar o mercado de consumo”

29 Sep. 2020 Grande Entrevista

Numa altura em que se perspectiva a actualização da Lei de Defesa do Consumidor, o director do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor, Diógenes de Oliveira, aponta as necessidades de revisão do diploma. E explica de que forma o Inadec deverá manter a fiscalização do consumo, apesar da previsão do surgimento de uma ‘entidade única inspectiva’.

“O INADEC não deixará de fiscalizar o mercado de consumo”
D.R

Comecemos por questões conceptuais. Como deve ser interpretado o direito do consumidor?

O direito do consumidor está ligado a tudo aquilo que vemos ou consumimos no dia-a-dia. Começando pela nossa alimentação, bebidas, transportação, saúde, educação e demais prestações de serviços. Ou seja, a relação de consumo é transversal. Logo, advogar que sejamos bem atendidos no processo de adesão destes produtos ou serviços é uma interpretação clara do direito do consumidor. Segundo a actual Lei, é uma faculdade que se baseia na confiança e na protecção legal.

 

Há, entretanto, uma proposta de revisão da actual Lei de Defesa do Consumidor. Porquê?

Porque a actual Lei deixa algumas lacunas que permitem aos comerciantes ‘deambularem’ à volta da mesma. Por isso, precisamos de uma legislação forte e mais actualizada.

 

De que lacunas fala?

Por exemplo, a lei em vigor não especifica que, se um produto estiver próximo do prazo de expiração, deve ser retirado com antecedência da prateleira. A lei só fala em depois de expirar. Sobre as molduras de penalizações ou sanções em caso de infracção, não define as penas que devem ser aplicadas em função da sua gravidade. Ou seja, uma cantina que comete irregularidade igual a um supermercado tem as mesmas multas.

 

Essas insuficiências de natureza legal colocam-se também em relação ao comércio electrónico que, no nosso caso, acabou impulsionado pela pandemia?

Na verdade, hoje o comércio electrónico, ou em plataforma comercial, é um facto, mas, sobre isto, a lei vigente nada dita. Está pronta, entretanto, uma proposta de Lei de Defesa do Consumidor que, desde Março, tem estado a receber contributos significativos da sociedade. Esse novo instrumento legal deverá ajustar-se à realidade do consumidor nacional e actualizar algumas insuficiências na Lei n.º 15/03 de 22 de Julho, a Lei de Defesa do Consumidor.

 

Passemos para o INADEC. Como é a sua gestão?

A minha filosofia assenta-se numa liderança aberta, participativa, com comprometimento à causa e com nunca esmorecer diante de situações que, aparentemente, se apresentam estar vencidas. A nossa política, a princípio, passou por resgatar a confiança do cidadão nas instituições públicas, depois por servir o consumidor com justeza e, finalmente, por levar os problemas dos consumidores, que nos têm chegado, como se fossem nossos.

 

Há a ideia de que a defesa do consumidor não é suficientemente divulgada. Concorda?

O direito do consumidor no país, até há seis anos, não era tão divulgado. Dito de outra forma, a divulgação era deficitária, pelo que era mesmo desconhecido por grande parte da sociedade. Hoje, a realidade já nos mostra o contrário, há mais cidadãos atentos e que fazem valer esse direito, dever e obrigações, enquanto consumidores.

 

Quem mais reclama deve ser o consumidor das zonas urbanas. E o do meio rural?

Pelos números que possuímos, os consumidores que mais reclamam são aqueles que têm um nível académico mais elevado. Há juízes, professores, advogados, médicos, estudantes universitários, um pouco de tudo.

 

E nas aldeias onde o analfabetismo é elevado?

Reconhecemos que há consumidores, no interior do país, que não falam a língua portuguesa, por isso temos feito a divulgação do direito do consumidor através de campanhas radiofónicas e televisivas, com sensibilização em línguas regionais, como o Kimbumdo, Umbundu e Fyote. Ainda temos muito por fazer, mas a falta de recursos impede-nos de produzir ainda melhor. Temos poucos recursos humanos e financeiros para levar a cabo diversas actividades de sensibilização através da informação e educação, que é uma das responsabilidades legais que o Inadec deve cumprir e fazer cumprir. Aliás, só estaremos satisfeitos quando um cidadão puder, por si só, resolver os seus próprios problemas, enquanto consumidor, sem precisar da intervenção de um ente do Estado.

