ANGOLA GROWING
JOSÉ MACEDO, PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA LACTIANGOL

“Estamos a exportar empregos e a combater a indústria nacional”

Crítico das acções do Estado que “fomentou mega-projectos inúteis”, José Macedo ataca as políticas governamentais por favorecerem a importação de leite, em vez de apostarem na indústria nacional. Defende a troca das “missões, visitas, colóquios e ‘workshops’” por acções mais práticas que façam “crescer o país” como “sair do gabinete e ir para o campo”. E acusa os técnicos que trabalharam no PRODESI de não conhecerem o país. PCA da Lactiangol fala ainda da decisão de abrir o capital da empresa como forma de a tornar líder do mercado.

 

“Estamos a exportar empregos e a combater a indústria nacional”

Como analisa a parte económica do discurso do Presidente sobre o ‘estado da Nação?’

Há esperança que os financiamentos angariados sejam uma prova de que, internacionalmente, Angola começa a ter uma imagem de confiança. Havendo confiança, vão atrair-se investimentos para o país e facilita-se o financiamento internacional em condições mais benéficas. A política de transparência que pretende implementar vai ser benéfica para o ambiente de negócios, porque o negócio cresce quando há confiança dos investidores na economia e na transparência do órgão gestor do país.

O Presidente prometeu potenciar a produção nacional e promover as empresas que se podem tornar referências. Não sendo um discurso novo, acredita nisso?

Não tenho dúvidas de que a vontade do Presidente é essa, mesmo que se promova a produção nacional. Tenho sérias dúvidas de que o aparelho do Estado tenha a dinâmica para promover esta produção nacional, porque não tem acompanhado a dinâmica do sector privado. O Estado entende o privado como uma forma de fazer negócio e não uma forma de fazer empreendedorismo.

É a mesma realidade de um passado recente?

No passado, fomentaram-se mega-projectos, que só arruinaram a economia. Alimentou-se meia dúzia de empresas e de empresários nacionais, com fortunas muitos grandes. Fizeram mega-projectos, que inclusivamente chamavam ´empresas âncoras’. Percebi que eram âncoras porque não deixavam andar o país. Gastaram-se fortunas nestes projectos que, hoje, estão arruinados. Poucos ou nenhum são uma realidade produtiva rentável. São alimentados com privilégios porque, de outra maneira, estavam falidos e muitos estão completamente falidos.

Mas esses projectos também não terão sido apoiados pelo mesmo espírito a que se referiu o Presidente da República, quando fala em apoiar empresas que sejam referências?

Penso que, de maneira nenhuma, vão repetir o modelo anterior, que é alimentar estes ‘elefantes brancos’, que apenas provocam profundos rombos nos orçamentos.

Porque dúvida da capacidade do aparelho do Estado em apoiar o sector privado?

Não tem capacidade ainda para dinamizar a economia virada para resultados e eficiência. Tem estado adormecido numa burocracia, vivendo de missões, visitas, colóquios e ‘workshops’. O aparelho do Estado vive de ‘show off’ e isso não é fazer crescer o país. Crescer o país é ir para a realidade, sair do gabinete e ir para o campo, responder às necessidades do país. Desde as delegações municipais às direcções nacionais devem trabalhar no dia-a-dia e não apenas no dia em que o ministro vai visitar as fazendas ou os agricultores.

“Técnicos não conhecem o país”

Continua a manter uma visão crítica sobre o PRODESI?

Mantenho. Efectivamente, considero que o PRODESI, tal como foi implementado, enferma de muitas lacunas e algum desconhecimento do país real e peca em muitos sectores importantes. Que visão devia incorporar? Deveria estar informado sobre a realidade do sector dos lacticínios; demonstra que não conhece o valor das empresas que produzem iogurtes, queijos e outros produtos derivados; desconhece as empresas que produzem leite a longa duração no país e ainda vêm falar do leite em pó. Voltar ao leite em pó, quando todo o mundo reconhece a necessidade de se fazer dieta alimentar com leite líquido. Os técnicos do PRODESI não conhecem o país.

Como está a indústria de lacticínios, no geral, e a Lactiangol, em particular?

