CONCERTAÇÃO E OPORTUNISMO
1. A 13 de Março, o VALOR sugeriu, em editorial, que o Presidente da República convocasse especialistas com investigação relevante sobre os temas económicos e sociais no sentido de lhe apresentarem propostas para as soluções que a economia requer actualmente e no pós-pandemia. Entre outros argumentos, justificámos que as respostas à profunda crise económica, agudizada pela crise sanitária global e pela consequente derrocada dos preços do petróleo, não deveriam estar exclusivamente nas mãos de Vera Daves e de Manuel Nunes Júnior, o ministro de Estado que se notabiliza por desaparecer em momentos críticos. E alertámos também que a tendência para a auscultação predominante de certos empresários não dava garantias de uma abordagem global do problema. Não só porque a crise exige respostas de profundidade técnica, mas também porque os empresários colocam, por via de regra, a defesa dos seus interesses específicos em primeiro plano.
Na última sexta-feira, João Lourenço decidiu reunir com dezenas de representantes de várias classes profissionais e sociais, dando a palavra a apenas oito dos presentes. A ‘gaffe’ de fazer deslocar e aglomerar dezenas de pessoas sem necessidade só poderia ter sido abafada com o anúncio da criação do conselho de concertação económica, a ser coordenado por Manuel Nunes Júnior.
O órgão anunciado apresenta-se, no entanto, como uma resposta diferente da esperada pelo repto formulado a 13 de Março. Porque, dependendo da sua composição, a ideia não passará de um simples ‘show off’ e a principal razão já está praticamente explicada. A conjuntura exige uma dose exagerada de pragmatismo na busca de soluções e os espaços de concertação historicamente conhecidos têm muito mais de auscultação do que propriamente da concertação. Reunir uma dúzia ou algumas dezenas de pessoas num comité, apenas para sugerir que o Governo está aberto ao diálogo, não é apenas um exercício inócuo, chega a ser uma atitude irresponsável sobretudo no quadro de emergência económica e sanitária em que se vive. E é isso o que poderá acontecer, caso o esperado conselho de concertação não venha a ter uma composição robusta, precisa e objectiva.
2. Passemos agora para as considerações prévias de outro tema inquietante ao qual voltaremos certamente. O Governo decidiu redefinir a actuação do Tribunal Constitucional, enquanto instância de recurso às sentenças decretadas nos tribunais de jurisdição comum. A intenção é clara: reduzir o máximo possível as hipóteses de recurso ao Constitucional, especialmente após a última decisão do Tribunal Supremo. Ou, de forma mais enfática, impedir que determinadas pessoas, em face do alegado combate à corrupção, consigam defender-se até às últimas possibilidades, antes de uma eventual cadeia.
Tomando de empréstimo a interpretação do advogado Sérgio Raimundo, não se trata de questionar o mérito da intenção. Ainda que esteja expressa a motivação pessoal ou específica dos proponentes da nova lei. Trata-se antes de interrogar a leviandade e o oportunismo com que se pretende aprovar um diploma susceptível de reduzir gravemente garantias fundamentais dos cidadãos, numa altura em que todos os olhos e ouvidos estão virados para a covid-19.Trata-se de contestar a forma apressada com que se deseja ver aprovada uma lei que, no mínimo, merecia um debate mais alargado da sociedade. Faz lembrar justamente a forma oportunista como se aprovou a malfalada Constituição, em 2010. Quase tudo apanhando distraído com o futebol. É mesmo uma questão genética.
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