Felizmina Lutukuta, vice-decana da Faculdade de Direito da UAN

“Os investidores internacionais têm receio das decisões dos tribunais internos”

13 Jul. 2021 Grande Entrevista

Com a obra recentemente lançada sobre a ‘Anulação de sentenças no âmbito do Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos (Cird)’, a académica chama atenção para as vantagens de o país aderir aoTribunal Arbitral Internacional, por se tratar de um mecanismo imparcial e confidencial.

“Os investidores internacionais têm receio das decisões dos tribunais internos”

Que a levou a escrever a obra ‘Anulação de sentenças no âmbito do Cird’?

Este livro tem como base uma tese de mestrado que fiz em 2003 e é publicado neste contexto em que Angola, no âmbito da sua diplomacia económica, está a criar mecanismos no sentido de atrair investimento estrangeiro.

É, portanto, uma obra contextualizada ao momento?

Decidimos que seria o momento oportuno publicar este livro em Angola, uma vez que o Estado angolano estava a criar os mecanismos para a aprovação da ratificação desta convenção na Assembleia Nacional.

Mas, no fundo, o que se pretende com a obra?

O objectivo é apenas de chamar a atenção para o facto de existir este centro que se dedica à resolução de disputas entre os Estados que tenham ratificado a convenção do Cird e investidores de outros Estados que tenham ratificado esta mesma convenção. Portanto, o objectivo deste centro é só resolver disputas relacionados com o investimento.

“Os investidores internacionais têm receio das decisões dos tribunais internos”

Quantos casos terão sido levados ao Cird, entidade que conta com pouco mais de meio século de existência?

Desde 1966 à presente data, o centro já dirimiu mais de 700 casos, em 10% dos quais uma das partes pediu a anulação desta sentença. Vale aqui referir que uma das particularidades do centro é que a anulação das sentenças é feita no âmbito do centro. Ou seja, cria-se um comité ‘ad hoc’ e este, com base nos fundamentos apresentados, é que vai decidir se vai ou não anular a sentença. E a própria convenção diz quais são os procedimentos para se anular a sentença.

Angola está, de certo modo, atrasada na ratificação desta convenção…

Este centro tem como membros apenas os Estados e, embora tenha sido fundado em 1965, apenas no ano seguinte, ou seja, em 1966 iniciou a sua actividade. Angola, no dia 25 de Junho último, teve a autorização da Assembleia Nacional para o Estado ratificar esta convenção. Ainda não depositou a ratificação, mas já estão criados os mecanismos necessários para este efeito.

Isso ocorre num momento em que há reformas a fazer no próprio sistema judicial angolano…

Se o país está no bom caminho ou não? Temos legislação para regular diferentes sectores da nossa vida. Se estivermos a falar de economia, temos também mecanismos que tratam da administração da justiça. É bem verdade que, se formos para os tribunais nacionais, veremos que as decisões, por vezes, levam muito tempo, mas temos também, por exemplo, uma lei voluntária da arbitragem. E, neste momento, já há autorização para a ratificação da convenção para que Angola seja membro desse centro e também há uma legislação muito grande para regular diferentes aspectos económicos, como a lei da concorrência. Mesmo a nível da arbitragem, é importante mencionar que já ratificámos a Convenção de Nova Iorque de reconhecimento automático das sentenças arbitrais. Portanto, quando há uma decisão arbitral, já não há necessidade de pedir a execução da sentença nos nossos tribunais internos, porque isso ocorre automaticamente.

De concreto, quais são as vantagens de adesão ao Cird?

A arbitragem joga um papel importante. Os investidores, de uma maneira geral, no momento em que decidem investir num Estado, levam em conta, entre os requisitos principais, a certeza. Para investir, é preciso ter a certeza do que se vai encontrar. Não haverá surpresas.

No caso angolano, o risco de o investidor encontrar surpresas ainda é muito grande, não?

Ter um mecanismo como o Cird, para o investidor, é uma grande vantagem. Porque tem a certeza de que existe um centro robusto especializado e imparcial em disputas de investimento, em caso de litígio contra um Estado.

