“Empréstimos obrigam o artista encarecer as obras”
Tem propostas para ao Governo no sentido da promoção das artes plásticas e da valorização dos artistas, como, por exemplo, a decoração das instituições públicas com obras nacionais. ‘Kidá’ chama ainda à atenção para o facto de o país exportar obras que amanhã terão de retornar a preço de ouro.
Como caracteriza a situação actual dos artistas plásticos, face à pandemia?
A situação é catastrófica. O contexto torna mais complicada a realização de exposições de artes plásticas, pois tinha de haver público em contacto com o artista, numa interacção até mesmo com carácter pedagógico. Os músicos vão fazendo ‘lives’ (directos), contudo, a natureza do trabalho de artes plásticas não tem tantas possibilidades nesse sentido. Para agravar a situação, as galerias de arte estão praticamente encerradas.
Não falta criatividade para contornar as limitações impostas pela crise sanitária?
Pessoalmente, sinto-me bastante apreensivo quanto a essa fase da pandemia, uma vez que estava prevista a realização de uma exposição minha, para assinalar os 40 Anos de Gravura Artística que se assinala exactamente este ano, mas, infelizmente, tudo está paralisado. Fiz inúmeros pedidos de apoio para o projecto, mas não obtive respostas.
Foram criadas medidas de alívio ao impacto da covid-19. Os artistas foram achados?
Se foram criadas ou não, desconheço. Creio que, caso os artistas plásticos fossem considerados, isto passaria, em primeiro lugar, pela Unap, instituição que nos representa enquanto membros associados. Não estou a ver a darem apoios a título individual por cada artista, certamente não funcionaria. Todavia, que eu saiba, a Unap não foi beneficiada com qualquer apoio substancial, o que significa que os artistas plásticos, infelizmente, não foram tidos nem achados em termos do apoio tão necessário para a nossa própria sobrevivência.
Face a este cenário, como se pode avaliar o estado actual das artes plásticas no país?
Se tivermos em conta que o país não dispunha de quaisquer infra-estruturas ligadas ao desenvolvimento artístico, e considerando também que, durante muitos anos, trabalhámos sem condições materiais, técnicas e humanas, podemos dizer que demos um passo gigantesco com a inauguração, em 2015, do Complexo das Escolas de Arte ‘Cearte’, com quatro escolas multidisciplinares, Artes Visuais e Plásticas, Dança, Música e Teatro e Cinema, de nível médio, e que contam com infra-estruturas moderníssimas.
Com a abertura dessas escolas, foram criadas, para essa altura, condições técnicas adequadas de formação artística de excelência no país. Paralelamente, no mesmo período, foi também criado, pelo Ministério do Ensino Superior, o Instituto Superior de Arte ‘Isart’, instituição que veio para consolidar a política de formação artística no país nesses níveis de ensino. Noutra perspectiva, noto com preocupação e nostalgia que, nos anos 80/90, os artistas plásticos já tiveram uma vida muito mais folgada em termos de venda de obras plásticas.
Melhor que hoje?
De uma maneira geral, quase todo o artista vendia. Muito ou pouco, mas vendia. Actualmente, o mercado está bastante limitado e asfixiado. Nas circunstâncias actuais, podemos encontrar um ou outro artista que vai (sobre)vivendo com a venda esporádica de obras de arte, mas, de uma maneira geral, o artista plástico angolano passa por inúmeras dificuldades, pois produz, mas o consumo das suas obras é bastante escasso!
Falta de clientes?
Não há clientes! E, por vezes, não é por falta de dinheiro por parte de certos clientes! O que acontece é que estes preferem investir em carros top de gama, por exemplo. E aqui tocamos na questão da educação estética e também de sensibilidade tão necessárias na nossa sociedade. E, então, o artista plástico não vende, não tem consumidores à altura. Vive praticamente de mendicidade e não está correcto.
Há soluções?
Temos vindo a defender que as autoridades devem criar mecanismos de salvaguarda da classe, criando leis que contemplem, a título de exemplo, que todas as instituições e edifícios (existentes e por construir), sejam obrigatoriamente decorados com obras dos artistas plásticos nacionais. Falamos nisso, pois, anteriormente, já tivemos experiências avulsas nesse sentido e resultaram. Os artistas vendiam e tinham certa dignidade.
Disse que está com dificuldades de obter apoio para uma exposição. Como se explica isso, considerando o seu percurso artístico e cultural?
