Alerta de vários juristas

Erros em nacionalizações e confiscos colocam activos recuperados em risco

JUSTIÇA. Estado já passou para a sua esfera activos acima dos 3 mil milhões de dólares através de confiscos e nacionalizações. Especialistas alertam para vários “atropelos” e antecipam a hipótese de o Estado ressarcir visados.

 

Erros em nacionalizações e confiscos colocam activos recuperados em risco
D.R

O Governo tem estado a cometer “erros que podem custar caro no futuro”, ao passar para a esfera do Estado bens apreendidos, alegadamente construídos com fundos públicos, sem esperar pela decisão dos tribunais.

O alerta é de juristas consultados pelo VALOR, como é o caso de Albano Pedro, para quem o Estado “dificilmente escapará” da necessidade de indemnizar algumas pessoas. “Estas recuperações estão a ser todas mal feitas e vão dar lugar a processos que serão todos ganhos pelos indivíduos que foram expropriados”, avisa o jurista. “O que me parece é que não está a haver nada que esteja a ser definido do ponto de vista judicial para que o Estado fique com os bens”, insiste Albano Pedro, observando que quem faz a justiça é o tribunal e não a PGR que está “a apreender definitivamente”. “Quando se apreende um bem, temos que considerar a situação provisória até que o caso transite em julgado. Não se pode admitir que o caso que afinal ainda não foi julgado já dê direito de o Estado dizer que o bem é do Estado”, argumenta.

O também jurista Bruno Dessidi tem a mesma percepção e considera “precipitada” a decisão de entregar ao Estado os bens sem que seja o tribunal a decidir. “É precipitada se tivermos que olhar para um processo transparente e isento. Denota um julgamento antecipado. E aí concordo que, se a decisão amanhã alterar e a acção principal der razão ao privado, o Estado pode ter custos elevados.”

O conjunto de processos que precipitam os alertas de juristas envolve bens avaliados acima dos 3 mil milhões de dólares, com destaque para o conglomerado de activos, avaliado em quase mil milhões de dólares, pertencente à CIF e que foi entregue por Manuel Vicente, Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ e Leopoldino do Nascimento. Constam ainda os 40% que a Cochan de Leopoldino do Nascimento detinha na Biocom, cujo investimento foi de 750 milhões de dólares, assim como as três unidades têxteis (Satec, Alassola e a Nova Textang II) que passaram para o Estado por alegada privatização ilegal e cuja revitalização terá custado cerca de mil milhões de dólares.

As empresas do Grupo Media Nova, assim como da Global Media (Tv Zimbo, Radio Mais, Jornal O’País e Revista Exame), a Tv Palanca e a Radio Global integram também os activos reclamados e recuperados pelo Estado.    

Entre a máfia…

Albano Pedro alerta mesmo para a possibilidade de estar-se em presença de uma “máfia” no sentido de se salvaguardar interesses das pessoas que estão a ver os seus bens confiscados pelo Estado. “Pode haver uma brecha para uma espécie de máfia. Eu sei que os juristas que estão por detrás disso sabem que, se houver uma má transferência, haverá indeminização. E as transferências estão a ser mal feitas. Qual é a intenção? É que os proprietários amanhã tenham a possibilidade de pedir indeminizações para que depois recuperam os dinheiros que perderam, inclusive os lucros? Porque isso é possível”, cogita.

O jurista alerta ainda que, no âmbito do processo de recuperação de activos, o Estado está a ficar também com participações de pessoas de boa-fé que têm participações em alguns dos activos que estão a ser confiscados. 

… E a má gestão

Por outro lado, Bruno Dissidi chama atenção para a necessidade de o Estado ser “rigoroso” na gestão dos bens, sob pena de ter também custos elevados no futuro, devido à deterioração do valor dos activos. Defende, por isso, a indicação como fiel depositário as mesmas pessoas que vinham gerindo os bens no sentido de se “mitigar o custo que o Estado teria em caso de a decisão vir a dar razão ao privado”.

Nacionalização do Hotel “foi um erro”

Juristas consideram também “errada” a decisão do Governo de nacionalizar a empresa detentora do Hotel Intercontinental e alertam para a possibilidade de o Estado, no futuro, ser obrigado a indemnizar ou perder o activo devido ao “erro de forma”.

A nacionalização aconteceu em Outubro, no âmbito do processo de recuperação de activos alegadamente construídos com fundos públicos. Em decreto presidencial, João Lourenço determinou a nacionalização de 60% das participações sociais da sociedade comercial Miramar Empreendimentos, SA, justificando que “foi construída uma unidade hoteleira financiada com recursos integralmente públicos, através da Sonangol-EP” e que a “unidade hoteleira se encontra na esfera patrimonial da sociedade Miramar Empreendimentos, SA”.