“Os investidores internacionais têm receio das decisões dos tribunais internos”

E qual é o enquadramento dos tribunais comuns internos?

Os tribunais domésticos aplicam as leis domésticas, ainda que estas vão contra as leis internacionais que protegem os direitos dos investidores. Os investidores vêm os tribunais judiciais internos, de uma maneira geral, como sendo pouco imparciais. Ou seja, têm receio que, em caso de litígio, sobretudo em casos mais sensíveis, se forem submetidos a um tribunal judicial interno, este vai decidir contra este investidor internacional.

O que quer dizer quando se refere a questões sensíveis?

Hoje em dia, estas questões têm que ver, por exemplo, com o ambiente. Imaginemos que haja um grande derrame de petróleo. Um caso destes, a ser resolvido num tribunal doméstico, o juiz, ao ver a sua flora e fauna afectadas, é claro que irá aplicar as normas internas de maneira que salvaguarde, ao máximo, o Estado e, assim, os interesses da comunidade de que faz parte. Por isso, ter um sistema como o Cird é importante também por causa daquelas questões que têm que ver com a competência territorial.

Como, por exemplo?

Quando há casos que ocorram num determinado Estado, de uma maneira geral, os tribunais deste é que serão competentes para dirimir esse litígio. Mas, se formos para um outro Estado, este pode contestar, dizendo que é incompetente. Logo, o Cird pode conhecer matéria que tenha acontecido entre estes Estados diferentes e aparece para mitigar esse tipo de situações. Aliás, assim, tendo um sistema como o Cird, os investidores deixam de ficar dependentes da protecção diplomática. Porque cabe aos Estados conceder ou não a protecção diplomática.

Há também a questão da morosidade dos processos…

Pois, há quem entenda, e muitos entendem, que uma das grandes vantagens se prende com o facto de a arbitragem ser um processo célere. Além disso, identificamos dois outros factores importantes: o primeiro é a imparcialidade e o segundo, a confidencialidade. Neste tipo de processos, em situações relacionadas com investimento, revelar as questões que fazem parte do processo, por exemplo, muitas vezes, levam a empresa a perder o seu valor económico. E esta confidencialidade é importante. Aliás, nos processos judiciais, as sessões estão abertas. De uma maneira geral, quem quiser assistir pode fazê-lo, mas, na arbitragem, não.

Mas esta questão da morosidade é ou não questionável?

O livro questiona esta celeridade, que é atribuída, de modo inquestionável, à arbitragem. Porque vemos aqui que, no âmbito do Cird, as partes podem pedir a anulação das sentenças e depois, com base em outros fundamentos, voltar a submeter os casos outra vez ao Cird. Isso faz com que haja processos, nesse âmbito, que tenham demorado mais de 10 anos. Mas também podemos entender que, se compzv             aramos o número total dos processos, face àqueles em que se pediu a anulação da sentença, a percentagem não justifica afirmar-se que este processo é lento. Aliás, a anulação de sentença pode ser vista como um mecanismo que efectivamente protege as partes, porque, se estas estiverem descontentes, e havendo fundamentos para isso, podem pedir a anulação, o que não acontece em outros processos arbitrais em que não há recurso a sentenças.

Como pensa que se pode estimular a atracção de investimentos numa economia como a angolana?

Reitero que a arbitragem pode ser vista como um mecanismo de atracção de investimentos, porque temos uma economia instável. Alegar um estado de precariedade, em termos de ambiente de negócios, não pode ser questão, mas, havendo um tribunal arbitral, fica garantido que, em caso de um eventual litígio, há um órgão que irá decidir com independência e imparcialidade. Hoje em dia, os nossos juízes decidem matérias para as quais não têm conhecimento técnico, por isso é que recorrem a peritos. Logo, é diferente do árbitro que já conhece a matéria e, para decidir, não depende do parecer de um perito.

Estes peritos existem por cá?

