Sylvain Itté, embaixador de França em Angola

“Parei de dar visto de três anos por não haver reciprocidade”

Diplomata francês afirma que Angola não tem estado a cumprir um acordo bilateral, rubricado em 2015, para a emissão de vistos de trabalho de longo prazo, o que resultou numa resposta idêntica por parte do país gaulês. Em entrevista ao VE, Sylvain Itté diz existirem actualmente relações saudáveis entre os dois Estados, depois de crispações no passado e manifesta a total disponibilidade de França reforçar parcerias com Angola, sobretudo em áreas como a agricultura e o turismo.

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Angola tem, desde 2015, uma nova Lei do Investimento Privado que estabelece um montante até um milhão de dólares para o estrangeiro que pretenda investir no país. Como é que França, em particular, olha para esta situação. Essa Lei é ou não favorável a atracção de investimento?

Hoje não é favorável, mas a capacidade e potencial de Angola são muito favoráveis. O país tem muitos pontos positivos e atractivos que podem permitir um melhor desenvolvimento e fazer de Angola um país muito importante na região e em África. E nós acreditamos nisso. A França acredita nessa possibilidade de Angola se tornar num país de referência no continente. É por isso que estamos a trabalhar para esse desenvolvimento. A questão do investimento estrangeiro é algo que considero fundamental para a economia angolana, mas não é o governo francês, italiano ou o americano que vai decidir que empresas vão instalar-se em Angola. As empresas privadas instalar-se-ão em Angola a partir do momento em que considerarem positivas as condições de fazer negócio no país. O que podemos fazer, a nível da cooperação de país para país, é ajudar, informar e dar os elementos-chave a Angola para que, no futuro, possa atrair os investimentos estrangeiros. Não podemos colocar os bois atrás da carruagem. Temos de colocar as coisas como deve ser, no bom caminho e no momento certo. E, antes de falar de atracção do investimento estrangeiro, é necessário antes fazer-se o estudo de todos os elementos para se saber exactamente quais são as expectativas do mercado privado. Angola tem muitas potencialidades. Tem, por outro lado, estabilidade política, não tem problema de conflito interno. É um país que ainda tem um número de população razoável, de 25 milhões de habitantes. Angola é um país rico. Fala-se da crise, mas, na realidade, há muitos países no mundo que gostariam de ter uma crise como a que Angola tem. É um país que ainda tem petróleo, que é uma capacidade financeira importante. Portanto, são todos pontos positivos.

O novo Governo do Presidente João Lourenço promete “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. Acha que o investimento estrangeiro deveria ser um desses assuntos a ser corrigido?

O Presidente João Lourenço fez menção a isso no seu discurso sobre o ‘estado da Nação’. Disse, em resumo, que há muitos pontos por resolver para permitir as empresas efectuarem investimentos numa situação positiva neste país. Seja a questão fiscal, seja a questão do repatriamento do dinheiro, precisam de ser corrigidas. Há também a questão da formação profissional. Isso não pode ser considerado uma questão de baixa intensidade e importância. O Estado não pode contar só com as empresas para fazer a formação dos empregados. Na fase em que o sector petrolífero gerava muito dinheiro, podia gastar-se dinheiro para a formação profissional das pessoas a nível local. Mas isso não vai funcionar com os outros sectores da economia. Não é o investidor francês, por exemplo, que virá a Angola investir numa cadeia de hotéis que tem de fazer a formação profissional dos seus empregados. Isto tem de ser também sobretudo uma responsabilidade do Estado. E, nos encontros que tenho mantido com as autoridades angolanas, tenho manifestado a nossa disponibilidade para ajudar, compartilhar e a acompanhar o Governo a definir as suas prioridades, a definir os pontos que nos parecem importantes focalizar para melhorar a capacidade de Angola para atrair mais investimento estrangeiro.

O processo de emissão de vistos por parte das autoridades angolanas é algo muito contestado também pelos investidores. Como é que a França avalia essa situação, em particular?

