ANGOLA GROWING
FELICIANO LUCANGA, CONSULTOR FINANCEIRO

“Quem gere o nosso sistema financeiro são estrangeiros”

Acredita que Angola vai chumbar na avaliação que será feita em 2022 pelo GAFI, caso essa análise não “seja encomendada”. Critica o facto de as instituições não valorizarem os consultores nacionais em benefício dos estrangeiros. E é duro a condenar a forma como os bancos desperdiçam lucros e apostam na contratação de familiares, em vez de escolherem profissionais qualificados. Feliciano Lucanga não dúvida que todo o sistema financeiro angolano esteja nas mãos dos estrangeiros.

 “Quem gere o nosso sistema financeiro são estrangeiros”

 

O Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI) vai realizar uma avaliação do nosso sistema financeiro em 2022. Que avaliação acha que teremos?

Se não for encomendada, vamos ter uma avaliação negativa.

É possível Angola encomendar uma avaliação ao GAFI?

Sim. As avaliações e as próprias auditorias são encomendadas.  Já estive em instituições em que disseram ‘esta informação não exponha, mas esta pode’.

 As organizações pagam para que as informações que são expostas sejam positivas. É isso?

Sim. Costumo dizer que o nosso banco BPC já anda falido desde os anos 1990 e qualquer coisa. Mas, como a pessoa que estava lá era um macaco velho a nível da banca, conseguia manobrar.

 Está a referir-se a Paixão Júnior?

Sim. Ele é um quadro fora do comum. Hoje, as coisas começaram a vir à superfície porque as pessoas que lá estão, para além de não perceberem, vão lá para ficarem ricos. Não conseguem fazer a manobra do dinheiro. O dinheiro precisa de ser feito. As pessoas violaram este princípio de a banca conceder crédito e captar depósitos para fazer dinheiro. Hoje, a maioria dos bancários, como são nomeados a partir de casa, chegam e não sabem como é que o dinheiro surge.

 Está a dizer que o banco já tinha problemas, mas não foram expostos por causa de Paixão Júnior?

A pessoa que lá estava conhecia todas as manobras, onde tinha de fechar e onde não fechar. Se vir um relatório de um banco como é reproduzido, vai ver. É incrível, mas é assim que funciona. Ele consegue fazer a troca de posições com outros bancos que dificilmente você vai chegar a dizer que o banco não tem dinheiro físico.

 E os novos gestores não sabem fazer estas manobras ou não querem fazer?

Isso é como tudo. Quando alguém é retirado do posto não vai explicar a sua estratégia. O que vier tem de ganhar a confiança junto de outras instituições para que a troca de posições entre os bancos e de números no balancete seja um facto. E hoje, também, a informação é mais aberta.

 Então os actuais gestores perdem por a informação ser “mais aberta” e por falta de domínio?

Sim. Ao invés de se preocuparem em tentar as coisas do ponto de vista técnico. Chegam lá é negócios e tentar aparecer com carrões. O que deve ser feito não fazem. Não estão nem aí, nem preocupados.

 A exposição do banco e os problemas não os preocupam?

Hoje, os nossos funcionários não estão preocupados com a imagem do próprio banco. Quando fui para a banca, um gerente de uma agência ficava preocupado quando visse a sua agência cheia de gente. Ficava preocupado do porquê daquela gente toda. O bancário tem de ter um carácter ímpar e próprio. Tem de ser alguém difícil em qualquer parte do mundo. Hoje, encontra-se o bancário no restaurante a beber, está a andar à toa, fuma e bebe. Enfim. Facilmente, torna-se vulnerável para amanhã participar numa operação ilícita.

 O que aconteceu? Não há formação de ética?

Os bancários hoje não estão interessados em formação. Fiz o segundo médio de gestão bancária no Instituto de Formação Bancária de Angola (Ifba), mas estava no terceiro ano de economia. Fui dos primeiros formandos no Ifba. É aí onde se aprendia tudo. Naquele tempo, para se ir para a banca, punham-te a lidar com o dinheiro. Um bancário que não passe pela tesouraria não é bancário. Aquelas secretárias têm um significado. Hoje, vê-se que está a entrar e já está a sentar no lugar do gestor. Noto um bancário só de olhar a amarrar dinheiro. O bancário tem de saber conferir dinheiro. Naquela altura, tínhamos seis meses de estágio. Levaram-nos ao BNA e ficamos durante um mês a lidar com dinheiro. E era aí onde se destinavam as pessoas como aquelas que vão para a tesouraria. Começavam já a ver qual era o dom deste funcionário e onde seria colocado.

