Professores não recebem desde Março e relatam casos de depressão e fome
ENSINO SUPERIOR. Docentes exigem subvenção e financiamento. E há quem equacione sair às ruas se a situação não for resolvida. Outros relatam histórias complicadas e regresso à casa dos pais. Universidades privadas começaram a suspender contratos.
Vários professores do ensino superior privado enfrentam dificuldades desde que foi decretado o estado de emergência, por não receberem salários desde Março e outros por auferirem apenas metade.
A situação tem sido mais penosa para aqueles que não são efectivos e que dependem do salário pago por estas instituições. Há relatos de casais separados, fome, depressão e sonhos adiados.
Um dos que enfrentam dificuldades é Célsio Tavares, professor de Economia, Finanças Públicas e Marketing, na Universidade de Belas (Unibelas) e no Instituto Superior Politécnico Kalandula (Ispeka). O facto de não ter família e viver ainda com os pais, ambos funcionários públicos, torna a situação menos “difícil”, por isso reconhece que o seu caso não é comparável “nem de perto” a quem tem família. “Tenho colegas cujas rendas terminaram e a família foi dividida. Cada um regressou à casa dos pais. Colegas que queriam contrair matrimónio e não conseguiram. São muitas situações”, conta.
Por isso, considera que os professores universitários em Angola pertencem ao sector informal e compara a sua situação à de um roboteiro. “Não há diferença com a informalidade. Se o vendedor ambulante não vender não come. Nós também não comemos se não dermos aulas.”
Tavares critica o recuo do Governo por não ter permitido o reinício das aulas a 9 de Julho e sugere que seja criada uma política de inclusão para os docentes que dependem apenas do privado. Em relação à política salarial, explica que, no Instituto Superior Kalandula, por exemplo, o salário é pago em função do número de aulas. “Pode receber-se num semestre 50 mil e no outro 300 mil kwanzas. Não temos contratos de segurança social nestes institutos. Na Unibelas, marcaram uma reunião e até o reitor não recebeu salários e alegavam que o dono estava em Portugal. No Kalandula, tivemos de assinar uns papéis e não passou disso. Depois alegaram que não estavam em condições de pagar”, relata. Acrescenta que os professores efectivos e os colaboradores administrativos tiveram “sorte ligeiramente melhor”, ao receberem 50% dos salários. “No caso do Kalandula, a direcção criou um núcleo de 10 professores para serem efectivos já que o Ministério do Ensino superior exigiu. E são esses que recebem.”
Sobre os investidores, explica que “muitos foram gastando os lucros na construção de outros institutos em algumas províncias. Alguns já estavam na falência”, afirma.
Outro professor do ISPEKA e também docente do Instituto Superior de Ciências de Administração Humana (ISCAH), que solicitou anonimato por temer represálias, tem vivido desde Abril como “mendigo” e vai pedindo ajuda a familiares “aqui e ali” para não passar fome. Não recebe qualquer salário nas duas instituições desde Março.
No ISCAH, todos os professores são colaboradores e não há efectivos. Mas no Kalandula há. No ISCAH, este professor trabalhou duas semanas e recebeu por este tempo. No Kalandula, os professores efectivos recebem metade do ordenado e outros nem 30%. Não conseguiu qualquer trabalho extra desde Março. “Há dias difíceis, mas vou resistindo”, conta.
Assim como Célsio Tavares, entende a medida que o Governo teve de tomar porque as instituições em que colabora não tinham quaisquer condições de recomeçar as aulas. “Falta água, o distanciamento nas salas de aulas não seria observado porque são bastantes numerosas. E as casas de banho são outro problema. Iniciar neste quadro seria um suicídio”.
Considera que, como não há intervenção do Estado, o melhor era mesmo começar as aulas “nestas condições” do que viver como “mendigo e estar a passar fome”. Acredita que se o Governo tivesse vontade política podia negociar com os bancos para que as entidades patronais pudessem pagar os ordenados. E quando a situação voltasse ao normal, essas instituições poderiam amortizar as dívidas.
A "fome é tanta” que já pensa, com um grupo de professores, sair às ruas por já não “aguentarem mais”. “Atingimos o ponto de saturação. Ninguém aguenta mais", afirma, desesperado.