No que se refere, por exemplo, ao turismo, hoje para um estrangeiro visitar Angola é algo quase impossível. Para obter um visto, o estrangeiro vai ter um percurso de combatente. Vai ter de passar várias horas no consulado para colocar as suas impressões digitais e terá de pagar cerca de 400 euros para um visto de turista. Então significa que uma família de quatro pessoas vai pagar 1.400 euros só para ter um visto para entrar no país. Esta é uma questão. A segunda questão é que, mesmo havendo um acordo de cooperação, como o que a França tem com Angola, os acordos não se cumprem. A França assinou um acordo com Angola para permitir que os homens de negócios franceses e vice-versa pudessem ter um visto de circulação para um período que vai de um a seis anos. Mas esse acordo, firmado em Fevereiro de 2015, portanto há mais de dois anos, não está a ser cumprido pela parte angolana. Não está a resultar. A França, tendo em conta esse acordo, estava a dar visto de três anos para negócio e para executivos angolanos, mas do lado angolano não se cumpre. Então, eu parei de dar visto para os angolanos de três anos, porque não há reciprocidade. O Ministério das Relações Exteriores, o embaixador de Angola em França, o cônsul geral de Angola em França têm boa vontade. Fazem de tudo para permitir que esta questão seja resolvida, mas infelizmente, desde há um ano até hoje, Angola só autorizou a emissão de um único visto para um executivo francês. E o preço do visto é de 1.200 euros. A embaixada de França pede aos angolanos 90 euros para um visto de três anos e Angola está a pedir entre mil e 1.400 para um visto de três anos. Não dá!

Há algum tempo falava-se na existência de crispações na relação entre Angola e França. Essa situação persiste?

Está totalmente ultrapassada. É uma história que agora faz parte do passado das relações [entre os dois países]. Portanto, tratou-se apenas de uma crispação e não de uma briga séria. Havia alguns motivos, que não vale a pena evocar, mas agora é um assunto que realmente está ultrapassado. O Presidente Sarkozy veio a Angola em 2008, o ministro das Relações Exteriores francês veio em 2013, o Presidente dos Santos fez uma visita a França em 2014 e o Presidente Hollande fez uma visita a Angola em 2015. Portanto, a fase de crispações, de dificuldades nas relações, está totalmente ultrapassada. Faz um ano que trabalho como embaixador em Angola e noto que existe realmente um sentimento de boa vontade por parte de Angola cooperar com a França em vários domínios. E esse sentimento já foi notável durante a liderança do Presidente dos Santos e seu Governo e continua notável com o novo Presidente João Lourenço que foi recebido pelo Presidente Macron no mês de Julho.

E que assuntos foram abordados no encontro mantido entre João Lourenço e o Presidente francês Emmanuel Macron?

Sabe que não é comum o Presidente Macron receber um ministro, sobretudo um candidato a Presidente. O Presidente Macron quis mostrar a vontade de França e do seu Governo de trabalhar e considerar Angola como um parceiro. Foi um primeiro contacto que serviu principalmente para conhecerem-se e para tratar também de assuntos fundamentais que existem entre os dois países. Tenho certeza de que o Presidente Macron gostou muito de ter reunido com João Lourenço. Acho também que João Lourenço gostou desse encontro.

Na altura, João Lourenço era apenas o ministro da Defesa e agora é o novo Presidente da República de Angola. Este novo cenário poderá conduzir a num novo encontro entre os dois estadistas?

Espero que possamos organizar uma agenda destas. Temos uma vantagem que é o facto de quer o Presidente Macron, quer o Presidente Lourenço terem sido eleitos mais ou menos no mesmo período. O Presidente Macron, em Maio e o Presidente Lourenço em Setembro. Então, os dois estadistas têm cinco anos para reforçarem e estreitarem as relações. Naturalmente, há um momento, embora não saiba quando, em que se deverá programar uma visita do Presidente Macron a Angola e, espero igualmente, do Presidente Lourenço a França. Quando? Não sei! Mas dou votos, na qualidade de embaixador, que uma das visitas aconteça até 2018. Porque uma visita presidencial é sempre um momento para impulsionar projectos de cooperação. Seria muito interessante poder contar com esse impulso até 2018 para trabalhar sobre os assuntos em que decidimos cooperar. Depois, seguir-se-ia uma outra visita para confirmar isso. Espero também poder receber ministros franceses aqui em Angola. Já o ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Marc Ayrault, admitiu essa possibilidade. Quando poderá acontecer, não sei exactamente, porque temos de discutir o assunto com as autoridades angolanas, mas espero que seja no primeiro trimestre de 2018. O ministro angolano das Relações Exteriores, Manuel Augusto, é também convidado a ir a França quando quiser.

Que assuntos o ministro francês das Relações Exteriores traria na sua ‘bagagem’, caso venha a Angola no início de 2018?

Temos vários assuntos concretos de cooperação. Em primeiro lugar, temos um diálogo político que existe há já algum tempo e que temos estado a reforçar. É um diálogo político sobre a situação estratégica da região, sobre questões que têm que ver com a República Democrática do Congo, da República Centro Africana, da estabilidade na África, da luta contra o terrorismo. Esse diálogo é permanente e estreito a todos os níveis, desde o nível presidencial ao diplomático. Temos vontade de continuar com esse diálogo para ter uma posição clara comum.

