As provas de Isabel e os nervos do poder
Por obra de Isabel dos Santos, o poder político e o poder judicial em Angola podem estar à beira de um ataque de nervos. A empresária assegura ter provas de que João Lourenço deu ordens a juízes, procuradores e aos serviços de inteligência para uma incursão concertada contra o seu império. E o Financial Times, o jornal que deu a notícia em primeira mão, escreve que se trata de uma “retaliação substantiva” de Isabel dos Santos. Não é para menos…
Todo o angolano e qualquer um que saiba de Angola sabem que a justiça por cá é subjugada ao poder político até ao tutano. Compreendem que até a simples menção à separação de poderes é uma afirmação ridícula, para dizer o mínimo. Os que afirmam o contrário também o sabem, mas têm de defender o indefensável por estupidez, por medo ou por cobardia. O poder político, como é esperado, não desarma na retórica. Insiste na farsa da separação dos poderes e fá-lo, entre outras razões, porque sabe que raramente é confrontado com provas materiais nos tribunais ou na imprensa. Agora, pela primeira vez, podem ter chegado a um tribunal, digno desse nome, gravações em que altos agentes do Estado são instruídos a atacar uma cidadã empresária, guiados pela vingança pessoal de um presidente de uma república.
O eventual ataque de nervos é, por isso, mais do que compreensível. Nenhum juiz, nenhum procurador, nenhum governante, nenhum político, nenhum comentador, por mais esquizofrénico que seja, insistirá na defesa da independência da justiça, caso se confirmem as provas da empresária. O que está em causa, portanto, é de uma gravidade sem paralelo, mas dá respaldo a uma das preocupações de fundo sobre os desvios da agenda controversa de João Lourenço.
Por vezes sem conta, escrevemos aqui que o projecto contra a corrupção estava encalhado à partida por várias razões claras, em que duas se destacam. Primeira, quem se beneficiou despudoradamente do saque ao erário, nas suas variadas formas, não tem legitimidade moral e até legal para combatê-lo. Segunda, o sistema que pretende desmantelar a corrupção está entrelaçado em complexos temas pessoais que levam necessariamente à deturpação dos propósitos que interessam aos angolanos. A convivência longeva entre os ‘camaradas’ produziu traições, ódios, ciúmes e quejandos que têm obrigatoriamente reflexo num processo como este. As vinganças pessoais são inevitáveis e levam incontornavelmente a um novo ciclo de instrumentação das instituições e de manipulação do Estado.
No fundo, é isso o que as provas de Isabel dos Santos poderão deixar a nu. E, tal como a Lava Jato no Brasil, o combate à corrupção, ao estilo Lourenço, pode estar prestes a cair no buraco do descrédito, sem retorno. Por razões muito próximas. No Brasil, um juiz alucinado e autocrático colocou a justiça de joelhos para atingir interesses políticos confessos, incluindo fazer-se ministro e potenciar uma corrida sua à presidência da República. Em Angola, o Presidente da República poderá ter colocado todo um Estado de cócoras para fazer vazar uma agenda de vingança pessoal contra certos 'inimigos'. A diferença é que Angola não é o Brasil. Lá, o juiz foi descoberto, apesar de todos os estragos que fez, e vai ser julgado, prova de que muitas vezes a independência dos poderes funciona mesmo. Cá, ainda que se confirmem as provas, tudo vai manter-se igual, porque quem manda é o que manda mesmo. E manda em tudo.
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