EMÍDIO PINHEIRO, BANCÁRIO

“A nova política cambial é o retomar do normal funcionamento do mercado primário”

Numa conversa telefónica de pouco mais de 27 minutos, desde Portugal, o ex-CEO do BFA analisa os desafios da banca à volta da nova política cambial adoptada pelo BNA e os possíveis cenários das relações entre Angola e Portugal na sequência do ‘caso Manuel Vicente’. Fala também sobre os desafios macroeconómicos do país.

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A credita que o diferendo do ‘caso Manuel Vicente’ poderá bloquear as relações económicas entre Angola e Portugal?

As relações entre os dois países são muito importantes, muito intensas e têm potencial para se intensificarem ainda mais. É evidente que, se houver atritos políticos entre os dois países, pode haver consequências negativas nas relações económicas bilaterais.

E acredita que se chegará a este ponto?

Estando, como é natural, muito preocupado com a situação, acredito que o assunto poderá convergir para um final em que as partes envolvidas verão o essencial das suas posições satisfeitas, o que possibilitará que a relação entre Angola e Portugal, entre os angolanos e portugueses, continue a ser como sempre foi, próxima e calorosa.

Quais são as possíveis grandes perdas nas relações económicas e financeiras que podem ser enumeradas?

Não consigo antecipar. O próprio Presidente João Lourenço, quando questionado sobre o assunto, também não antecipou que tipo ou natureza de medidas tem em mente. Mas, se as relações vierem a ser afectadas, é normal que, como consequência, se assista a um arrefecimento nas relações comerciais entre os dois países, com reflexos negativos quer em Portugal, quer em Angola.

E na banca, visto ser um sector em que se intensificaram as relações nos últimos anos com o crescimento de investimentos, sobretudo angolanos, em Portugal?

Não vejo como é que se possa antecipar problemas sérios no funcionamento do sistema bancário decorrentes desta situação, para além de uma redução do volume das trocas comerciais.

Também não vê a possibilidade de um eventual corte nas relações embaraçar um possível programa de Angola de repatriamento coercivo de capitais depositados em Portugal?

Essa é uma questão nova e completamente diferente. O Presidente João Lourenço anunciou que o Executivo iria legislar no sentido de incentivar o repatriamento de capitais de cidadãos angolanos que estejam domiciliados no estrangeiro. Tanto quanto entendi, esta legislação já está no parlamento para discussão e aprovação. Agora temos de aguardar para ver os termos concretos das medidas e avaliar qual será a reacção dos angolanos que tenham patrimónios no estrangeiro e como os irão transferir para Angola. Penso que, como disse no início, são dois problemas completamente distintos.

Referia-me aos casos em que as pessoas decidam não trazer voluntariamente e o Estado vê-se forçado a trazer de forma coerciva. Precisaria da colaboração do Estado português, no caso de estarem em Portugal. Não acha que as boas relações entre os Estados podem ser determinantes?

Não tenho conhecimentos suficientes nessa matéria para lhe dar uma resposta concreta. Em qualquer caso, parece-me que as condições de eficácia de um programa de repatriamento voluntário deverão corresponder aos princípios elencados num documento elaborado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) sobre esta matéria. Também me parece que a cooperação, nomeadamente na área fiscal, entre Estados será um argumento favorável à obtenção de resultados positivos. Como lhe referi, há que aguardar pela legislação que venha a ser adoptada em Angola.

Como olha para o futuro da economia angolana, considerando a crise actual?

Há que distinguir o futuro de longo prazo e o de curto prazo. A sua questão diz mais respeito às questões de curto prazo que mexem mais directamente no bolso do cidadão e se reflectem nas opções do OGE e também do PEM (Programa de Estabilização Macroeconómica). A economia angolana passou por uma fase bastante difícil em geral associada à descida significativa do preço do petróleo com as consequências negativas que trouxe para a balança de pagamentos, o saldo orçamental, a dívida pública, as reservas internacionais e para a dinâmica da economia em geral. Ainda por cima, este quadro foi agravado com uma inflação alta e crescente. Neste momento, começam a surgir sinais positivos. O principal é o aumento do preço do petróleo muito para além do esperado. Está em 70 dólares o barril. É uma situação muito favorável desde que bem aproveitada. Não sabemos se o preço do Brent é sustentável nestes níveis, mas o facto é que, neste momento, Angola está a beneficiar de um preço claramente superior ao que consta no Orçamento e também ao que eram as expectativas e previsões consensuais entre os que acompanham o mercado do petróleo. Há outro elemento também bastante favorável. A taxa de juro do mercado de emissão de eurobonds de Angola reduziu-se significativamente, o que traduz que o risco da economia angolana para os investidores também se reduziu. Do lado negativo, o certo é que os principais agregados macroeconómicos de Angola continuam em situação muito complexa: o nível de endividamento é excessivo, o défice também está numa situação preocupante, as reservas internacionais em níveis mínimos. Tudo isto me leva a concluir que Angola, possivelmente, vai passar por um período em que as dificuldades vão continuar a ser sentidas até que possa estabilizar, para posteriormente adquirir uma trajectória de crescimento mais equilibrado.