A França possui uma grande experiência no sector turístico. Aliás, esta é uma das áreas com a qual mantém cooperação com Angola. Que tipo de parcerias estão a ser estabelecidas a este nível?

O Presidente Lourenço já afirmou que a base da diversificação deve começar com a agricultura, devendo ter em conta também a indústria agro-alimentar e o turismo. Por isso, estamos à disposição para cooperar. Mas é preciso perceber que não se constrói uma indústria do turismo de um dia para o outro. A França é hoje o primeiro destino de turismo do mundo, com 87 milhões de turistas. Actualmente, o turismo representa a primeira indústria da França, com mais de 7% do produto interno bruto. O turismo é o primeiro empregador de França, mas isso é o resultado de 40 anos de trabalho e de 50 anos de investimentos.

Em que projectos turísticos, em concreto, a França tem estado a trabalhar, no quadro da cooperação que mantém com Angola?

Estamos a trabalhar sobre um projecto de acordo de cooperação que deverá estar firmado ainda no final do ano. Há um primeiro contacto já efectuado com a nova ministra do Turismo em que se propõe pontos muito concretos sobre o turismo. Visitei recentemente Mbanza Congo e voltei com algumas propostas concretas que apresentei, na altura, ainda à ex-ministra. O turismo é uma indústria de serviços. O turista vem visitar um país e ele espera uma qualidade de serviços, de infra-estruturas e das pessoas. Porque senão ele não vem. Portanto, não basta ter um lugar lindo, senão há hotéis com preços competitivos, estradas e infra-estruturas de qualidade para receber os turistas, se não há hotéis com preços competitivos. Então, a nossa primeira proposta é a de trabalhar sobre a formação profissional concretamente em Mbanza Congo para formar, daqui a alguns anos, os profissionais do sector turístico e do sector cultural para formar os futuros guias turísticos, os futuros funcionários das agências de viagens. Isso não se faz de um dia para o outro. Entretanto, o Governo angolano tem de decidir fazer disso uma prioridade política. O Governo tem de tomar algumas decisões estratégicas para o futuro. Estamos à disposição para ajudar, quer o Ministério da Cultura, quer o Ministério do Turismo para acompanhar os políticos angolanos a definir a política turística e a conservação do património que eles querem colocar em vigor.

Estes acordos deverão contar com algum financiamento por parte da França?

Eu decidi colocar dentro da minha programação financeira, a nível da embaixada, uma prioridade para o sector do turismo e da agricultura, principalmente para poder potenciar a capacidade de definição das políticas. Depois veremos como poder ajudar a concretizar projectos económicos. Mas isso só será numa segunda etapa. A primeira é saber que tipo de turismo, quais são os financiamentos que o Estado está disposto a colocar, quais são as infra-estruturas a organizar, qual é formação profissional que o Governo quer priorizar e quais são os sítios que são prioridades na política do Governo para o sector do turismo. Porque não se vai poder fazer tudo, em todo o país.

E no sector da agricultura, que projectos já foram e estão por se firmar com o Estado angolano?

Neste sector, junto também a indústria agro-alimentar. Consideramos que estas duas áreas são fundamentais. Há um problema fundamental em Angola e constatei isso nas visitas que efectuei ao Zaire, Huambo e Malanje. Os agricultores têm o mínimo de cultura para sobreviver, sem capacidade para ampliar a sua produção e não têm ninguém para comprar a sua produção. Passa-se a mesma coisa com a pesca e pude constatar no Zaire, na fronteira com o Soyo. Há peixes extraordinários e mariscos que são produtos de alta qualidade, mas só que não são escoados por falta de transporte. E mesmo internamente, não há consumo desses produtos. O pescador tem de ajudar a pescar, mas também tem de ajudar a organizar, talvez em cooperativa para poder depois negociar a venda do seu produto para um industrial local que vai transformar o seu peixe em sopa de peixe ou qualquer outra coisa. Portanto, falta toda uma linha de produção para a transformação do produto. Não basta falar de grandes investimentos para construir fazendas gigantescas. E, nesse caso em concreto, o nosso apoio vai no sentido de ajudar a criar uma cadeia de produção que vai desde a venda à transformação do produto a nível local. Sobre isso já temos experiências que resultaram em alguns países africanos. Já temos também uma parte de financiamento público que poderia ajudar, através da Agência Francesa de Desenvolvimento, que se vai instalar este mês em Angola. Temos também alguns bancos franceses e mais ou menos mais de mil milhões de euros disponíveis nos bancos para financiar projectos concretos de actores económicos de empresas francesas que pretendam organizar projectos de produção aqui em Angola. Mas, mais uma vez, os investimentos serão os resultados de uma política definida pelo Governo, de uma política de incentivação financeira. Um investidor privado que precisa de terra para fazer uma produção, por exemplo, de milho recebe zero de incentivo do Estado. E pior que isso ele vai pagar o litro de gasolina como qualquer outro cidadão. Não há nenhum país no mundo que quer alavancar a agricultura que obriga o agricultor a pagar o litro de gasolina ao mesmo preço que o particular. Acho que as autoridades angolanas estão conscientes quanto a esta questão, até porque não sou o único a dizer isso. Todo o mundo fala a mesma coisa.