Mauro José é professor colaborador de Matemática na Unibelas. Tem vivido através da ajuda de familiares. E entende que, no ensino superior, as aulas podiam retomar a 9 de Julho como estava previsto. “Temos de voltar à normalidade”, defende, sublinhando que não está em causa apenas a questão económica.
Professor na Universidade Óscar Ribas, Olívio Kilumbo acredita que não reiniciar as aulas é “mau” por diversas razões. Até entende os motivos do Governo, mas defende que, para o ensino superior, a situação podia ser “mais bem negociada e repensada”, antecipando que se avizinha um “cenário catastrófico para um país onde se perdem empregos quase diariamente”.
Kilumbo também não tem recebido salários, por ser contratado, mas não tem tido a situação tão complicada porque tem outras fontes de rendimento e a universidade privada é a segunda opção. “Mas a falta deste dinheiro representa uma quebra nas minhas contas uma vez que, para aliviar a pressão do custo de vida, temos de ter mais que uma fonte de rendimento. Afinal ninguém vive do salário, disse alguém um dia. ”O docente garante conhecer muitos professores cujas “famílias estão de rastos”. “O efeito ‘bola de neve’ começa nos jardins-de-infância e vai até ao ensino superior. São mais de 200 mil angolanos e estrangeiros numa situação aflitiva. Quem governa deve encontrar soluções”, desafia.
Professora colaboradora de Prótese Dentária e Farmacologia na Unibelas e no Instituto Superior Politécnico Internacional de Angola (Isia), Beatriz Matias depende do que recebe nas duas instituições para viver. Não tem salários desde Março, o que a coloca numa situação “difícil”. Vive em casa arrendada com o filho e tem uma trabalhadora que, em consequência, também não recebe salários. “O perigo de contaminação será que existe apenas nas salas de aula?”, questiona.
Hamilton Sulo é professor de Psicologia do Desenvolvimento e Avaliação de Intervenção Psicológica no Instituto Superior de Ciências Sociais e Relações Internacionais (CIS) e, tal Olívio Kilumbo, a situação não é tão complicada por ter outras fontes de rendimento. É colaborador do CIS e professor do ensino público. E é deste rendimento que tem vivido. Mas refere que, sendo o custo de vida em Angola tão alto, a falta de um ordenado deixou as finanças em défice. Assim como os demais professores, também entende que o Governo deveria apoiar as instituições privadas. “Podia ser feito com linhas de crédito para que elas sobrevivam”, sugere.
INSTITUIÇÕES SUSPENDEM CONTRATOS
Várias instituições do ensino superior têm suspendido os contratos com os colaboradores, entre professores e funcionários não docentes, até que as aulas retomem. Segundo a Associação das Instituições do Ensino Superior Privadas de Angola (Aiespa), são oito mil e 883 professores que vão ficar sem trabalho e mais de 13 mil colaboradores. A instituição avisou da intenção, numa carta enviada ao Presidente da República e a vários ministérios. Aguarda por uma resposta até 9 de Agosto e o porta-voz, Laurindo Viagem, alerta para riscos de falência.
Entretanto, muitos professores revelaram ao VALOR que ainda não receberam as respectivas comunicações de suspensão dos contratos. É o caso, por exemplo, de Mauro José que insiste que a situação em que os professores do ensino privado vivem podia ser resolvida se “houvesse vontade política”. Olívio Kilumbo também não tem informações se a Universidade Óscar Ribas vai suspender os contratos com os professores efectivos. Acredita que os fundos de desemprego e o da segurança social, “se tivessem fôlego e saúde financeira”, seriam um bom ‘salva-vidas’. Mas critica a “má gestão” destes fundos e que, por causa da pressão, acredita que não suportariam. Como alternativa, olha para os bancos que “poderiam ajudar as empresas que apresentam condições de devolver dinheiro emprestado”.
DADOS “CALUNIOSOS”
Na semana passada, o Ministério da Administração Pública Trabalho e Segurança Social (MAPTSS) apresentou dados, dando conta que 90% dos professores do privado têm também rendimentos do Estado.
Célsio Tavares considera uma “calúnia pública” e coloca em dúvida a seriedade da fonte de informação do MAPTSS para avançar com esses dados. Ele próprio assume ser uma referência sem vínculos com o Estado, tal como muitos colegas que conhece.
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