“Permaneci no país, pensando que poderia ajudar a alavancar a economia”

04 Feb. 2020 Grande Entrevista

Delegado ao primeiro congresso do MPLA, em 1977, é um homem que se sente inconformado com o rumo do país. “Por mais que custe, como é que no tempo colonial se tinha uma vida muito melhor do que hoje?”, questiona. Recorda que chegou a ter uma participação de 12% na gráfica Sopol que, por causa das dificuldades, vendeu à Gefi, “para custear a educação dos filhos no estrangeiro”.

“Permaneci no país, pensando que poderia ajudar a alavancar a economia”
Mário Mujetes

Como avalia a conjuntura económica e social do país?

Vamos evitar! Falemos de coisas com estrutura, porque de acusar a mim já não interessa. Estou cansado. O que hoje me interessa é a mudança pela qual tanto nos batemos. Note que os primeiros livros do MPLA, incluindo os estatutos e o jornal, foram produzidos na minha tipografia. Fomos a única tipografia que em 1974 trabalhou para o MPLA. Vincámos a presença do partido pelo país. Era na altura o único patrão, embora já o tenha sido desde 1971.

Mas é este o país com o qual sonhou quando aderiu ao MPLA?

Com certeza que não. Mil vezes, não. Eu poderia, por exemplo, estar na Europa, ou na América do Sul, onde fui convidado para trabalhar, mas, pensando que poderia alavancar o meu país, então permaneci.

Está arrependido?

Por mais que custe a entender, como é que você no tempo colonial tinha uma vida muito melhor do que hoje?  Você desceu, voltou de cavalo para burro. Tanto sacrifício de levar material propagandístico a partir de Luanda a Malange, no Quéssua, para divulgar a presença do MPLA; transporte e distribuição de armamento aos guerrilheiros; compatriotas muitos dos quais mortos por esta causa, como o Jaimito e tantos outros que nos ajudaram, em 1974… Enfim, os carros com os quais apoiei o MPLA foram adquiridos com o meu trabalho na época colonial.

Mas acredita nas mudanças do Governo?

Diz um adágio popular que a esperança é a última coisa a morrer, mas não acredito que as coisas mudem nos próximos anos.

Porquê?

O mundo hoje é diferente. Antes, batíamo-nos pela causa socialista ou comunista e hoje nem sequer o MPLA faz parte da Internacional Socialista. Portanto, as coisas tiveram uma inversão de 360 graus. Não vejo a geração que vai colocar Angola no rumo certo que gastaríamos.

Está a ser pessimista, não?     

A Independência não foi só para termos de beber e comer. Foi para termos nação, identidade, termos cientistas, logicamente, para termos um país normal. Mas o que vejo é muita bazófia, muitos discursos, mais teoria do que a prática. Por isso, para resolver, em primeiro lugar, teríamos de ir a busca da identidade e caminhar na normalidade de um país composto por várias nações.

O que quer dizer?

A Nigéria tem mais de duas mil línguas e as coisas acontecem. Aqui, com poucas línguas, temos dificuldade de implantar um discurso único que toque o país na senda do desenvolvimento. Noto que nos falta angolanidade. A começar mesmo pelo bilhete de identidade. Hoje muitos de nós, por banalidade, trocamos a identidade angolana para termos a de outros países cujas histórias desconhencem e muitas vezes assimilam mais hábitos desses países do que do nosso.

Então, a soberania não trouxe benefícios?

Era uma necessidade, mas a materialização das causas da Independência é que é o ‘calcanhar de Aquiles’. Houve desnorteio, ou seja, ‘cada um por si e Deus por todos’. Lembro-me de parentes queimados nos aviões a defender uma causa. Hoje eu pergunto: valeu a pena? Os camaradas que desviaram armas dos quartéis do exército colonial para levá-las à primeira região, na ânsia de um futuro melhor,  isso valeu alguma coisa? Mas porque é que uns beneficiam e outros não? É uma pergunta que fica no ar a que os políticos devem dar resposta.

Sente-se amargurado?

Praticamente, neste momento, estou a deixar o legado. E isso passa pela investigação e estudo. Não é para ganhar dinheiro. Antes pelo contrário, do pouco que adquiri, gastei para criar conhecimento  e deixar obra para os continuadores deste país. Deixo escritos fundados em uma série de informações dos nossos ancestrais que não são tidos nem achados. Estou a falar da geração de homens naturais e patriotas que plantavam árvore, pensando no futuro.

O senhor participa do capital social da gráfica Sopol?