Dos contactos que tem mantido com as autoridades angolanas sente que há vontade política para se alterar esse quadro?

Acho que há essa vontade política. Mas, como em tudo, também na política tem que se passar das palavras à acção. Acho que as primeiras decisões do Presidente João Lourenço vão nesse sentido. Todos os países passaram por situações complexas. E França também passou por isso. Sofreu várias transformações. Ainda assim havia pessoas que não queriam mudar, e interesses que não iam ao encontro das mudanças porque, em certos casos, diminuía o lucro para algumas pessoas. O que Angola tem de fazer terá de ser uma verdadeira revolução económica, organização da economia e na maneira de as pessoas verem o desenvolvimento económico.

Em que pé estão as relações comerciais entre Angola e França?

Hoje as exportações de Angola para França são entre 80 e 90% petróleo. Do outro lado, as exportações francesas para Angola diminuíram muito, principalmente por causa da diminuição da actividade petrolífera, porque são produtos, máquinas que estão directamente ligadas à produção petrolífera. A situação não é das melhores para as exportações francesas, porque, se excluirmos o sector petrolífero, não é satisfatório o número de produtos franceses que são exportados para Angola. O que ocorre é que a maior parte dos produtos franceses que vêm a Angola entra por via de Portugal e não entendo por que estes produtos não vêm directamente de França. A indústria petrolífera vai continuar a ser importante, quer para Angola, quer para França. Mas é preciso começarmos a ter uma visão de longo prazo da relação económica entre os dois países. Temos de começar a pensar fora do sector petrolífero.

A França mantém também um forte investimento no sector petrolífero em Angola, através da Total. Que preocupações, a Total terá levado ao conhecimento do Presidente João Lourenço no recente encontro que manteve com as empresas petrolíferas que operam em Angola?

Bom, não vou responder pela Total. O que posso dizer é que a Total é o primeiro operador petrolífero no país. Está presente em Angola há 40 anos. Acompanhou os momentos mais difíceis do país e esteve sempre ao lado de Angola. É um actor importante na produção petrolífera de Angola. Tem projectos de desenvolvimento e de investimento. Mais de 17 mil milhões de dólares estão previstos para serem investidos pela Total nos próximos anos em Angola. O que a Total quer, tal como as outras petrolíferas, é manter um diálogo permanente e estreito com as autoridades angolanas como foi com o Presidente para definir bem, a longo prazo, a política de exploração petrolífera para o futuro. São investimentos importantes e que necessitam de estudos de longo prazo, entre o momento em que se decide uma exploração e o momento que se começa realmente a exploração do petróleo, que é um processo que leva entre três e quatro anos. De qualquer maneira, todo o mundo sabe que a capacidade de produção petrolífera em Angola está a diminuir. A partir de 2020, vai diminuir e Angola tem ainda 20 anos de capacidade para explorar petróleo. 20 anos não é nada. É um tempo muito curto. Então, acho que a Total está, nesse sentido, a necessitar de uma visão clara sobre a visão estratégica a longo prazo da parte angolana.

PERFIL 

Sylvain Itté, o novo embaixador de França em Angola, desde 2016, veio em solo nacional em substituição de Jean-Claude Moyret. Nasceu em Bamako, Mali, em 1959. Possui um mestrado de direito público. Diplomata de carreira desde 1985, Sylvain Itté trabalhou em vários países na Europa, em África e na América Latina. Entre 2013 e 2016 desempenhou as funções de embaixador de França na República Oriental de Uruguai.

Entre 2012 e 2013, foi director do gabinete da Hélène Conway-Mouret, ministra delegada para os franceses no exterior. Foi também durante três anos (2009-2012) cônsul geral de França em São Paulo, Brasil. Entre 2006 e 2009, desempenhou o cargo de director-geral da Agência de Cooperação França Cooperação Internacional. Entre outras funções, desempenhou ainda o cargo de 1.º conselheiro nos Camarões, cônsul geral de França em Madrid, Espanha e o de adjunto do chefe do Serviço Central de Estado Civil no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na América Latina, entre outros.