Sim, de facto, está muito difícil de entender a falta de apoio das instituições às quais recorremos, no sentido de poderem abraçar o projecto dessa exposição retrospectiva que visa assinalar os 40 anos de percurso artístico, que julgamos ser bastante relevante e incisiva, particularmente para os estudantes de arte, historiadores, investigadores, curadores, enfim, para o público e sociedade em geral. É intenção apresentar obras de toda uma trajectória artística feitas ao longo de quatro décadas de intensa produção ao nível da gravura, revisitando o que de mais relevante foi produzido e dar a oportunidade de o público visitante as observar e contemplar.
Disse que contactou várias empresas e instituições relevantes...
O Manuel Sebastião e o Álvaro Macieira sempre estiveram ao meu lado a fazer tais diligências, mas tudo redundou num fracasso total. Desilusão absoluta. Contactámos cerca de uma vintena de instituições. Bancos, empresas de bebidas, telecomunicações, hotéis. Tudo negativo, mesmo com projecto devidamente apresentado e fundamentado. Incrível. É muito triste. Até ao próprio Ministério da Cultura pedi apoio, mas deram-me nada. Esqueceram-se de que já muito fiz e ainda faço em termos da cultura e artes do país, ao longo dos 40 anos consecutivos.
É caro realizar uma exposição em Angola?
Sim, é muito oneroso. No caso de uma exposição de gravura artística, pior ainda, pois tem particularidades que vão desde a aquisição de tintas gráficas ao papel com gramagem correspondente à compra de molduras com vidro para montar as obras previamente impressas. Depois, temos as despesas de produção de catálogo artístico, dos spots publicitários, cartazes, dísticos, flyers, outdoors, convites, imprensa, a realização e a montagem da exposição, o pessoal técnico de apoio, enfim, são mesmo despesas avultadas e, sem apoios, torna-se muito difícil ter uma exposição de qualidade. Antes do agravamento da pandemia, já estávamos altamente engajados nessa tarefa. Refiro-me às pessoas que, voluntariamente, decidiram apoiar-me, como Manuel Sebastião, o Álvaro Macieira, o Miguel Mukanda, o Francisco Ventura, o António Gonga, o Virgílio Pinheiro, que têm dado o melhor de si, incentivando-me a realizar a exposição. Temos já também o Paulo Airosa, o designer gráfico encarregado de elaborar o layout do catálogo, cujo orçamento está ainda por definir, e o Instituto Camões, que deverá acolher essa histórica exposição retrospectiva de 40 anos de Gravura Artística (1980-2020). Na verdade, todo o tipo de apoio será sempre acolhido de bom grado.
Não considera normal o insucesso na busca de patrocínio, visto que o país se encontra em crise desde 2014?
Em certa medida, considero normal, dada a asfixia económica e financeira em que o país e as empresas se encontram. Por outro, também já nos habituámos a notar que, mesmo em tempos das ‘vacas gordas’, conseguir patrocínios nunca foi tarefa fácil, isso porque determinadas empresas e instituições são mais movidas por razões ‘selectivas’ de amiguismo e de compadrio do que por razões patrióticas, culturais e artísticas. É óbvio que, nas circunstâncias actuais, todos, ou quase todos, se vão escudar nesse pretexto. Contudo, a vida continua, bastando a resiliência que nos é característica. Há especificidades que cada empresa ou instituição pode optar para dar o seu contributo.
Pelo visto, a Lei do Mecenato não está a cumprir o seu papel?
A Lei do Mecenato, por vezes, dá-nos a impressão de ser um ‘nado morto’. Porque, se ela existe de facto, devia corresponder ao papel e expectativas pelos quais foi criada. Entendo que essa Lei, dentre outros pressupostos, foi criada com vista a atender a necessidades de artistas, sendo os mecenas os patrocinadores e/ou apoiantes da vida cultural e artística do país, tendo eles, em contrapartida, apoios do Estado, assentes em incentivos fiscais e alfandegários. A questão é: essa Lei existe de facto? E caso exista, quem têm sido os beneficiários? Que tipos de apoio dão aos artistas? A quem justificam as suas acções e actividades? São inquietações que alguém deve responder.
As artes têm potencial para serem engajadas na diversificação da economia?