 

Como pensa ultrapassar a falta de recursos humanos?

A situação é preocupante. Actualmente, temos 133 funcionários a nível nacional, mas precisamos de mais recursos humanos, sobretudo nesta altura em que apregoamos a diversificação urgente da nossa economia. Isso passa necessariamente pela aceleração da relação de consumo, o que carece de fiscalização permanente. Existem províncias em que o Inadec é apenas representado por três ou duas pessoas. É o caso do Cunene, onde há apenas uma auxiliar de limpeza e o chefe, para servirem às populações dos seis municípios.

 

E que províncias têm mais insuficiências?

As províncias fronteiriças como Cabinda, Cunene, Kuando-Kubango, Lundas Norte e Sul, Moxico e Zaire, onde entram grandes quantidades de produtos, sobretudo alimentares, e não são fiscalizadas na sua plenitude.

 

O Ministério do Comércio e Indústria está ao corrente dessas preocupações?

Essas preocupações já são do conhecimento do órgão de superintendência. Também apresentámos os mesmos problemas aos Ministérios das Finanças, do Trabalho e Segurança Social para que, urgentemente, se possível for, se possa abrir um concurso público para a adesão de quadros para reforçar o Inadec.

 

Numa entrevista recente, o titular do Comércio e Indústria referiu-se à retirada da função de inspecção ao Inadec. O que isso representa?

Primeiro, deixe-me esclarecer o seguinte: o Inadec nunca inspeccionou por não ser sua competência fazê-lo. Agora, é verdade que, por força da Lei de Defesa do Consumidor vigente, o Inadec fiscaliza o mercado de consumo. E isto o Inadec não deixará de fazer. Dou um exemplo: o Decreto Presidencial n.º 234/16, que estabelece a obrigatoriedade de os estabelecimentos comerciais terem o selo e o livro de reclamação resguarda que o Inadec é competente para comercializar, fiscalizar e até sancionar. Mas não é por aqui que o Inadec se enquadra.

 

Então, onde se enquadra?

O Inadec tem carácter de fiscalizador da legalidade na relação de consumo, ou seja, tem a legitimidade de mandar retirar de circulação produtos ou bens que atentem contra os direitos do consumidor.

 

Mas também manda encerrar estabelecimentos comerciais…

Pode solicitar o encerramento de um estabelecimento comercial e concomitantemente a retirada da sua licença comercial ou alvará sempre que estiver em causa e/ou na eminência de se violarem os nossos direitos, enquanto consumidores. Além disso, o cidadão consumidor, por si só, também fiscaliza, só pelo facto de estar atento às irregularidades dos comerciantes.

 

No fundo, além de fiscalizar o Inadec também sanciona, certo?

Nós fiscalizamos o mercado de consumo, enquanto autoridade para o efeito. A fiscalização é um acto que todos nós, enquanto consumidores, temos feito reiteradas vezes, como, por exemplo, na verificação dos prazos de validade de um determinado produto e na exigência da qualidade no fornecimento de bens e serviços. A isso podemos chamar de fiscalização. Agora, a diferença é que o Inadec, além de fiscalizar, também lhe compete sancionar, situação que se achou prudente não efectuar mais, mas sim ficar a cargo de uma ‘entidade única inspectiva’. Aliás, outros aspectos também estão a ser analisados na comissão criada.

 

Admite, entretanto, que fica esvaziado o papel do Inadec?

O Inadec não deixará de fiscalizar, só que a acção sancionatória ficará a cargo da entidade inspectiva que está a ser criada. Uma das políticas assertivas que esta direcção advoga é a educação, ou se assim podemos chamar, a ‘literacia para o consumidor’. De todas as formas, já temos feito constantemente a educação para o consumidor. Sempre defendemos que um povo instruído é uma mais-valia para qualquer sociedade, como também se evita uma sobreposição de vontades ou práticas abusivas por parte do fornecedor.

 “O INADEC não deixará de fiscalizar o mercado de consumo”

“O TRABALHO DO INADEC É A CUSTO ZERO”

Com a retirada da componente sancionatória das competências do Inadec, pretende-se acabar com aquela ideia de o instituto, muitas vezes, se substituir aos tribunais?