Deram-me apenas 12 por cento na sociedade, graças à intervenção do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. Mas, por necessidade de custear estudos dos filhos, no estrangeiro, fui forçado a vender a minha fatia à Gefi, por 100 mil dólares que nem chegaram para tanto.

Então decide fundar a Associação de Hotéis, Restaurantes e Similares de Angola (Ahoresia) de que é presidente?

Isso foi feito com um propósito de ajudar o nosso Governo.

Mas como? Recebendo fundos públicos? 

Nunca recebi benefícios. Bem que tentámos, mas sempre fomos respondidos com a falta de dinheiro. Portanto, a ideia era a de criarmos uma classe de hoteleiros dignos desse nome. O Estado seria um contribuinte também na medida em que as pessoas não tinham e ainda não têm uma consciência de classe. Então, com os recursos que tinha, o Estado podia ajudar a alavancar a formação de quadros e de empresários do sector hoteleiro e da restauração.

E tiveram resultados?

Através da Organização Mundial do Turismo conseguimos, a muito custo, formar as primeiras 500 pessoas em administração, cozinha, gerentes, directores de hotéis, empregados de mesa e bar. Foi um curso frequentado por intervenientes de Cabinda ao Cunene. Nunca mais houve uma formação com essa profundidade.

Esses cursos hoje constam dos planos das universidades…

Conseguimos fazer um trabalho para sensibilizar as universidades e a primeira foi a Universidade Agostinho Neto. Com ela assinámos protocolos em que também interveio uma delegação do Zimbábue com a qual rubricámos protocolos, porque as associações daquele país têm até outros requisitos como hotéis e restaurantes que participam na formação de quadros.

Com isso as escolas de hotelaria e turismo ficaram mais fragilizadas?

Cálculos efectuados por peritos estrangeiros que comigo trocaram impressões apontam que precisamos de pelo menos 1.500 escolas de hotelaria e turismo mas não temos sequer 20. Temos apenas três, ou seja, no Namibe, em Benguela e Cabinda. Mas digo que estas escolas  têm de ser potencializadas com ditames originais da angolanidade.

É preciso seguirmos disciplinas que têm que ver com a nossa identidade e não nos  refugiarmos na busca de tudo o que é de fora. Pelo contrário, se queremos elevar o prestígio do país além fronteiras, temos de formar investigadores e professores de acordo com a nossa realidade.

E o seu projecto de escola e unidade hoteleira, em Luanda?

Estou há 20 anos nisso e dizem sempre que não há dinheiro.

Quem nega financiar?

Os bancos e não só.

Dezoito milhões de dólares, é esse o investimento necessário, certo?

O valor do projecto não está em questão, quando a causa é nobre. O que deve ser levado em consideração é fazermos uma coisa nesse sentido. Tinha de ter um pontapé de saída. Aliás, seria algo inovador, os projectos estavam fundamentados e mais ligados à angolanidade a que já me referi. Portanto, não foi do agrado de alguns e por isso era sempre rejeitado por uma ou outra razão.  

“Permaneci no país, pensando que poderia ajudar a alavancar a economia”

Então desistiu?

Pelo andar da carruagem talvez o meu bisneto possa fazer isso.

Voltemos ao princípio. Acha que o país foi adiado?

Não tenho nada que falar sobre esses aspectos. Estou a ver que as coisas não estão a caminhar como deveriam. Depois da Independência, tudo começou e está mal até aos nossos dias.

O que está mal?

Entre nós os angolanos não nos amamos. Somos inimigos uns dos outros e andamos num rol de acusações, perseguições e inveja que não trazem benefício nenhum.

Mas o país entra nos eixos com o combate à corrupção, não?

É uma hipótese. Vamos ver. Os que estiverem vivos irão testemunhar o resultado. Muitos como nós antes pensávamos numa coisa e de repente aconteceu outra. Não é ser negativista, mas ‘gato escaldado tem medo de água fria’.

Como veterano do MPLA também aplaudiu o enriquecimento ilícito?

Era natural porque éramos jovens entre 21 e 22 anos e estávamos optimistas. O jovem é muito propenso a vitórias. E tudo condizia que seria um país diferente,  mas não foi. Em vez de ser africano, Angola tornou-se em mais um país em África.

Qual é o caminho que aponta para a saída da crise?

