Lindo Bernardo Tito, jurista e deputado

“A culpa de tudo quanto está a acontecer de execução orçamental é do Presidente”

Deputado Lindo Bernardo Tito aponta o dedo a João Lourenço, culpando-o do que está a acontecer com os serviços de segurança. O parlamentar não tem dúvidas de que o Presidente da República não tem pulso e não tem controlo sobre os serviços e compara à postura do ex-Presidente. Em entrevista, Lindo Bernardo Tito alerta que o 'caso Lussati' fragiliza a Presidência da República e o MPLA.

“A culpa de tudo quanto está a acontecer de execução orçamental é do Presidente”
D.R

Os Fundos Financeiros Especiais para a segurança devem ser regulados e fiscalizados pelo Presidente da República, mas ainda não há regulamentação. Que ligação pode ser feita entre este quadro e o 'caso Major Lussati’?

O Orçamento Geral do Estado reflecte políticas públicas a serem concretizadas durante um exercício financeiro, que corresponde a um ano civil. Depois da aprovação pela Assembleia, passa-se, a partir de 1 de Janeiro, à sua execução, não apenas execução financeira do próprio orçamento, mas também das normas de que o próprio orçamento dispõe. Há despesas que, devido à sua natureza, exigem alguma especificidade. Daí nascem os créditos especiais que são executadas, por exemplo, pelos serviços de segurança. Outros parlamentos ou países atribuem dupla fiscalização destas despesas. Há dois órgãos que tratam disso. Um, o Parlamento, que cria uma comissão especializada, normalmente constituída de acordo com a representação parlamentar, mas os integrantes são obrigados a manter sigilo, são impostos a assinar um compromisso de sigilo, cuja violação tem uma penalização. Além do Parlamento, também o Presidente da República tem o poder de acompanhar a execução destas despesas. Em outros sistemas, no caso o semi-presidencialista, além do presidente, há o primeiro-ministro. Portanto, são três entidades políticas que acompanham. No nosso caso, teriam de ser duas entidades por ser um sistema presidencialista, seria o Parlamento e o Presidente. Ocorre, porém, que só o Presidente tem poderes. Quem autoriza esta despesa é exclusivamente o Presidente da República.

A outra questão é que a Lei do Orçamento determina que o Presidente deve regulamentar esta despesa, mas não o faz e foi sempre assim ao longo dos anos…

Estou a chegar lá, dei esta volta para chegar até aqui. O Presidente, para executar esta despesa, tem de aprovar um regulamento de execução e do controlo destas despesas e deve publicar por Decreto Presidencial. Tanto ontem como hoje, como não há outra entidade a fazer o equilíbrio, o Presidente não se importa em criar o regulamento ou uma lei específica. São feitas solicitações casuísticas e o Presidente autoriza de acordo com estas solicitações. O Presidente tem faltado ao cumprimento de uma norma, chamo eu, operativa de execução do orçamento. Ele até poderia fazer o seguinte: como depois da aprovação do orçamento, em regra, ele publica em Decreto Presidencial, estabelecendo regras de execução orçamental, deveria colocar neste decreto as regras de execução destas despesas especiais, mas infelizmente exclui isso deste decreto. Portanto, a culpa de tudo quanto está a acontecer de execução orçamental, dos roubos, é do Presidente porque é ele que tem de tomar medidas de controlo, fiscalização e persuasão para não haver violação do orçamento.

Estamos perante uma irregularidade ou uma ilegalidade?

Estamos diante de uma omissão. No Direito, quando temos o dever de tomar uma atitude e não a tomamos, temos responsabilidade. Por exemplo, se um professor de natação ensina crianças a nadar e não as controla e se as crianças entrarem no tanque e se afogarem, a culpa é do professor porque deixou de tomar providências. Neste caso, ao não produzir normas, o Presidente omitiu um procedimento logo a responsabilidade é dele.

E quais são as consequências possíveis desta situação que caracteriza como uma omissão?

Pela nossa Constituição, o Presidente não responde por esta omissão, mas noutras latitudes esta omissão tem consequências. A primeira consequência é política. Se isto acontecesse em outro país, refiro-me ao 'caso Lussaty', a cabeça do Presidente teria sido arrolada. O Brasil tem mecanismos próprios para responsabilizar o presidente, aliás, vimos todos a questão da Dilma Roussef. O que provocou o ‘impeachment’ foi exactamente um comportamento de natureza financeira. Aqui, infelizmente, a nossa Constituição foi de tal maneira elaborada que o indivíduo faz e desfaz, deixa de fazer o que deveria fazer e não é responsabilizado. Só é responsabilizado naquelas questões que eles sabem que são difíceis de ocorrer. Esta é a grande questão no nosso país.

Os deputados não terão também uma quota-parte na culpa, visto que esta regulamentação não é feita há vários anos?

