“A lei do repatriamento coercivo tem gralhas muito graves”
ENTREVISTA. Manifesta-se contra a possibilidade de aprovação de uma lei que define que processos devem ou não ser objectivo de recurso ao Tribunal Constitucional. E defende que a situação económica e financeira torna inviável a aplicação da lei que prevê a criação de 60 tribunais de comarca.
Foi criada, pelo Presidente João Lourenço, uma comissão para a Reforma da Justiça e do Direito. O que é que a reforma pode e ou deve trazer?
Já se fala da reforma há mais de duas décadas e já se gastaram rios de dinheiro com esta reforma que, em princípio, deveria trazer maior qualidade, celeridade e eficácia na administração da justiça. Mas, infelizmente, não vislumbramos qualquer sinal positivo ou material desta reforma. Não está a ser feita tal como ela deveria ser, isto é, de forma mais organizada. Teria de começar com a elaboração, discussão e aprovação de um programa da reforma com todos os operadores de direito para que pudéssemos determinar em quanto tempo se vai realizar esta reforma, em quantas fases, quais são as tarefas a realizar em cada uma dessas fases e que objectivos pretendemos atingir em cada uma dessas fases para se chegar ao objectivo estratégico final.
E como é que tem sido feita?
Infelizmente, não tem sido assim. Um programa previamente discutido e aprovado permitiria não só à sociedade civil no seu todo, mas essencialmente aos operadores do direito, sindicar o cumprimento das tarefas. Não existindo este programa, fica difícil sabermos o que é que está a ser feito. Por outro lado, temos de abandonar a ideia de que a reforma da justiça é uma tarefa meramente legislativa. Fala-se apenas de novos códigos, novas leis, mas ouve-se muito pouco sobre aquilo que é o essencial, a formação do homem que vai aplicar estas leis. O homem deve ser o ponto de partida e de chegada porque a reforma visa garantir maior certeza e segurança junto dos signatários da norma que são os cidadãos e, para isso, ela tem de ter, no centro, como referência primeira e última, o homem.
E não acredita que, no espírito do ‘corrigir o que está mal e melhorar o que está bem’, desta vez, a reforma venha a concretizar-se?
O problema não é acreditar ou deixar de acreditar. Tenho plena certeza e quero acreditar que o mais alto mandatário da Nação, ao criar esta comissão, tem um fim único, melhorar a qualidade da justiça. No passado, também foi assim, quando se criou a última comissão da reforma que deu lugar à Lei 2/15 de 2 de Fevereiro, que veio consagrar a lei da organização e funcionamento dos tribunais. A intenção também foi melhorar, foi levar a justiça mais próxima da comunidade, por isso é que se projectaram 60 tribunais de comarca. Mas, já naquela altura, eu dizia que estava errado, que tínhamos de parar para rever as coisas e hoje pior ainda porque há maiores dificuldades financeiras e há outras prioridades. Com esta crise da covid-19, a situação piorou, o preço do barril do petróleo baixou para a metade. Isso vai fazer com que sejam redefinidas as prioridades do Estado. A justiça deve ser uma prioridade, mas não me parece haver capacidade financeira para se projectar e institucionalizar 60 tribunais de comarca.
Está a dizer que a implementação dos 60 tribunais de comarca é um dos temas a ser analisado e ou alterado?
Não estou a defender a extinção dos tribunais de comarca. Não estou muito preocupado com a denominação, se fica de comarca ou provincial. O que interessa é a substância. Deveríamos repensar a Lei 2/15, porque não tem aplicabilidade neste momento, devido à crise económica e financeira que se agudizou. Já não tinha antes e a prova é que este diploma foi aprovado em 2015, já se passaram cinco anos e, dos 60 tribunais projectados, quantos foram inaugurados? Os últimos foram inaugurados à pressa no consulado do doutor Rui Ferreira, terão sido inaugurados entre 10 e 15 tribunais. Antes não existia nenhum. Quantos anos se precisará se tomarmos como média a implementação de 10 ou 15 por ano? Além de que é necessário formar os quadros. Fiz contas muito avulsas há uns anos. Para os 60 tribunais de comarca implica, no mínimo, a existência de uma sala dos crimes comuns em cada um destes tribunais e uma sala implica várias secções. Mas estou a falar de uma sala com uma secção. Para cada dia de julgamento, serão necessários três juízes na sala. Se houver apenas três juízes numa secção, eles já não fazem mais nada porque têm de estar na sala todos os dias ou então realizam julgamentos em três dias da semana e o tribunal fica parado nos outros dois dias para analisar os processos. No mínimo, serão necessários cinco magistrados judiciais. Sabe quantos juízes seriam necessários para os 60 tribunais? 300 magistrados judiciais. Naquela altura, quando fiz estas contas, dizia-se que, em Angola, em todas as áreas da actividade dos tribunais, só havia cerca de 300 magistrados judiciais. Significa que nem pessoal em número e qualidade havia para pôr a funcionar os 60 tribunais.