A prioridade deve ser para nós os angolanos. Indivíduos que não combateram, não conhecem o nome de Angola, mas são os primeiros a aceder à riqueza do país. Essa conta está mal feita. Você como angolano na sua própria terra sente-se pior que o estrangeiro com uma vida decadente sob vários pontos de vista. E depois aparece uma classe de indivíduos vaidosos com aldrabices. Do que se diz é tudo mentira. Como cidadão, dou o meu ponto de vista e alguns podem não concordar comigo, mas o que me interessa é o bem para todos os angolanos em primeiro lugar.

Houve regressão…

Mil vezes para trás.

O seu restaurante ‘Pezinhos n’Agua’ sobreviveu sem recurso a empréstimo?

Era bom que tivesse. Comecei com 12.500 escudos que fui gerindo, evolui e cresci sem apoio de ninguém. Para elevar o negócio, em 2000 tentei recurso ao banco, mas não fui bem-sucedido.

E depois não sei se foi um ataque encomendado, destruíram o restaurante na Ilha de Luanda e os trabalhadores ficaram à deriva. Mas veja o prestígio que teve sem nenhum empréstimo…

Abandonou o negócio?

Continuamos a lutar para ver se aparecem parceiros. Se assim acontecer, vamos avançar.

O seu nome é muito conhecido ao  nível do MPLA. Isso não ajuda?

Cheguei até a ser carinhosamente tratado por Joãozinho, pelo ex-Presidente da República, nada mais para além disso.

Subiu a pulso?

Exactamente, sem benefícios de terceiros.

Foi amigo do falecido empresário Alpega. O que ele pensava do país?

Trabalhámos juntos e do que acompanhei, lamentava-se muito da falta de apoio. Porém, nada posso comprovar.

O Fórum de Auscultação e Concertação Empresarial (FACE) de que foi presidente desapareceu?

Haverá uma assembleia-geral, em que deverá ser eleita uma nova direcção.

E a Ahoresia?

Não é a mudança de uma cara que muda a situação. Mas, antes da Ahoresia, fui presidente da Associação de Hotéis e Restaurantes de Luanda (Ahoresil).  Temos convénios com vários países americanos e europeus, mas também africanos. Agora, o Estado tem de saber que as associações intervêm no desenvolvimento. Nos outros países, são apoiadas. É um direito que lhes assiste. Aqui estamos em baixo. De resto, temos mais de cinco mil unidades de restauração que não pagam quotas regulares. Mas também estas não são suficientes para se ter um bom funcionamento.

A Associação de Hotéis e Resorts de Angola, surge com o mesmo objectivo, não?

São conveniências e não nos preocupamos com isso.

Entregou ao Governo uma proposta de 220 milhões de dólares para capitalizar os empresários do sector. Quer comentar?

Há cerca de 11 anos, quando o senhor me entrevistou, a nossa associação (Ahoresia) precisava de 12 milhões de dólares para o desenvolvimento do sector hoteleiro e disso nada resultou. Mas, como lhe disse, não quero alinhar em política, porque apenas desejo benefícios para este povo.

Há margem para o surgimento de mais associações do género?

Sim, e estão a emergir. Temos a Associação de Cozinheiros e Pasteleiros de Angola com jovens dinâmicos que têm estado a dar cartas no que tange à gastronomia angolana. Basta dizer que um dos jovens dessa associação ganhou recentemente um concurso de gastronomia na Itália. É um bom começo.  

O que diz sobre a gastronomia nacional?

É das áreas mais sublimes que há no planeta. Porque o homem que não come não vive. Logo, temos de ter cientistas, investigadores, antropólogos, nutricionistas, cozinheiros de referência para podermos alimentar o nosso povo e torná-lo saudável e forte como era no tempo de Mandume e Nzinga Mbandi. É preciso consumir alimentos naturais da nossa terra, desde a mandioca, inhame, as folhas, o bom tomate que não sejam geneticamente modificados.

O que está em falta?

Não estamos a produzir o suficiente por várias razões, mas não interessa entrar em detalhes. Deixo apenas escapar que, quando você chegar a uma altura de comprar o tomate a um kwanza, aí poderei falar consigo.

A gastronomia interage com o turismo…

Mas temos de potenciar a gastronomia nacional. O que o homem quer é comer. Então devemos ter em conta três aspectos no consumo: carbohidratos, vitaminas e proteínas. Daí é só seguir, ao mesmo tempo que temos de prestar atenção aos hábitos alimentares regionais.

As nossas receitas estão a alavancar a indústria de restauração no estrangeiro?

Sim, porque aqui não temos formação. Quero fazer uma escola e não há hipóteses.