Claramente. Não sei porque ‘carga d’água’ o Ministério da Cultura ficou ‘geminado’ aos extintos Ministérios do Turismo e Ambiente, mas, já que assim está decidido, é hora de se encontrarem metodologias eficazes no sentido de se dar corpo às questões culturais e anexá-las, de maneira natural, ao turismo. Desse modo, criar-se-iam espaços culturais e artísticos ao chamado consumo de turismo feito e dirigido para consumo interno e externo, proporcionado com a vinda de turistas estrangeiros que trazem valores financeiros, divisas, para a economia. Nesse contexto, a cultura e as artes, uma vez bem valorizadas e geridas, por via dos produtos culturais, e também através de incentivos turísticos atractivos e competitivos, podem contribuir para a tão propalada ‘diversificação da economia’.
O desinteresse por parte dos potenciais patrocinadores não será também um sinal de que a qualidade das obras ainda não é a desejada?
Discordo totalmente dessa afirmação. Os artistas plásticos já provaram e têm demonstrado, no país e fora dele, que as suas obras têm a qualidade técnica e estética aceitáveis em qualquer mercado, galeria ou circuito internacional de arte do mundo. Não é por acaso que muitos artistas plásticos angolanos estão devidamente catalogados e representados em muitas galerias e em coleccionadores de artes espalhados pelo mundo. Por falar nisso, chamo a devida atenção para o perigo que o país se arrisca a correr quando um dia entender construir um Museu de Arte Moderna.
Que perigo?
O que vai acontecer é que, estando as maiores e melhores obras da plasticidade angolana compradas e adquiridas por estrangeiros, para tê-las de volta, o Estado há-de pagá-las a preço de ouro. Porque as autoridades nunca tiveram, sequer, a preocupação de, por cada exposição realizada, ir adquirindo obras dos artistas plásticos nacionais, perdendo para os coleccionadores, uns nacionais, mas maioritariamente estrangeiros, que reconhecem a elevada qualidade nas obras dos criadores angolanos.
E a opção de financiamento em lugar dos patrocínios para a realização das exposições?
Todas as possibilidades devem ser consideradas. Todavia, na eventualidade de haver instituições bancárias disponíveis, teriam de se avaliar as condições de reembolso, o prazo e taxas de juro que, muitas vezes, podem não compensar. E, com o empréstimo bancário, o artista plástico ver-se-ia obrigado a encarecer muito mais as obras e o mercado, como já é de conhecimento, não é atractivo por razões financeiras e por falta de sensibilidade.
Ou seja, a solução passa mesmo pelo apoio?
Se o país valorizasse devidamente os fazedores de artes, com um mercado sofisticado e favorável, os artistas plásticos viveriam do seu trabalho com uma vida confortável. Noutros países, os artistas são muito respeitados e são importantes no desenvolvimento das artes e da cultura, promovendo a economia e vivem com muita dignidade. Aqui, não é assim. Vai-se a um determinado gabinete ou escritório e notam-se as paredes totalmente despidas, sem qualquer obra de arte a decorá-las. Quando muito, encontramos réplicas de obras, muitas das quais mal conseguidas, adquiridas em lojas de quinquilharias quaisquer e que servem como elementos de decoração nesses espaços. E o artista plástico angolano tem dificuldades para vender. Daí a necessidade de haver uma determinada Lei que defenda a obrigatoriedade de os edifícios e instituições serem decorados com obras originais de artistas plásticos angolanos.
Perfil
António Feliciano Dias dos Santos (KIDÁ), nasceu na aldeia de Sassa-Cária/Dande, Província do Bengo, aos 25 de Setembro de 1961. Fez o ensino primário em Caxito. Em 1980, fez o Curso de Desenho e Gravura na UNAP, tornando-se membro efectivo da Associação! Em 1992, conclui o Curso Técnico de Operador Ceramista na Escola Profissional de Ofícios Artísticos (EPOA), em Vila Nova de Cerveira, Portugal. Em 1995, conclui, na mesma Escola, o Curso Técnico de Design Gráfico. Em 2011, faz Licenciatura em Sociologia, pelo ISCED/Luanda. Professor de Arte em Angola, desde 1996. Fez várias exposições artísticas dentro e fora do país. Fez logomarcas, com realce ao de Angola na Expo-Zaragoza, Espanha, em 2008. Ganhou vários Prémios de Arte, com destaque ao Prémio Nacional de Cultura e Artes (PNCA), na categoria de Artes Plásticas, 2018. Foi Director da Direcção Nacional de Formação Artística (DINFA), do Ministério da Cultura, de 2015 a 2017, altura que pediu a sua aposentação.
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