Não. Sempre que há um debate parlamentar sobre o orçamento, pelo menos, quando estava no grupo parlamentar da Casa-CE, nunca deixámos de levantar esta questão dos Fundos Especiais por causa exactamente da sua utilização que não obedecia a um controlo de fiscalização ou regras de execução. Houve, por exemplo, no mandato 2012/2017 propostas feitas por nós, escritas, que não foram aceites. A maioria parlamentar não aceitou. Portanto, não posso dizer que, no actual contexto, terá a oposição alguma culpa ou que a oposição deixou de exercer o seu papel, não. O que tenho de dizer é que não tem sido possível a esta oposição fazer valer os seus esforços. Vou dar um exemplo: a tal proposta, que entregámos há quase dois anos, já prevê isso. Ou seja, se aquela lei tivesse sido aprovada, estaríamos a responsabilizar o Presidente da República por violação do estado democrático  de direito, porque o estado de direito exige o respeito pela lei. Hoje, pode-se ir por este caminho, porque a Constituição também permite, mas esbarra na maioria qualificada.

Acredita que com o 'caso Lussati' aumentou o conhecimento sobre a necessidade de regulamentação dos fundos especiais? A oposição terá mais facilidade de exigir mudanças ou até mesmo outra postura do Presidente e da maioria parlamentar?

A oposição terá mais incentivo para avançar, terá mais legitimidade para exigir, mas não irá conseguir por causa da maioria que tem o controlo do Parlamento.

E não acredita que este caso possa ter despertado para a necessidade de mudança, mesmo no seio do MPLA?

Haverá vontade de mudar se for esta a perspectiva de abordagem do presidente do MPLA, não é a abordagem da bancada do MPLA. Se o presidente tiver uma outra abordagem, em relação aos Fundos Especiais, então o quadro mudará. Se a vontade da parte do presidente não for nesse sentido, será difícil uma ousadia interna para mudar a situação.

Porquê?

Não quero tirar conclusões precipitadas de que ele conhecia as coisas, sabia das coisas, mas que deixou de agir. Mas posso dizer que autorizava as coisas, tinha a noção dos valores, mas faltava-lhe o controlo. Porque, se a questão do Lussati não chega às redes sociais, acredito que não teria vindo a público.

Acredita na vontade do Presidente João Lourenço em ter uma nova abordagem?

Vi quando empossou o novo ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança um semblante que não lhe é característico. Não tinha o vigor que tem demonstrado sempre. Tinha um semblante diferente de quem estivesse recolhido com o que aconteceu e, para mim, foi um sinal de que pode fazer alguma coisa. Mas fazer alguma coisa para mim não basta tirar este ou aquele, mas sim adoptar leis estruturantes para a gestão financeira dos Fundos Especiais e tem de haver uma responsabilização ao nível da hierarquia militar. Se isso não acontecer, os outros que entrarem farão o mesmo. E depois, será que há necessidade de ter aquele dinheiro todo para os serviços de informação e  segurança de uma única vez?

Continua a justificar-se a dotação que tem sido disponibilizada?

Não. Porque é que não se programa aquele dinheiro todo durante o ano e durante missões específicas fundamentadas com relatórios e o Presidente depois faz um cruzamento da informação? Ele tem condições para cruzar a informação do relatório. Por exemplo, se chegar no relatório que se precisa de X milhões para uma missão no Congo Democrático, no Ruanda ou noutro lugar, ele tem vários serviços de informação, então pode usar a técnica de cruzamento da informação. Parece-me que não foi prudente em fazer estas análises.

Há correntes que defendem que esta falta de fiscalização, ou prudência, é propositada por ser também dos fundos especiais de onde supostamente sai dinheiro para o MPLA garantir vitória nas eleições. Concorda com esta leitura?

Não posso, de forma alguma, olhar para um benefício directo de quem autoriza, mas dizer que é uma clara distracção. Pode ter havido falta de prudência.

Falta de prudência quando sabemos que a falta de regulamentação acontece há anos, já era assim, no tempo do anterior PR?

No 'tempo da outra senhora', o outro senhor sabia, tinha controlo do Estado, sabia que aquele dinheiro existia. O que aconteceu é que, a determinada altura, todos se subordinaram a ele, foram obedientes a ele, apesar de, nos últimos anos, já fazerem alguma coisa sem ele tomar conhecimento devido à sua idade. Poderia não conhecer tudo, mas conhecia. Só que também era muito inteligente, sabia exactamente lançar as suas pedras de informação e colher as informações e analisava, tinha o controlo do Estado. Por exemplo, nesta questão do dinheiro que foi parar às mãos aquele indivíduo (Major Lussaty) ele poderia ter tomado conhecimento a partir do momento que o dinheiro saiu e chamar quem tivesse o dinheiro e dizer ‘você tem aquele dinheiro, vai buscar’. E, muitas vezes, fez isso, segundo sei.

