Doutores-analfabetos, uma espécie perigosa
Há algumas semanas, o jurista Carlos Feijó sentenciava, numa intervenção pública, que uma das razões do atraso de África é o facto de muitos africanos gostarem de falar sem estatísticas. A afirmação do também professor catedrático foi produzida num contexto específico, para rebater uma tese concreta, de tal sorte que foi compreensível que Feijó não tivesse mencionado ou simplesmente tivesse dispensado listar as razões mais profundas do atraso africano. Afinal, no conjunto dos atropelos que desgraçam eternamente o continente, as afirmações sem estatística serão um detalhe insignificante se comparadas ao verdadeiro cancro metastizado: a desgovernação criminosa sem fim à vista, associada a cada vez mais ausência absoluta de lideranças esclarecidas.
É, aliás, essa ininterrupta e interminável desgovernação que está também na origem de umas das espécies mais perigosas criadas particularmente nas últimas duas décadas em Angola: os doutores-analfabetos. Estes não têm nada que ver com os que não estudam estatísticas, como criticou Carlos Feijó; são aos montes, como veremos abaixo, e é deles de que se ocupa o editorial de hoje, enquanto defensores e promotores também da desgraça colectiva.
Então, quem são os tais doutores-analfabetos? É fácil, é tarefa fácil identificá-los. São os que vêem centenas de casas a inundar na Alemanha e apressam-se a desresponsabilizar o partido da situação pelas desgraças que as chuvas provocam em Angola. Como se as enchentes que devastam a Alemanha pudessem ser equiparadas à generalidade das chuvas que matam por cá. Ou como se os alemães andassem a construir em linhas de água e à beira de valas de drenagem com águas pútridas e a céu aberto, como acontece por cá.
Os doutores-analfabetos são aqueles que demonizam a verdadeira oposição em Angola por não se comportar ‘educadamente’ como a oposição em Portugal. Como se em Portugal estivesse a ser combatida uma autocracia inamovível há quase meio século, como a que existe por cá. Ou como se os órgãos de comunicação social públicos em Portugal andassem a criar programas específicos para defender António Costa e o PS e para marginalizar Rui Rio e o PSD, como sucede com Adalberto Costa Júnior e a Unita, em Angola.
Os doutores-analfabetos são os que, alucinados com a missão de defesa de determinados excessos nos poderes do Presidente da República em Angola, evocam selectivos paralelos no presidencialismo norte-americano. Como se o presidente dos Estados Unidos mandasse nos Tribunais e no Congresso americanos, como se sabe por cá. Como se nos Estados Unidos o presidente e o seu partido controlassem órgãos de comunicação social públicos e nomeassem os seus gestores, como se vê por cá. Como se o presidente dos Estados Unidos e o seu partido controlassem o órgão que gere as eleições, como ninguém duvida por cá. Ou como se por lá o presidente pudesse usar, a seu bel-prazer, instituições do Estado, como os serviços de inteligência, para atacar adversários políticos e alicerçar o projecto de manutenção do poder do seu grupo, como se sabe por cá.
Enfim… Os nossos doutores-analfabetos são os que, com unhas e dentes, confundem literalmente a Casa Branca de Joe Biden com a Casablanca de Henrique Miguel ‘Riquinho’. E não, não é qualquer exagero. Os tais existem mesmo por cá, são pessoas de carne e osso e, não raras vezes, ostentam dezenas de títulos.
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