 Hoje não se faz este exercício?

Terminou. A banca, desde sempre, não foi gerida por técnicos superiores. Aquele discurso de criação de equipa foi confundido. Na criação desta equipa, as pessoas pensaram que é trazer o filho e não sei mais quanto e o resto vai para casa. Não é isso. A criação de equipa começa quando se é nomeado líder dentro dos quadros da sua direcção para preparar a equipa para trabalhar. Interpretamos mal.

 Mesmo que estes familiares não percebam de banca…

Aí está. Ao invés de se formarem, também não querem. Quando terminam a universidade, querem o carrão e casa. A prática é o critério da verdade e isso é diferente do que se aprende na universidade.

 Que sistema financeiro temos hoje tendo em conta esta base formativa?

Só aprendemos as coisas se tivermos formação profissional. A formação ‘on the job’ deve ser um facto. Os nossos quadros são bastante fracos do ponto de vista técnico. Não percebem e não estão interessados em apreender.

SISTEMA FINANCEIRO VULNERÁVEL

 Defendeu recentemente que o Banco Nacional de Angola e a Unidade de Informação Financeira (UIF) têm quadros que não percebem de regulação…

E os próprios legisladores. Não é fácil. Tem de ser com pessoas de especialização. O que eles fizeram foi tirar as pessoas que percebem das coisas para colocar quem não percebe. Alguém só pergunta o que sabe. Na banca, houve muito paraquedismo. Hoje, a banca e o sistema financeiro estão vulneráveis. Já alertei no passado que quem gere o nosso sistema financeiro são estrangeiros.

 Que estrangeiros?

Os portugueses. Por isso é que hoje estamos a ter problemas. Não andamos por nós próprios. Não temos o sistema financeiro controlado por nós. O nosso sistema é gerido através de Portugal. Não tem como controlarmos. Por isso é que as nossas operações são divulgadas lá fora e aqui não sabemos delas.

 Isso não lhe parece um problema de soberania?

Por um lado. Mas não temos pessoas capazes.

 O problema então é a falta de quadros?

São os tais 'lobbies' que se criam. Os portugueses são os melhores gestores na banca.

 Então contratámos os melhores?

Sim. Mas vulgarizamos a nossa informação. Quando trabalhei no BAI, interagi com os auditores externos como a Deloitte e a PWC, entre outras. E notei que eles aqui não trabalham a informação. Pedem a informação e tratam em Portugal. A nossa informação transportou-se de Angola para Portugal. Não temos hipóteses. As informações só não caem porque não querem divulgar e eles sabem quando o devem fazer. Quando querem fechar uma determinada torneira, fecham. Nós vamos buscar consultores lá fora. Têm toda a informação na mão.

Em Angola, não temos também consultores capazes ou apenas não são contratados?

Só não contratam. Estes quadros não são tidos nem achados. Eles preferem um estrangeiro. Como já estamos habituados a fazerem-nos as coisas... Mas conseguimos. Somos nós que trabalhamos a informação. Eles apenas colocam umas figurazinhas e mais nada. Se o angolano disser que consegue fazer isso, eles dizem “nem pensar”. Mas, se for um estrangeiro, dizem que está bom. Mas quem dá a informação é o angolano. Eu trabalhei com auditores. Se tiver o privilégio de ter alguém que se dá com auditores, vai ouvir dizer que os auditores externos sem internet não trabalham. Se perguntar como se faz uma coisa, nunca vai dar resposta. Vai pedir para aguardar ou dizer que está a fazer um trabalho, mas não está a fazer um trabalho coíssima nenhuma. Está à espera da resposta de Portugal.

 O que se devia fazer para que os quadros nacionais fossem reconhecidos?

Não será tão fácil. É uma questão de mentalidade e das pessoas estarem comprometidas com a pátria.

 Acredita que ainda há mercado para mais bancos em Angola?

Ainda há espaço para mais. Costumo dizer que só três ou quatro bancos cumprem o seu papel. Não mais do que isso.

 E os restantes?

Faltam bancos com mais especificidade. Bancos que vão para o retalho. O grande problema não são bancas institucionais, mas retalhistas. Quem está a passar mal é a população. Os bancos que estão no mercado não são especializados. Não existe banco de importação ou de empreendedores. Uns até têm escrito nos seus procedimentos. Mas, na prática, não. Muitos destes bancos também não têm dinheiro. O que vão fazer? Nada. Se a função tradicional do banco é captar depósitos e conceder créditos, esta função tradicional foi violada de algum tempo para cá.

 Porque é que diz que foi violada?