Que opinião tem do novo paradigma cambial, baseado na taxa de câmbio flutuante?

O retomar do normal funcionamento mercado primário, ainda que de forma gradual, é um passo absolutamente fundamental para desfazer um enorme desequilíbrio que há muito prevalece no mercado cambial. Corresponde também ao retomar de boas práticas em vigor em economias mais desenvolvidas. O BNA começou um processo de fixação da taxa de câmbio, aceitando as propostas dos bancos dentro de uma banda que não é divulgada. Os bancos vão ter de ser contidos nas suas propostas, sob pena de não serem contemplados. Neste processo, é de esperar que, à medida que o tempo for passando e que as necessidades cambiais das empresas e das famílias venham a ser satisfeitas, e também à medida que o preço das divisas caminhe para um equilíbrio, que o diferencial que hoje se verifica entre o valor do câmbio oficial e do paralelo se venha atenuar. É o início de um caminho que, naturalmente, se vai prolongar durante os próximos meses ou anos. Os dois primeiros leilões neste regime, que se traduziram numa desvalorização do Euro de 185,4 kwanzas para 248,8, cerca de 34%, constituem passos corajosos e importantes no sentido de estabelecer uma paridade do kwanza compatível com o nível de reservas do país.

Uma vez que os limites da banda definida pelo BNA são desconhecidos, quais são os grandes desafios e riscos para bancos comerciais?

Os bancos comerciais vão ter de começar a estruturar a sua estratégia cambial com base no que vai sendo divulgado pela equipa económica e, em particular, pelo BNA, que tem a responsabilidade da condução da política cambial. Pelo comunicado do BNA, relativo ao leilão de16 de Janeiro, ficámos a saber quantos bancos contribuíram para a formação da taxa de câmbio, qual o máximo e o mínimo oferecido e, claro, o resultado final. Há bancos que ou fizeram propostas abaixo do limite inferior, ou acima do limite superior e, portanto, não só não contribuíram para a formação da taxa de câmbio como, muito provavelmente, não foram servidos nesse leilão. O BNA, através dos comunicados, vai dando algumas indicações relevantes para que as salas de mercados e os responsáveis das direcções financeiras dos bancos consigam tomar as melhores decisões.

Angola, actualmente, está sem bancos correspondentes para o dólar. Liderou um dos maiores bancos do país e certamente esteve por dentro dos investimentos que os bancos foram fazendo para estarem alinhados às práticas internacionais. Acredita ser uma situação possível de inverter num curto espaço de tempo?

Repor a situação no que diz respeito à banca de correspondência é um processo longo. Neste momento, não tenho informação suficiente para me pronunciar sobre o progresso já registado. Há um ano ou um ano e meio, o processo que as instituições financeiras e o país, no seu conjunto, tinham de empreender era muito vasto e muito exigente. A linha de actuação que o Presidente João Lourenço definiu, de combate à impunidade e, acima de tudo, à corrupção, corresponde a uma componente muito significativa das políticas de combate ao branqueamento de capitais. Seguramente, irá contribuir para evidenciar ao sistema financeiro internacional a capacidade que Angola tem de detectar operações suspeitas de branqueamentos de capitais e agir de acordo com as práticas internacionalmente recomendadas.

Muitos apontam a relação com os correspondentes como dos principais desafios da banca para este ano. Concorda?

Concordo. Esse é um dos principais desafios da banca angolana e não há tempo a perder. De resto, o sector continua com desafios muitos significativos na área de supervisão, regulamentação e da adopção das melhores práticas internacionais. No que diz respeito às questões do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, é um trabalho que requer o contributo de toda a sociedade, cidadãos e instituições e não apenas dos bancos, do BNA e da UIF. É um desafio para o país no seu conjunto.

Além destes, quais são os outros grandes desafios para o sector bancário angolano?

