A morte da imprensa
O que se passa hoje na comunicação social em Angola é excessivamente grave para ser encarado com ligeirezas. Sem roçar os calcanhares do exagero, não há memória no pós-guerra de um período em que o regime tenha ido tão longe no descaramento para cercear a imprensa. Entre 2002 e 2017, o poder também intimidou e prendeu jornalistas. Chantageou órgãos de comunicação social privados, mas nunca chegou ao ponto de decretar o encerramento de qualquer um com recurso a falsos e forçados expedientes administrativos. E nunca o fez, apesar de ter sido precisamente nessa altura em que abundaram jornais de todo o tipo, incluindo uns tantos que jamais mereceram ser tratados como jornais. Nesse período, o poder não fechou órgãos de comunicação social, apesar de ter realizado três eleições, a última das quais em 2017 sob a ameaça real de perder o poder (muitos pensam que perdeu mesmo). Não encerrou títulos com infundados argumentos legais, mesmo tendo sido nesse período em que alguns jornais e rádios independentes mantinham uma postura editorial quase confrontacional, através da crítica e da denúncia da desgovernação.
Entre 2002 e 2017, a táctica para a fragilização da imprensa privada independente era outra. Passava por impedir a canalização de recursos para estes órgãos por via da publicidade, empobrecendo-os de tal forma que ficava facilitado o aliciamento dos seus profissionais para a imprensa pública e para outros destinos mais macios. E, quando este recurso não funcionasse, optava-se pela última machadada, a compra forçada. Foi o que se passou com um dos jornais privados mais incómodos de sempre ao regime de José Eduardo dos Santos, o extinto ‘Semanário Angolense’ do veterano Graça Campos.
Hoje, entretanto, o poder assume com clareza que os tempos e os métodos mudaram para pior e que, para intimidar a imprensa que dá trabalho, não pretende perder tempo com esquemas que dão trabalho. É simples. Se tiver de obrigar uma rádio, ainda que privada, a despedir um comentador incómodo, obriga apenas: ‘despede ou não tens a licença renovada’. É o chamado papo recto. Se tiver de suspender canais de televisão de achados inimigos, suspende apenas. Não importa que tenha de evocar deturpadamente a lei e, não menos vergonhoso, não importa que há dois anos tenha sido o próprio poder a homenagear a inauguração dos estúdios da Zap Viva ou o lançamento do JR África da TV Record. Ou seja, com a mesma Constituição, o mesmo Presidente, o mesmo Governo, o mesmo Ministério e a mesma Lei de Imprensa, determinados órgãos de comunicação social, fazendo as mesmas coisas, podem passar de legais para ilegais da noite para o dia.
O projecto de silenciamento da imprensa privada inclui, entretanto, outras frentes não menos chocantes. À intimidação directa aos meios junta-se agora uma proposta de revisão do pacote legislativo da comunicação social que, entre outros recuos, pretende coartar a hipótese de os órgãos explorarem alternativas externas para a sua sobrevivência. Ao contrário da Lei actual que não impede, por exemplo, os órgãos de serem financiados por organismos internacionais, a proposta em consulta pública elimina expressamente essa possibilidade. Ao mesmo tempo, mantém o limite de 30% de participação de capital estrangeiro nas empresas de comunicação social. Definitivamente, só não vê quem não quer: no pós-guerra, o poder nunca se empenhou tanto na morte da imprensa privada.
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