Quanto tempo acha então necessário para se estruturar e executar a reforma?
Uma reforma devidamente estruturada e programada deve ser entre cinco e 10 anos com fases. No mínimo cinco à razão de um a dois anos para cada fase. Primeira fase, para se fazer o levantamento do que existe no país, discutindo, aprovando o programa e, se possível, fazer estudos comparados aos países próprios ou afins à nossa realidade jurídica, para depois, no final dessa fase, se elaborar um programa já consensual. Na segunda fase, começar a dar os primeiros passos até chegar à fase conclusiva. Além de que também acho um pouco incongruente, e até me parece que estamos a ‘colocar a carroça a frente dos bois’, quando se fala hoje da reforma da justiça e há bem pouco tempo se falava da reforma do Estado. A reforma da justiça é uma componente da reforma do Estado. Tínhamos, até há bem pouco tempo, um Ministério da Administração do Território e Reforma do Estado e era suposto, neste mandato, assistirmos ao início de uma reforma do Estado, mas, até hoje, não conhecemos qual é o programa da Reforma do Estado. Teríamos de partir deste programa para que dele encontrássemos o espaço para a reforma da justiça.
Hoje, como está o homem da justiça?
O homem da justiça, infelizmente, continua a ser o enteado do Estado. Se o juiz é titular de um órgão de soberania, eu não preciso de dizer nada que as pessoas não saibam. É só olhar para as condições em que trabalha e vive, e olhar para as condições em que vivem os auxiliares do poder Executivo e um deputado. É abismal a diferença. Os auxiliares do poder Executivo que nem sequer são titulares do órgão de soberania, para se deslocarem a uma província, têm até um avião privado para os levar. Vejam que o juiz estava a voltar para o Namibe, seu local de trabalho, de boleia num camião. Isso explica tudo. Temos muitos juízes a andar a pé. O juiz tem de ter condições para reduzir, ao máximo, o risco das influências externas. Não falo só dos magistrados judiciais, mas também dos magistrados do Ministério Público.
Enquanto advogado, sente que tem havido decisões influenciadas que podem ter origem na falta de condições de trabalho dos juízes?
Primeiro, estou a partir de uma base objectiva que, nestas condições, podemos esperar tudo e mais alguma coisa. Se pudermos criar as condições à altura das funções de um magistrado judicial, do Ministério Público, dos oficias de justiça, vamos ter uma justiça mais credível. Até porque a justiça é a reserva moral da sociedade. Quando a justiça cai no descrédito, é o fim da picada e isso temos de evitar. Mesmo para o dito combate à corrupção e moralização da sociedade, temos de ter tribunais à altura de emprestar uma contribuição activa e positiva para a moralização da sociedade, porque, se as pessoas não acreditarem nos tribunais, não há como moralizar a sociedade. Podem fazer-se muitos comícios, conferências, palestras, distribuir panfletos, as pessoas não vão acreditar. A PGR andou a distribuir panfletos no âmbito do combate à corrupção para os cidadãos denunciarem actos de corrupção, mas quantas pessoas já fizeram denúncias e só tiveram problemas na vida? Há muitos casos. Isso não encoraja as pessoas a participar neste processo.
Nas condições actuais, não é possível fazer o combate à corrupção?