Posso considerar um outro grupo de três desafios, mais na área patrimonial, que o sistema bancário angolano enfrenta: requisitos de capital, qualidade dos activos e a definição de uma estratégia de intervenção do Estado no sector. Sobre este último, o Presidente João Lourenço fez um despacho no sentido de criar um grupo de trabalho para fazer uma avaliação exaustiva às participações directas e indirectas do Estado em bancos. Vamos aguardar as conclusões desse trabalho. Poderá vir a dar indicações sobre uma possível reestruturação do sector que, para além de bancos públicos todos em muito má condição, há também muitos bancos de pequena dimensão que terão dificuldade em lidar com as exigências regulamentares e de capital sempre crescentes. Quanto aos outros dois a que referi, vou socorrer-me do diagnóstico que consta do PEM. Relativamente à qualidade do crédito concedido à economia refere que “tem vindo a deteriorar-se substantivamente, sendo que a percentagem de crédito vencido representa, em Agosto de 2017, 31%, quando era apenas de 11%, no final de 2013”; acrescenta que o “nível de provisões para crédito vencido no SFA, apesar de ter aumentado face ao início de 2017 (7%), apenas tem uma taxa de cobertura de 12%”, não descartando a hipótese de que uma avaliação mais rigorosa venha a conduzir a resultados mais negativos. O terceiro grupo de preocupações tem que ver com o capital das instituições. Quanto a este aspecto, refere o PEM que, em “Setembro de 2017, havia cinco bancos que não cumpriam com o Rácio de Solvabilidade Exigível (10%). O efectivo reconhecimento de imparidades e as novas exigências de Fundos Próprios Regulamentares deverão, certamente, colocar dificuldades acrescidas a um maior número de bancos em actividade no SBA (Sistema Bancário Angolano)”. Acresce a este quadro que as novas regras de cálculo das necessidades de capital são mais exigentes, o que torna a situação ainda mais difícil. Há, como vê, muito trabalho para fazer!

Quando olha para a possibilidade de redução do número de bancos, perspectiva mais fusões ou aquisições?

Como lhe referi, é possível que as conclusões do grupo de trabalho sobre as participações directas e indirectas do Estados em Bancos venha a dar pistas quanto a uma possível reestruturação do sector. Mas, nesta fase, não consigo antecipar estes cenários. Em geral, uma aquisição vai transformar-se numa fusão como forma de captar sinergias.

Liderou durante mais de 11 anos o BFA com resultados satisfatórios. Quais foram os segredos?

Não me vou pronunciar sobre o BFA. O que lhe posso dizer é que, em Angola e em todo o mundo, as empresas que obtêm consistentemente resultados de excelência em várias frentes – inovação, crescimento, solidez, rentabilidade - é porque têm uma grande equipa, motivada, focada e com a atitude ética e profissional correcta perante os clientes e o negócio.

Estaria disposto a voltar a trabalhar num banco em Angola?

Sinto-me muito bem com percurso profissional que desenvolvi no BFA e por ter tido oportunidade de ter em Angola muitos amigos com quem mantenho ligações frequentes. Tenho entre mãos vários projectos que estou a desenvolver, e mantenho-me disponível para contribuir para o desenvolvimento, modernização e afirmação de uma economia e de um tecido empresarial que conheço bem.

Recentemente recebeu um diploma de sócio honorário da Câmara de Comercio e Indústria Portugal-Angola. O que representa para si?

Tendo vivido intensamente 11 anos e meio em Angola, foi para mim uma grande honra receber essa distinção, que a CCIPA, nos seus 30 anos de existência, apenas entregou a um número muito limitado de pessoas. Foi também um privilégio apoiar e colaborar com a CCIPA e com os valores que ela representa. A minha experiência de vida e profissional em Angola diz-me que as empresas, os empresários e os profissionais portugueses são dos mais aptos e disponíveis para continuar a dizer presente e para dar esse tão indispensável e necessário contributo para Angola ultrapassar com sucesso os novos desafios que enfrenta.

PERFIL

Duas décadas na banca

De 57 anos, Emídio Pinheiro é licenciado em Economia pela Universidade Católica Portuguesa. Desempenhou o cargo de CEO do BFA entre 2005 e 2016, depois de ter sido, entre 2002 e 2005 chefe de departamento de pequenas empresas. Depois de deixar o BFA, foi, durante quatro meses, membro do comité executivo do Caixa Geral de Depósitos. Depois, foi nomeado membro da comissão executiva da Sonangol, mas nem chegou a ser empossado.. Situações que diz gerir de “cabeça erguida e de consciência totalmente tranquila”. Fundou recentemente uma empresa de consultoria e formação.