Cada um faz o que quer. Ninguém toma medidas. Como não capta, os clientes são os mesmos. Não concede créditos, claro que não vai ter dinheiro.

 Actualmente, o maior cliente dos bancos é o Estado…

Para este caso, o BPC sentiu muitos problemas. O BPC devia ser o banco com mais dinheiro se as pessoas que fossem para lá conhecessem a função e o papel do banco como banco do Estado. O BPC é a área comercial do BNA. Mesmo assim, esta gente que vai para ali não sabe rentabilizar o dinheiro. Não sabem patavina. O BPC devia ser o maior banco deste país e rebentar com dinheiro pelas costuras.

 De que forma esses responsáveis do BPC não o tornaram rentável?

Se organizassem o banco. Mas se o banco estiver bem, pensam que vão correr com eles. Porque certas instituições não evoluem? Porque foram politizadas.

 Acha que é o caso do BPC?

Obviamente. Alguém que sequer tem 10 ou 20 anos de banco é administrador no BPC. Vês que é filho do fulano. Enquanto o Governo não deixar de politizar instituições, sobretudo do Estado, o BPC nunca vai ter rentabilidade. Está sempre com défice. As políticas são as mesmas. Vai ser recapitalizado.

 O processo de recapitalização do BPC não vai dar resultados?

Quantas vezes é que o banco já foi recapitalizado? Desde 2016, quantos conselhos de administração já passaram por aí? Estão a colocar políticos. Não precisamos de políticos, precisamos de técnicos.

 E resolviam?

(A rir). Sem problema nenhum. Há pessoas que sabem. Mas, se for do partido ou sobrinho, não vai a lado nenhum. Quando o Ricardo de Abreu entrou no BPC, como presidente do conselho de administração, tínhamos um meio em que qualquer um de nós colocava as suas ideias directamente ao conselho de administração. Eu solicitei que, antes de se nomear alguém, se conversasse com esta pessoa para ver o que iria fazer de bom para a direcção. Aquilo deu uma bronca, porque o PCA a colocou em prática. Toda a direcção teve de falar sobre o seu departamento. As debilidades e sucessos. Depois, surgiram as exonerações de directores. A minha directora também foi exonerada. Foi uma lástima. Na minha direcção, eu é que fazia tudo. Quando foram para a defesa, não me levaram. Inclusive, falaram com um informático para tirarem toda a informação do meu computador. Disse que não tinha problema. No primeiro debate, não passaram. Deram outra oportunidade e também não passaram.

 Houve uma terceira?

Não me levaram. Também não queria. No BPC, mudaram a minha fechadura e dependia de um trabalhador de limpeza para abrir a porta. Quando eram 16 horas, diziam que já era hora de sair.

Qual era a sua direcção?

Coordenação comercial. Não sabia quais eram os argumentos que usaram, mas eu, como dono do gabinete, não tinha a chave. Mas todos tinham. É incrível. Só vendo.

 Ricardo de Abreu fez um bom trabalho no BPC?

Sim, sim. Ricardo de Abreu é muito forte na legislação. É muito forte na escrita. Mesmo no BAI, era assim. Ele investiga muito. Lê muito. No BPC, estava a tentar organizar. Mas, claro, era o PCA. Se não tiveres a tua equipa alinhada contigo, haverá sabotagem institucional. Não é possível. Estava sozinho. Foi preciso arrancá-lo daí e dar-lhe outras funções. Deixou aquilo a meio. Indicou-se o Alcides Safeca pela idade, que entendia apenas de Finanças. Eu sabia que teria muitas dificuldades, porque estava numa área que não era a dele.

 

CRÉDITOS À ECONOMIA

 Muito se reclama dos bancos por causa do crédito à economia. Os bancos, por sua vez, reclamam dos processos. O que se financia serve?

Deveria financiar-se mais. Os nossos bancos não falam com os clientes. Criam situações e dificuldades para darem os créditos.

 O objectivo é mesmo criar dificuldades?

Criam dificuldades para que depois o cliente desista. Às vezes, nem respondem. Um processo de crédito fica lá 50 anos.

 Melhorou com o aviso número 10 do BNA e o instrumento do Prodesi PAC?

Alguns dizem que têm estado a ser multados. Têm mesmo? Se não costumam dar o dinheiro. Será que têm mesmo dinheiro?

 Acha que não têm?

Não têm.

 Os bancos têm anunciado lucros. Como não têm?

Aquilo é um relatório. São números fabricados e martelados. Do ponto de vista prático, não. Se dessem créditos, quais são as pessoas que costumam receber créditos então? Se tentarmos ir ao mercado e perceber quais são os projectos aprovados, nenhum foi aprovado. Criam situações. Se um deles não estiver envolvido nesse tal projecto, adeus!