O desempenho da Lactiangol, em 2018, tem sido muito difícil. Temos enfrentado dois grandes problemas. A primeira dificuldade é relativa à importação do leite. Durante o primeiro trimestre, foi dado um grande enfoque ao comércio. Foram libertadas muitas divisas para a importação de bens alimentares, sobretudo os da cesta básica, quando a nossa indústria se viu privada de divisas para importar matérias-primas necessárias para produzir. Enquanto a indústria nacional teve acesso a divísas para produzir, houve uma ‘inundação’ de leite e derivados provenientes da importação. Temos este grande problema: a porta escancarada à importação de leite, cujas taxas alfandegárias deixaram de existir e uma grande dificuldade em adquirir matérias-primas.

Qual é o segundo problema?

A perda de poder aquisitivo da população que provocou um decréscimo nas vendas em todos os produtos. Isto é comum à indústria e ao comércio. É notório que, com a depreciação da moeda nacional e o aumento dos preços de bens de consumo, houve um aumento na generalidade de todos os bens.

A nova pauta aduaneira não protege os lacticínios?

A pauta aduaneira liberalizou completamente a importação do leite. Reduziu a zero a pequena taxa que era aplicada ao leite que agora deixa de existir.

Vê alguma lógica nisso?

Num país em que há fábricas ou instalações industriais que produzem lacticínios, como é o caso da Lactiangol, com uma grande capacidade de produção, não faz sentido o Estado paralisar a indústria nacional para beneficiar a importação. Estamos a exportar empregos e criar desemprego entre os angolanos, transpondo os empregos para os países de onde importamos o leite. Está é a realidade. Não nos podemos queixar do desemprego quando a culpa é de quem autoriza importar. Quando se faz a importação de algo, que é feito no país, estamos, repito, a exportar empregos e a combater a indústria nacional. É bom que se diga isto com todas as letras e sem medo. Quando se importa e se licencia livremente milhões de litros de leite, que devem ser produzidos no país, estamos a combater também o desenvolvimento tecnológico do país.

A produção interna justifica a protecção que reclama?

Não quero falar pelas outras empresas. A Lactiangol pode, perfeitamente, produzir dois milhões de litros de leite por mês com tudo o que tem, sem ter necessidade de acrescentar pessoal, turnos e sobrecarregar equipamentos, o que representa 24 milhões de litros de leite por ano que deixariam de ser importados. Só por aí é um número bastante significativo. Calcula-se que o país esteja a importar, por ano, 50 milhões de litros de leite e a Lactiangol consegue produzir internamente metade sem trabalhar 24/24 horas.

E qual é a produção actual da Lactiangol ?

A Lactiangol não está a produzir praticamente nada, porque não tem mercado para escoar. Primeiro, não tem condições para obter matérias-primas suficientes, como também não tem mercado, que é este está dominado por empresas estrangeiras que estão a exportar os produtos com a ajuda do Governo, bem como da própria União Europeia. Os supermercados fazem ainda uma coisa muito grave, que é a seguinte: os importadores têm necessidade de renovar os ‘stocks’ e de importar cada vez mais, é-lhes dada essa possibilidade permanentemente de aquisição de divisas e, por si, os importadores colocam o leite importado com margens extremamente baixas e o nacional com margens que chegam a 100%. Temos casos de superfícies comerciais que podem ir a 100% acima do preço do produto da Lactiangol, outros 65% para que o leite nacional tenha um preço mais elevado e o cliente compre o importado. E qual é o racional desta operação? Quem importa mais movimenta mais divisas. As grandes transferências de capital para o exterior deixaram de ser feitas. Portanto, as exportações de capitais acabam por ser feitas pelas importações.

E qual é a média actual de produção da Latiangol?

No último mês, produzimos cerca de 60 mil litros por semana.

A queda de produção forçou a demissão de trabalhadores?

Não. Colocámos alguns trabalhadores em casa, estamos a pagar para não despedir, porque temos a noção de que a situação é passageira e a maioria dos nossos trabalhadores são quadros que levou muito tempo a formar. Se os despedirmos agora, onde vamos arranjar outros? Não é fácil. Preferimos atravessar esta crise com expectativa de que as coisas melhorem.

A exportação não faz parte dos planos da empresa?

Já pensámos nesta perspectiva, mas se não estamos em condições de satisfazer o mercado nacional, não faz sentido estar a exportar. Primeiro, queremos satisfazer o mercado nacional e poupar divisas ao país, trocando a importação do produto acabado pelos produtos nacionais. Depois, vamos colocar os nossos produtos nos países vizinhos, mas isto deve ser feito faseadamente. Não podemos colocar produtos nos países vizinhos quando nem sequer cobrimos Luanda. É evidente que temos de ter os pés assentes na terra, crescer de forma sustentável.