Não, não vamos a lado nenhum. Quanto a isso, não tenho dúvida. O combate à corrupção não deve ser visto da forma como se assiste na sociedade angolana. Prendeu A; prendeu a enfermeira que estava a vender medicamento; prendeu o agente da polícia que estava a pedir gasosa ao automobilista. Estamos a atacar os efeitos, temos de atacar as causas. E onde é que estão as causas? Estão aí bem identificadas. Enquanto o Estado continuar a pagar mal os seus funcionários e a não ter condições à altura para a realização efectiva e eficaz das suas tarefas, os esquemas não vão acabar. É necessário melhorar as condições dos funcionários públicos, é preferível que o Estado pague bem os seus funcionários e eles se dediquem a tempo inteiro e de corpo e alma. Até era melhor reduzir os funcionários, mas pagar bem aqueles que lá ficarem, encontrem uma solução para reenquadrar as outras pessoas, mas temos de deixar de fazer gestão política do poder popular. Se a administração pública não tiver uma máquina eficaz, não vamos conseguir combater a corrupção. O Presidente José Eduardo dos Santos, depois da guerra, declarou tolerância zero à corrupção. Como é que estava a corrupção quando ele terminou o seu mandato?
Não lhe parece que tenha faltado, sobretudo, vontade política ou mais acção?
Não sei. O Presidente da República não é omnipresente, pode ter vontade política, mas, se não tiver auxiliares à altura nos vários níveis da cadeia hierárquica e funcional do Estado, não consegue mudar as coisas. Hoje já se diz também que continuam os desvios. Não basta vir o Presidente e dizer que agora vamos combater e quem for apanhado vai para a cadeia. É preciso criar mecanismos de controlo. Não é o Presidente que tem de sair da cidade alta e ir às províncias saber se há corrupção ou não. São os seus auxiliares aos vários níveis da hierarquia funcional do Estado. E é preciso criar condições materiais e salariais para que estas pessoas não se deixem aliciar.
Enquanto não existem estas condições, como se vai gerir os casos de corrupção?
Têm de ser sancionados, não estou a dizer o contrário, mas isto é ‘tapar o sol com a peneira’. Esta mentalidade ainda paira por aí em massa, mas não podemos dizer que o Presidente João Lourenço é culpado porque ele não pode fiscalizar tudo isso. Há aqui uma vontade política que não é traduzida na prática por aquelas pessoas que têm de levar a cabo esta tarefa em concreto. É preciso que haja condições materiais objectivas e subjectivas para que esta vontade política se traduza na prática, porque, senão, vamos continuar com os discursos bonitos de combate à corrupção e nepotismo. Ainda há determinados dirigentes que preferem levar o primo, sobrinho para pôr na instituição, fala-se abertamente e não acontece nada. Temos de repensar e tomar medidas estruturantes, porque o problema é estrutural e não apenas conjuntural. A estrutura da sociedade não sustenta a mentalidade pretendida para o combate à corrupção. Antes pelo contrário, desestimula.
No dia da sentença do caso CNC, disse que ponderava deixar a advocacia. Foi uma declaração feita à quente ou continua a ponderar?
Não foi à quente nem foi algo novo. Venho a meditar sobre isso há muito tempo. Já não deveria estar aqui. Só estou porque os meus colegas me travam. Muito dos meus colegas me têm pedido para aguentar mais um bocado. Por mim, tinha deixado a advocacia. Não há condições para o exercício de uma advocacia séria e plena em Angola. Ainda se confunde o advogado com o bandido. Hoje, em Angola, ser advogado é ser bandido porque, inclusivamente, muitos de vocês profissionais da comunicação social, que têm o dever de informar para formar, manifestam algum défice formação. Querem abordar questões que não dominam e deturpam a própria opinião pública. Já vive situações do género. Ainda hoje, se abrir as redes sociais, vai encontrar pessoas a comentar sobre a minha intervenção em determinados processos mediáticos: esse advogado é um bandido, deveria também ir para a cadeia. Há quem até insinue: deveria ser morto. São poucos os advogados em Angola que aceitam fazer defesa na área criminal, podem fazer este estudo. Vão concluir que cerca de 90% dos advogados não fazem defesa na área criminal porque é a parte mais visível da justiça e que, às vezes, transmite uma falsa ideia de que somos muito ricos.
Mas ganha-se muito bem, não?