Tem de ter a participação de quem está à frente das instituições?

Infelizmente, funciona assim. O que me dói bastante.

 Tem conhecimento de casos concretos?

Variadíssimos. Se não se bater à porta, não dão dinheiro. Por vezes, fico muito chateado. Alguns credores do Estado faliram por conta do Estado. É o Estado que deve e não paga. Quando querem pagar, primeiro, exigem que o cliente pague os impostos. Como vão pagar se o Estado deve? Devia ser o Estado a dizer que, como devem X, pagam e debitava o valor dos impostos.

 É uma proposta feita há alguns anos pelos empresários, certo?

Sim. Tenho aqui muitos processos de dívida pública. Abordo o assunto com todos os ministérios e governos provinciais. A nível do país, a instituição que mais está a cobrar dívidas é a minha empresa. Encontro esta dificuldade. Às vezes, sou eu que pago os impostos dos meus clientes. O Estado deve, por vezes, 19 ou 20 anos e não está nem aí. O empresário vai à Administração Geral Tributária (AGT) buscar o certificado de não devedor. A AGT obriga a pagar. Mas como vai pagar se não tem dinheiro? Há um projecto de uma carta de crédito de importação que estou a gerir com tudo bonitinho e factura autorizada para importar arroz e óleo alimentar. Recorremos a todos os bancos e nada. Pediram colateral. Como se vai dar colateral, se são um banco? Não sabem fazer dinheiro. O banco pode dar o dinheiro. Depois da venda, além do percentual que se tem de pagar, pode-se pagar outro valor. O cliente possivelmente poderia aceitar. É uma forma de ajudar o próprio Estado. Fomos ao BAI porque trabalhei lá. A única coisa que o banco BAI fez foi abrir a conta do cliente a custo zero. Os analistas de crédito têm um procedimento errado. Cada banco é um banco, mas deviam arranjar procedimentos de acordo com o cliente e as suas necessidades. O banco tem de facilitar. Temos de arranjar um meio-termo. O cliente vai ao banco e não consegue crédito. Vai ao Ministério das Finanças por causa dos impostos. O próprio Estado deve ao credor e não paga.

 O que acha dos processos dos bancos Abanc, Kwanza Invest, Banco Postal?

Estes bancos foram mal constituídos. Se, naquela altura, tiveram facilidade de quem facilitou a licença, hoje as coisas mudam. Por vezes, os próprios responsáveis não eram idóneos. O banco é muito técnico. Muitos, como viram que havia rentabilidade, também criaram os seus bancos com o dinheiro que tinham. Sem saber que o dinheiro no banco é do cliente. Você apenas constrói o banco. São os clientes que alimentam os bancos. Ou se oferecem produtos que dão rentabilidade e o banco cresce ou fica-se sujeito a que se fechem as portas. Não foram buscar as pessoas certas. Os outros estavam a tentar impor-se no mercado, o que não é fácil. Pode-se até criar bons produtos para rentabilizar os produtos. Faltou confiança.

 Quando fala dos produtos está a falar do Banco Postal?

Sim. A primeira coisa a ter em conta é a confiança. Não havendo, não há hipóteses. Quem está à frente do banco? Tem experiência? Por exemplo, Kundi Paihama conseguiu dinheiro através dos casinos e criou um banco. Quem eram os gestores? Deviam ir buscar quem sabe. Meteram as filhas e outros. Não percebem. Era preciso saber como rentabilizar. O Kwanza Invest, na altura, tinha uns privilégios. Foi buscar um gestor que não percebia como se deve fazer dinheiro. O investidor angolano não gosta de realizar capital. O BAI, por exemplo, cresceu como cresceu por causa do dinheiro da Sonangol. Quem são os sócios? Todos os PCA da Sonangol tem lá acções. Não realizaram capital nenhum. Dos salários chorudos, não tiraram nada. Tudo vinha da Sonangol.

 Perfil

Mais de 30 anos de  banca para trás

Feliciano Lucanga tem 48 anos. Esteve ligado ao sistema bancário durante cerca de 30 anos, mas garante que já se reformou do sector. Trabalhou nos bancos BAI, BCI e BPC. Passou também pelo BNA. Tem cinco licenciaturas, porque se sente um eterno insatisfeito com a sua formação e para não ser “aldrabado” por outros profissionais. Actualmente, tem a sua própria empresa, a Global Compliance Finance (GCF). É mestre em economia. Ainda pensa em fazer mais uma formação em gestão tributária.