Albano Pedro entende que “está errada” a decisão de nacionalizar por decreto presidencial, já que a nacionalização tem que ser “por uma lei formal”, que saia da Assembleia nacional. “Completamente errada”, enfatiza Pedro, insistindo que a nacionalização só pode ocorrer com uma lei da Assembleia Nacional. Sublinhando que, ao contrário do confisco, a nacionalização é abstracta, o jurista alerta que, no caso concreto, não se pode dizer que houve nacionalização. “É como se o bem ainda pertencesse ao indivíduo e o que está a ocorrer, neste momento, é uma titularidade ou posse indevida exercida pelo Estado, é inconstitucional”, remata.

“Não deve produzir qualquer efeito por haver aí vício de forma”, concorda, por sua vez, Bruno Dessidi que não descarta a possibilidade de, no futuro, os privados impugnarem a decisão. “Esta é a nossa análise, mas quem detém o poder? Não devia produzir efeito, mas está a produzir”, critica, admitindo, por outro lado, o confisco como a melhor opção.

Outro jurista Domingos Kitanda concorda que as nacionalizações poderão representar “problemas no futuro, se não for provado que as empresas foram constituídas com fundos públicos”. Comparando com Portugal e Brasil, “países com a mesma moldura jurídica que Angola”, Kitanda entende que o processo de nacionalização devia ser determinado pelo tribunal. “A nacionalização é um processo político administrativo que prevê direito à indemnização ao antigo proprietário”, conceitua, observando que “o Governo está a fazer as coisas de forma atabalhoada”.

Maria Luísa Abrantes, através das redes sociais, foi a primeira a criticar a nacionalização das participações da sociedade comercial Miramar Empreendimentos no Hotel Intercontinental, tendo salientado que o Presidente da República não tem poderes para nacionalizar, mas antes a Assembleia Nacional. “Ao nacionalizar, o PR compromete-se a indemnizar (pagar/ comprar ao preço de mercado o hotel)”, alertava.

A jurista lembrava ainda que só devem ser nacionalizados bens estratégicos, uma das premissas da Lei da Delimitação das Actividades Económicas. “O sector da hotelaria, sobretudo nesta fase, é estratégico?”, questionava.

O que diz a Lei

Aprovada em Março de 1976, a Lei das Nacionalizações e confisco de empresas e outros bens foi pensada devido à “situação caótica, herdada do colonialismo e agravada pela guerra imperialista, que criou a necessidade de regular imediatamente as condições de nacionalização de algumas empresas e dos bens abandonados ou pertencentes a traidores”.

“O Conselho da Revolução poderá, em caso de especial interesse para a economia nacional e sob proposta do Conselho de Ministros, determinar a nacionalização da totalidade ou de parte dos bens das empresas, nacionais ou estrangeiras, que venham a ser considerados importantes para a economia de resistência”, estabelece o diploma.

A lei, cuja necessidade de actualização é apontada por especialistas como urgente, fixa ainda que “o Conselho da Revolução poderá ainda, sob proposta do Conselho de Ministros, determinar a nacionalização da totalidade ou de partes dos bens das empresas em que se tenha verificado uma intervenção do Estado nos termos do Decreto-Lei n.o 128/75, de 7 de Outubro, quando considere que a sua permanência no sector privado é contrária ao interesse nacional”.

O artigo 2 da Lei aborda o caso de empresas constituídas “com débito para com o Estado”, que é a situação de muitas empresas confiscadas e ou arrestadas que terão sido erguidas com financiamentos da Sonangol ou de outras empresas públicas, no quadro da Lei do Fomento Empresarial Privado de 2003.

A Lei de 1976 define que “o Conselho da Revolução poderá, sob proposta do Conselho de Ministros, determinar a nacionalização da totalidade ou de parte dos bens das empresas que tenham sido objecto de apoio financeiro por parte de instituições de crédito do Estado e que não tenham aplicado esses financiamentos em operações de interesse para a respectiva empresa e para a economia nacional”.

Estabelece ainda que se pode “determinar a transformação compulsiva dos créditos” em capital social da empresa devedora. “A resolução do Conselho de Ministros a que se refere o número anterior implica a alteração imediata do pacto social de empresa em causa e é título bastante para o registo dessa alteração na Conservatória do Registo Comercial.”

A Lei, entretanto, determina a indemnização no caso das nacionalizações, esclarecendo que “as condições de indemnização dos titulares dos direitos relativos a bens nacionalizados serão estabelecidas por negociações entre o Estado e os interessados”.

No caso de “Confisco por Sabotagem Económica”, a Lei determina que “o Conselho da Revolução poderá, sob proposta do Conselho de Ministros, determinar o confisco das empresas ou dos bens dos cidadãos nacionais ou estrangeiros que pratiquem, nas unidades económicas em que exercem funções de administradores, directores, gerentes, delegados do Governo ou membros de Comissões de gestão” vários actos considerados crimes pela referida Lei.