Não, não, não. Na área criminal é onde se ganha menos. Os advogados que muito ganham os seus nomes nem aparecem. São aqueles que tratam mais de empresas, questões de natureza imobiliária que, na venda de um condomínio de milhões de dólares, vai buscar um por cento ou 0,5 e já nem precisa de trabalhar o ano todo. O advogado criminal é comparado à infantaria nas forças armadas, é aquele que rasteja, que corre todos os dias. O que ganha dinheiro é considerado a tropa de elite, força aérea. Não sai todos os dias, não corre todos os dias. Nós corremos riscos enormíssimos, inclusivamente, às vezes, somos mal interpretados até pelo próprio poder político. Por exemplo, quando me vêem nestes processos, dizem logo: mas é sempre ele, mas porquê ele? Este senhor está contra o sistema? E, às vezes, pergunto-me: qual é o sistema? Sistema é o que está na Constituição.
E porquê sempre o senhor?
Não sou o único, mas somos poucos, porque as pessoas não querem correr riscos. Aliás, não são só os advogados. Os intelectuais deste país são muitos que, quando são chamados a pronunciar-se sobre determinados temas sensíveis, ou não falam, ou, se falam, dizem mentiras para agradar quem está no poder, porque também está à espera que o chamem para ocupar um lugar ‘à sombra da bananeira’. Quando um advogado defende a aplicação correcta da lei, está a defender a Constituição, está a defender o sistema. Quem viola a lei é que está a agir contra o sistema. A Constituição diz que qualquer cidadão, ainda que encontrado a praticar um crime em flagrante delito, por mais hediondo que seja a natureza deste crime, é presumido inocente enquanto não existir uma decisão condenatória transitada em julgado. Nós não defendemos criminosos, defendemos o cidadão inocente. E quem diz que o cidadão é inocente até que haja uma decisão condenatória definitiva é a Constituição. Se a Constituição está mal, então quem de direito tem de alterar e dizer assim: “Os advogados não devem defender os cidadãos que são acusados de homicídio ou de desvios de fundos públicos”.
E porque o desabafo no caso CNC?
Em princípio, não quis falar de processos que estão pendentes na justiça para não perturbar o bom funcionamento dos órgãos da administração da justiça nem procurar influenciar à distância. Provavelmente, poderíamos abordar este tema depois de a decisão transitar em julgado, mas recomendo a ler as declarações de voto dos juízes do Supremo em sede do recurso que nós interpusemos e por aí vai poder medir porque é que eu disse aquilo. É assustador, continuo a dizer isso: é assustador. Se ler as declarações de voto de quatro ou três juízes conselheiros, não são advogados, são juízes do tribunal superior que não aceitaram votar a favor daquela decisão e emitiram declarações de voto a explicar as razões do porquê que não votavam. Se queremos uma justiça séria, deveria ter acontecido alguma coisa depois daquelas declarações de voto que se tornaram públicas por via das redes sociais. É estranho que a sociedade não tenha reagido. Nem os intelectuais deste país reagiram, porque as pessoas estão a ver que é o Tomás. Mas aquilo pode acontecer com qualquer um de nós amanhã se ninguém reclamar hoje. São estas coisas que não consigo compreender como é que a dita intelectualidade angolana aplaude. Somos cobardes, somos cúmplices, somos co-responsáveis pela situação que o país vive.
Há outro caso cuja decisão ou condução o desanime?
Todos ainda estão em segredo de justiça, outros a tramitar e não posso fazer abordagem porque o estatuto da Ordem dos Advogados me proíbe. Há um caso que já transitou em julgado, que é do Quim Ribeiro. É muito parecido ao caso do Miala. Então o Miala não foi preso? Não foram lá muitas pessoas dizer que o Miala fez e desfez? Hoje as coisas mudaram e as mesmas pessoas vieram a público dizer que foram obrigadas. Isso é cobardia. Não faço isso. Não digo coisas para agradar nem a gregos, nem a troianos, digo o que penso com responsabilidade e com respeito às instituições e às pessoas que são titulares destas instituições. O facto de eu defender uma tese que não é partilhada por certas pessoas não significa que eu seja pior que os outros. É altura de olharmos para Angola como uma Angola de todos os angolanos. Não pode existir uma Angola do MPLA, uma Angola da Unita e uma Angola da FNLA e outra do PRS. Assim não vamos a lado nenhum.