A arbitragem, infelizmente, ainda não é bastante conhecida. Seria benéfico ajudar a divulgar este mecanismo. Temos, por exemplo, a MG Advogados que todos os anos faz uma conferência anual de arbitragem e, inclusive, faz concurso em que simulam o tribunal internacional de arbitragem com estudantes de Direito. É um dos mecanismos que ajudam a divulgar e promover esse instrumento de resolução de litígios. Mas é preciso divulgar mais, porque para os investidores que procuramos atrair, nos seus países de origem e lá onde investem, a arbitragem já é um mecanismo bastante usual nos seus contratos.

E qual é a relação que se pode estabelecer entre a arbitragem e a luta contra a corrupção?

A arbitragem, de uma maneira geral, lida com questões de investimentos. Não tanto com o combate à corrupção e  branqueamento de capitais. Em regra, quando há esses temas, os próprios Estados preferem submeter essas questões aos tribunais judiciais.

E o que pensa do combate à corrupção. Parece-lhe bem conduzido?

A corrupção não é benéfica ao desenvolvimento dos países. Assim sendo, os Estados devem combater este mal que existe. Relativamente aos mecanismos, foram criadas leis para este efeito e é uma decisão que o nosso Estado tomou.

No caso angolano, fala-se de selectividade neste combate…

Isto já são opiniões da selectividade no combate à corrupção. O que tenho a dizer é que a corrupção, com a magnitude que, muitas vezes, escutamos, não contribui para o desenvolvimento do país.

Na sua opinião, que reformas devem ser feitas ao sistema judicial?

Há reformas a fazer. Não faço parte de nenhuma comissão de reforma da justiça, mas, por aquilo que tenho acompanhado, existem reformas: temos o código de processo penal que está em andamento e o código civil, porque, de uma maneira geral, os nossos códigos de base são muito antigos, vêm da época colonial.

Como olha para o sistema de ensino no geral e particularmente no caso do Direito?

Não vamos dizer que o nosso ensino é o melhor do mundo. Temos de reconhecer que muito trabalho foi feito e está a ser feito, mas que carece ainda de melhorias. Nós, na Faculdade de Direito, por exemplo, temos muitos dos nossos juristas, pessoas aqui formadas, que, neste momento, têm posições-chave no Governo, nos tribunais, no empresariado, etc.

O que pensa da qualidade ou da ausência dela?

Há espaço para melhoria, o que é efeito com maior investimento no ensino. Porque, sem investimento adequado, não é possível melhorar muito. Pode fazer-se o que é possível, mas não o ideal. É preciso investimento para os professores investirem na sua formação, investigarem e publicarem, e é preciso investimento para que os estudantes tenham acesso à bibliografia, isso custa dinheiro. É preciso investir na compra de revistas online, mas, para isso, é preciso computadores. As instituições podem ter vontade de ter boas bibliotecas, mas é preciso comprar revistas e livros, criar programas de permuta de estudantes e levá-los a ambientes exteriores, nomeadamente, a competições de nível internacional. 

Ao nível da Faculdade de Direito, há interesse nesta matéria?

Sim, já vamos tendo muitos estudantes com interesse nessa temática.

Como olha para o facto de muitos jovens estarem a abandonar o país, face ao agravamento das dificuldades económicas e sociais?

O custo de vida é, na verdade, muito desafiante. Precisamos de criar ferramentas para conseguirmos dar a volta a esta situação. É importante termos pessoas qualificadas e impulsioná-las a criar os seus próprios empregos. Aqueles que forem trabalhar para outrem devem estar efectivamente qualificados para dar resposta ao que é solicitado. As pessoas que estão a sair têm qualificação diferenciada. É importante tê-las aqui, porque este é o nosso país.  Temos de ter aqui empreendedores e pessoas qualificadas.

Aceitaria um convite

para o Governo?

Neste momento, é na universidade onde me consigo reencontrar. Gosto muito do que estou a fazer, ficar ao lado dos estudantes, transmitir conhecimento…