“A culpa de tudo quanto está a acontecer de execução orçamental é do Presidente”

Está a dizer que os casos só não eram públicos?

Exactamente. Agora, os casos são públicos, porque não há controlo do Estado. Quando não se tem o controlo do Estado, muitas vezes, só se dá conta das coisas quando já estão muito fortes e quando estão fortes já não se tem capacidade de controlar. Se tivesse controlo, as coisas ficariam nos bastidores, no 'ouvi dizer' e ponto final. No 'tempo da outra senhora', havia bastidores, mas evitava-se estes escândalos. Ele mandava recolher. Chegava às pessoas e dizia ‘você fez isso e aquilo, devolve o dinheiro’. Ele fez isso aos Kopelipas e companhias, nós sabemos disso. Porquê? Porque tinha o controlo, eles respeitavam-no e era pessoa querida no seio deles.

O Presidente João Lourenço foi, por exemplo, ministro da Defesa. Não teve tempo para conhecer estes meandros?

Não, porque o ministro da Defesa também tinha uma subordinação. Além de subordinar-se ao Presidente da República, subordinava-se também ao chefe da Casa de Segurança, não tinha o controlo absoluto nem dos serviços de informação militar. Também não tinha o controlo absoluto das Forças Armadas.

Quando diz que José Eduardo dos Santos tinha controlo do Estado não estará perante algum contra-senso, considerando os casos que se vão tornando públicos? A PGR, no ‘caso Major Lussati’, revelou que a prática era de anos anteriores à presidência de João Lourenço...

O dinheiro, em kwanza, que foi apanhado com o Lussati, pelo menos o que sei, é um dinheiro do mês. Ou seja, aquele dinheiro não é do tempo do José Eduardo dos Santos, é de agora, quer dizer que o descontrolo mais descarado aconteceu neste tempo. Naquele tempo, eles faziam e escondiam. Neste tempo, as coisas foram ficando mais expostas. Há coisas que, devidamente analisadas, me permitem afirmar que, no 'tempo da outra senhora', as coisas aconteciam, mas eram controladas e hoje acontecem e não há controlo do chefe.

Como olha para o futuro da Casa de Segurança da Presidência da República?

A concentração de poder numa única pessoa, numa única estrutura política administrativa, facilita o exercício do poder de forma menos correcta possível. Ou seja, há práticas recorrentes que se tornam vícios.

É exagerado pensar que o Presidente está, até certo ponto, exposto?

Está exposto, quando, na sua própria casa, acontecem situações desta natureza. Sem o controlo dele, está maleável. Não temos outra observação a fazer.

Mas seria exagerado pensar, por exemplo, em situações semelhantes a um golpe de Estado ou um golpe partidário, ou seja movimentações no sentido de João Lourenço deixar a liderança do partido?

Os golpes acontecem em países cujas estruturas de fiscalização e as lideranças são fracas. Se as pessoas se aperceberem que a liderança está fraca, é óbvio que é uma reflexão a ser feita, mas acredito que, pelo histórico do País, não há ninguém disposto. Somos pessoas que atravessámos momentos difíceis e estamos todos imbuídos em construir um país melhor.   

Na posse do general Furtado, como ministro de estado e chefe da Casa de Segurança, João Lourenço também apontou o dedo ao BNA. Estas instituições, face a estas despesas e pelo seu carácter secreto, perdem alguma margem no seu papel de fiscalizar?

Em relação ao Banco Nacional de Angola, diria que é uma forma de 'sacudir a água do capote'. O BNA não faz nenhuma operação daquela envergadura sem uma autorização da entidade com o poder de a fazer. Ou seja, aquelas operações da utilização dos Fundos Especiais são feitas a partir de uma autorização do Presidente. Esta autorização vai para o Ministério das Finanças a quem se comunica que a despesa será feita de acordo com os Fundos Especiais. O Ministério, por sua vez, manda para o BNA com o formalismo. O BNA recebe, lê os documentos e autoriza. O BNA não tem nada que ver com o que está a acontecer, tecnicamente é uma instituição instrumental. Não é o BNA que autoriza, faz aquilo que as autorizações políticas permitem.

Perfil

Uma vida no Parlamento

Lindo Bernardo Tito nasceu em Fevereiro de 1969 na Lunda-Norte. Licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, é Mestre em Direito. Exerce advocacia e docência. Foi eleito deputado na primeira legislatura pelo PRS, mantendo-se como deputado entre 1992 e 2008. Neste período foi 4º. secretário da Mesa da Assembleia, além de presidente do grupo parlamentar do PRS. Voltou a ser eleito em 2012 e 2017 como independente na lista da coligação Casa-CE. Foi vice-presidente da coligação e também vice-presidente da bancada parlamentar da Casa-CE. Em 2018, no entanto, anunciou o seu auto-afastamento das tarefas ligadas à coligação.