E ainda há os ‘marimbondos’ e ‘não-marimbondos’…
Não sou muito apologista dessas coisas de marimbondos. Devemos olhar para o angolano como angolano. O princípio da igualdade está na Constituição no artigo 23 e não há nenhuma norma que diz que, se você praticar alguma infracção criminal, perde a sua qualidade de cidadão. Não vou muito por este dicionário político de marimbondos e não-marimbondos. Angola não vai ser construída por meia dúzia de pessoas nem apenas por militantes do MPLA. Só com esta visão é que vamos poder promover o desenvolvimento e bem-estar social de Angola.
Qual é a opinião que tem do desempenho da PGR, sobretudo nos processos de combate à corrupção?
Não se pode esperar uma coisa diferente. As pessoas que estão na justiça hoje são as mesmas de ontem. Não basta mudar a liderança ou mudarmos uma lei para mudarmos o comportamento. O que tem de mudar são as mentalidades. Os órgãos de justiça vão tentar fazer algo diferente e, para muitos, melhor, mas, para mim, não sei se é melhor. Tenho dúvidas. Veja que os mesmos magistrados que julgaram a providência, aquando da nomeação da engenheira Isabel dos Santos ao conselho da administração da Sonangol e validaram a decisão do chefe de Estado, muitos deles são os mesmos que ainda lá estão. Se não há interferência política na administração da justiça, perguntem a esses magistrados porque é que ontem não agiram como estão a agir hoje? Estão a agir assim porque acho que alguém politicamente lhes disse agora podem fazer isso. Estão a confirmar que, no passado, alguém politicamente lhes disse “não façam isso”. Isso é mau. É preciso que haja independência dos órgãos de soberania, separação de poderes e, para isso, é necessário que haja condições objectivas para que essa separação de poderes seja uma realidade. Eu entendo que não há condições para uma verdadeira separação de poderes. E não há, começando pela própria Constituição. Não estou a dizer que a Constituição não presta, não é isso. Essa Constituição tem muitas coisas boas, mas tem aspectos que têm de ser alterados.
Quais são as coisas boas e quais devem ser alteradas?
Tenho estado a defender uma alteração parcial ou pontual dessa Constituição porque tem um livro extraordinário sobre direitos fundamentais, liberdade e garantias do cidadão, mas a organização das instituições, para tornar efectiva a realização desses direitos, liberdades e garantias fundamentais, é que peca. Neste momento, fazendo uma análise científica e académica do actual sistema político vigente em Angola e desenhado na nossa Constituição, não há como ter órgãos independentes. Não há como garantir a separação de poderes, porque, se o titular do poder Executivo é o número um da lista do partido vencedor das eleições, ele tem maioria no parlamento. Tudo o que for decidido a nível político, o parlamento vai aprovar e o parlamento é quem aprova as leis e os tribunais só têm de implementar, bem ou mal. O Conselho de Ministro decidiu recentemente alterar a lei do processo constitucional, porque entendem que os recursos nem todos devem ir para ao Tribunal Constitucional. Querem definir que matérias é que podem ser objecto de recurso no Tribunal Constitucional. Esta lei nem devia ser discutida numa fase de crise, que é esta que estamos a viver da pandemia, por ser uma lei de interesse da sociedade no seu todo. Tem um grande alcance na defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, porque, até certo ponto, vai reduzir algumas garantias do cidadão.
Não concorda que se aprove esta lei?
Não, porque a própria Constituição já define. A Constituição é clara quando diz qual é a competência do Tribunal Constitucional. Diz, de forma clara no artigo 180, que ao Tribunal Constitucional compete administrar a justiça em matérias de natureza jurídica ou constitucional nos termos da Constituição e da lei. Não vejo razão de uma lei avulsa dizer que isso não pode ir ao Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional é que deve avaliar se a matéria requerida no recurso merece provimento ou não. Nós temos tantas debilidades na nossa justiça. Há violações da Constituição em quase todos os processos, nós estamos num processo de aprendizagem. Isso, no fundo, é uma tendência de limitar o direito ao recurso do cidadão, porque a tendência que se observa hoje é dos tribunais comuns, esgotados os recursos do fórum comum, obrigarem o cidadão a cumprir logo a pena. Eu entendo e defendo que, num país como o nosso, onde as instituições são frágeis, quanto mais mecanismos de controlo existirem, melhor, porque garante algum equilíbrio. Porque, infelizmente, países como Angola, em vias de desenvolvimento, ao invés de os homens servirem as instituições, as instituições é quem servem os homens. Parece-me cheirar um pouco à pretensão de que, como queremos combater a corrupção, então, depois de condenado, tem de ir logo para a cadeia.