Não existem magias nem segredos. Nós incutimos nos técnicos do departamento de medição e resolução de conflitos do Inadec o seguinte: primeiro, é sempre necessário fazer perceber ao fornecedor que ele também é consumidor. Segundo, mostrar às partes que a via extrajudicial é benéfica para as partes, porque poupa tempo, não se gasta dinheiro e mais: o fornecedor tem a possibilidade de credibilizar o seu negócio, mediante aquele espírito segundo o qual ‘com um consumidor satisfeito ganha mais 20 clientes e com um consumidor insatisfeito perde 100 clientes’. Por fim, é o comprometimento pela causa e a satisfação do dever cumprido.

 

Há alguma circunstância em que o consumidor ou queixoso tem de pagar os serviços do Inadec?

Não. Os nossos serviços não têm nenhum custo. Nem mesmo quando, infelizmente, temos de remeter um processo para o tribunal. Resumindo, o trabalho do Inadec é a custo zero.

Como vê a inexistência nos tribunais de salas específicas para dirimir conflitos de consumo?

Lamentamos não haver, nos nossos tribunais, salas específicas para dirimir os conflitos de consumo, apesar de o direito do consumidor ser especial, fundamental e parte integrante dos Direitos Humanos. O quadro tende, contudo, a mudar. Claramente, com o surgimento de salas específicas no futuro, a resolução dos conflitos de consumo tornar-se-á mais célere e as decisões daí emanadas terão outro pendor.

 

Qual é o balanço com a entrada do número 126 do call center?

A linha de consumo, como preferirmos chamar ou call center 126, é uma linha telefónica do Inadec criada para atender reclamações, denúncias, para dar informações e prestar apoio jurídico. Esta Linha é extensiva a todas as províncias e a chamada é grátis para as operadoras de telefonia Movicel, Angola Telecom e Unitel. Portanto, não há custo adicional para o consumidor. Nos primeiros 30 dias de funcionamento, recebemos 1.854 clamadas, com Luanda a corresponder 75% das chamadas e as restantes províncias 25%.

 

E quanto à resolução de conflitos?

A balança de resolução de conflitos é ainda bastante baixa, porque temos apenas 10 colaboradores no Departamento de Resolução e Mediação de Conflitos, por falta de técnicos e de cultura jurídica por parte dos consumidores. Muitas vezes, situações de simples resolução entre o fornecedor e o consumidor chegam-nos para o devido tratamento.

 

Sabe-se que os serviços da banca e da saúde têm sido muito contestados pelo consumidor…

Sim. A ineficácia desses serviços já tem criado conflitos preocupantes. Face a esta situação, no dia 15 de Janeiro deste ano, assinámos um protocolo com o CNEF – Conselho Nacional de Estabilidade Financeira, com o qual estamos a trabalhar em programas de sensibilização dos cidadãos em educação financeira. Infelizmente, a covid-19 desacelerou um pouco o trabalho, visto que este trabalho estava a ser feito nos mercados. Sobre a saúde também já se nota que o cidadão se preocupa em denunciar as irregularidades que comprometem a relação de consumo. Sobre este quesito, saúde, há muito por se fazer e isto não depende só do Inadec.

 

Por causa da pandemia, os taxistas, para compensar o limite de passageiros, encurtaram as rotas. Há reclamações persistentes da população. O que o Inadec pensa fazer?

É uma situação preocupante que merece uma análise cuidadosa, por não ser só um assunto do Inadec. Mas essa especulação é uma prática fraudulenta, é crime.

 

Que saída aponta?

Devemos, sim, resolver essa situação que preocupa a todos e uma das formas de resolver é olharmos para as nossas consciências, ou melhor, de cada cidadão. Devemos partir do pressuposto de que não se deve fazer aquilo que não gostaria que nos acontecesse.

 

Perfil

Natural de Luanda e licenciado em Direito, Diógenes de Oliveira foi ‘pescado’ da presidência da então “acutilante”  Associação Angolana do Direito do Consumidor (AADIC).  Autor de um livro com mais de 300 páginas sobre o direito do consumidor, o responsável do Inadec quer “resgatar a confiança do cidadão nas instituições públicas” e levar os problemas dos consumidores como se fossem dele.