Se olharmos para a lógica da maioria na Assembleia, a lei será aprovada…
Se o MPLA tem maioria no parlamento, se o Presidente, titular do poder Executivo, manda um projecto de lei e ele é, ao mesmo tempo, presidente do MPLA, até no âmbito da disciplina partidária interna, eles têm a obrigação de cumprir, sob pena de se sujeitarem a um processo disciplinar a nível interno. Por isso, entendo que é preciso discutir de forma aberta, não só entre partidos, mas também com a sociedade civil e académica qual é a melhor forma de desenharmos o sistema de governação em Angola. É preciso que haja separação de poderes em Angola.
Como analisa o processo de repatriamento dos fundos desviados?
Enganam-se aqueles que pensam que é recuperando os supostos dinheiros desviados do passado que vamos reconstruir e melhorar a vida dos angolanos. Não é por aí. Angola tem potencialidades. Não estou a dizer que não se deve recuperar aquilo que eventualmente este ou aquele tirou, mas, desde que se prove que tirou ilicitamente. Não basta dizer, porque há uma confusão muito grande. Uma coisa é dizer-se politicamente que alguém desviou ou retirou ilicitamente o dinheiro. O conceito de ilicitude não tem o mesmo sentido na perspectiva política e na perspectiva jurídica ou penal. Politicamente, é fácil dizer que você desviou dinheiro, mas, do ponto de vista do Direito Penal, você tem de fazer prova. Veja bem: quando o Presidente João Lourenço visitou Portugal, quer o presidente português, Marcelo Ribeiro, quer o primeiro-ministro, António Costa, foram peremptórios em dizer que estariam dispostos a ajudar Angola a recuperar os seus activos, mas colocaram um senão. Marcelo foi mais elegante quando dizia “vamos ajudar, desde que isto não ponha em causa o sistema financeiro de Portugal”. Está a dizer que, se o repatriamento implicar algum buraco financeiro no sistema financeiro português, o dinheiro não saí. Deixou um aviso. Cabia a nós reflectir e encontrar as melhores formas de como recuperar este dinheiro sem grandes alaridos.
E…
E mais: quando se diz que o dinheiro sai ilicitamente de Angola, como se diz avulsamente, muitos até devem ter saído, é verdade, mas não é fácil provar, porque este dinheiro não saiu nos sacos nem nas malas. Saiu pelo sistema bancário. Tem assinatura do governador a autorizar ou do administrador de um banco comercial. No mínimo, estes governadores que passaram pelo BNA, incluindo os administradores, têm de ser chamados como co-arguidos ainda que em titulo de incumprimento para não dizer de cúmplice. E, por exemplo, o actual governador do BNA também já foi governador no tempo de José Eduardo dos Santos e também saíram dinheiros. Está a ver o risco que se corre inclusive de beliscar a idoneidade das próprias instituições de Angola lá fora. Quem é que garante que lá fora agora acreditam mais no Banco Nacional e nos bancos comerciais que ontem? A desconfiança agora é maior e isso vai dificultar a manobra do próprio Estado angolano nas operações externas. E mais: quando se diz que as pessoas que tiraram dinheiro ilicitamente de Angola lhes foi dada a oportunidade de, em seis meses, voluntariamente devolverem e não aproveitaram, não é verdade. O Presidente João Lourenço está a ser enganado. As pessoas que lhe devem assessorar juridicamente não lhe estão a dizer a verdade.
Como assim?
Aquela lei do repatriamento voluntaria morreu à nascença. Sabe porque? Não há notícias de que a casa forte do Banco Nacional tenha sido assaltada. Todo o dinheiro que saiu do erário saiu através de um funcionário público que tinha a guarda ou a gestão daquele dinheiro. Logo, na origem do dinheiro, está um crime de peculato, mas a lei está a dizer que não se aplica para o crime de peculato. O que é que você está a dizer? Que a lei não tem aplicabilidade, porque ninguém que eventualmente foi funcionário público e desviou dinheiro vai voluntariamente entregar-se às autoridades para ser preso. Se a lei foi para beneficiar e encorajar as pessoas que tiraram dinheiro indevidamente a retornarem estes valores de forma voluntária e sem nenhuma sanção naquele período, mas o funcionário público que realmente é quem tirou este dinheiro não está contemplado na lei. Como é que você quer que o dinheiro volte? Ninguém trouxe dinheiro. Com a agravante de que a lei tinha de ser regulamentada e, pelo que ouço, só foi regulamentada em Novembro quando o prazo terminava em Dezembro.
Mas o Governo diz que voltou algum dinheiro…
É o que o Governo diz. Pode ter acontecido, mas deve ser alguém que tinha uma relação privilegiada e sabia como trazer o dinheiro porque muitas outras pessoas que queriam trazer perguntavam aos bancos comerciais como é que poderiam processar, mas nem os bancos sabiam orientar os seus clientes. Nem o Banco Nacional sabia orientar as pessoas como proceder. Só em Novembro é que a lei foi regulamentada, faltava um mês e não se tira milhões de dólares de um país para o outro em um mês. É um processo complexo. Além de que é preciso saber qual é o regime jurídico que vigora nestes países em relação a grandes somas de dinheiro, porque há países que só permitem a cooperação judicial mediante um acordo bilateral ou se existe algum acordo multilateral através do qual vai pedir a cooperação. Se o dinheiro estiver num país que não tenha cooperação com Angola, não há como ir buscar.
No âmbito do repatriamento coercivo, o Presidente falou da possibilidade de contratar caças fortunas…
O próprio Presidente João Lourenço reconheceu que este dinheiro pode não voltar nem hoje nem amanhã e que o mérito dele, realmente, foi ter lançado as bases. Ter criado a intenção material de se proceder desta forma. Foi peremptório em dizer que pode não ocorrer durante o seu mandato. É utópico pensar-se que temos de recuperar este dinheiro rápido para reconstruir Angola. Esta lei do repatriamento coercivo tem gralhas muito graves e denota que são pessoas curiosas que só querem agradar o chefe que a elaboraram, porque não entendem nada de Direito Processual Penal.
Pode citar algumas dessas gralhas?
Sim. Por exemplo, se for ao artigo primeiro desta lei, está lá que só se aplica aos casos em que já há condenação, mas você assiste, nos dias de hoje, a PGR a apreender imóveis e etc., com base nesta lei.
Mas não se trata de arrestos provisórios?
Mas quando ela evoca esta lei, está dizer que está a aplicar esta lei. Se está a ser chamada, está a ser feita de forma indevida. E mais. Há uma outra contradição. O artigo 9.º vem dizer que quem deve decidir a aplicação do arresto preventivo é um juiz, mas o que assistimos no dia-a-dia não é pelo juiz que se tem estado a aplicar, é o Ministério Publico porque, erradamente, no artigo 13, o legislador, ao definir as definições do órgão que criou, que é o chamado Serviço Nacional de Recuperação de Activos, coloca como uma dessas atribuições a apreensão de bens. Há uma contradição. Então a lei, no artigo 9.º, diz que o Ministério Público requer a todo o tempo ao juiz o arresto preventivo e, no 13, vai dizer que o Serviço Nacional de Recuperação de Activo pode identificar, localizar e apreender. É uma contradição. E mais. A solução hoje, ao nível do direito positivo vigente, é de que a aplicação destas medidas deve ser da competência de um juiz e não do Ministério Publico. Se olhar para a solução que se encontra na chamada lei das medidas cautelares, vem lá dizer que o juiz pode, a requerimento do Ministério Publico ou do lesado, decretar o arresto preventivo de bem do arguido ou da pessoa civilmente responsável. Isso quer dizer que não é o Ministério Público que aplica directamente, tem de requerer ao juiz.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...