Muitas vezes, apelou para que os agro-pecuários investissem no gado como forma de reduzir a dependência da indústria de lacticínios à importação. Qual é a realidade actual?

Temos duas fontes de fornecimento. Na interna, recebemos 23 mil litros de leite em natureza por mês de fornecedores locais e o restante é complementado com leite importado.

A produção local está longe de atender às necessidades?

É baixa, porque, nas condições actuais, é muito difícil fazer a criação do gado leiteiro, que é muito complicado. Exige alimentação muito rigorosa, assistência veterinária exigente, higiene muito delicada. A exigência do gado leiteiro não é, de modo algum, comparada à do gado de corte. A maior parte da pecuarista prefere o gado de corte por ser menos exigente e mais rentável.

O Ministério da Agricultura tem projectos das bacias leiteiras para melhorar a produção?

O projecto é uma coisa, a realidade é outra. Havia vários projectos, mas, depois, a implementação nunca existiu ou não foi conduzida por forma a dar resultados. Não é fácil implementar povoações de gado leiteiro e não é fácil torná-las sustentáveis. Temos de ter em conta que exigem, quer dos produtores, quer do próprio Estado, esforços que, muitas vezes, não são exequíveis e fáceis de implementar. Normalmente, os países africanos são considerados exportadores de matéria-prima para os países ricos para serem transformados e ganharem valor acrescentado. A Alemanha não tem café, mas o Brasil é dos maiores produtores mundiais. A Alemanha transforma o café que importa sete vezes acima do seu valor. Recebe o café como matéria-prima, transforma em cápsulas, aditivos com descafeinados uma série de produtos que aumentam o valor acrescentado sete vezes mais, sem ter produção interna de café.

Como se tira partido disto?

Não precisamos de ser um país rico nem especializado, temos uma indústria com tecnologia para transformar o leite, que é uma matéria-prima barata. Precisamos de o transformar industrialmente e daí tirarmos a mais-valia, não só em valor acrescentado, mas em termos de evolução tecnológica.

Como a Lactiangol pensa ultrapassar essa fase difícil?

A solução foi abrir o capital a novos investidores com capacidade de traçar um novo rumo, dar uma nova capacidade financeira e funcional à empresa.

Quem são esses novos accionistas da Lactiangol?

Ainda não posso revelar.

Quanto foi injectado por parte desses novos accionistas?

Estamos a preparar a entrada de capital, o suficiente para colocar a empresa num patamar capaz de liderar o mercado.

De quanto é que a Lactiangol precisa, em divisas, para importador os insumos?

Em média, para produzirmos dois milhões de litros de leite por mês, necessitamos de 950 mil euros. A banca não tem capacidade para isso, porque tem todo o comércio para atender prioritariamente.

A empresa tem metas a alcançar, apesar do contexto económico adverso?

Não vou falar de metas, porque é muito difícil traçá-las com esta situação. Podem, a qualquer momento, ser alteradas. Basta uma quebra nas importações e imediatamente a produção nacional cresce. Basta que haja uma taxação das importações para a produção nacional crescer. Os nossos objectivos são conseguir rentabilizar a empresa, colocando no mercado toda a produção nacional do leite disponível, sem deixar um litro que é produzido no país por vender, para que não se deixe estimular a produção nacional e alcançarmos uma qualidade ao nível de qualquer produto importado. São os dois grandes objectivos que queremos atingir.

Há grandes diferenças entre leite nacional e os importados em termos de qualidade?

Por regra, fazemos sempre testes, as chamadas ‘provas cegas’ e muita gente prefere o produto da Lactiangol.

Como perspectiva o futuro do mercado de lacticínios em Angola?

Há duas hipóteses. Ou o Executivo reconhece que o país tem condições internas para produzir e há um potencial enorme neste domínio, porque o leite é efectivamente a proteína mais barata do mundo. Ou o Executivo considera que devemos basearmo-nos no leite em pó e na importação do leite líquido e a receita dos lacticínios nacionais será uma coisa marginal.

Falta o reconhecimento de indústria de lacticínios em Angola?

Falta, completamente.

O que se deve fazer para inverter o quadro?

Começa pelas próprias compras do Executivo. As Forças Armadas Angolanas (FAA) são os grandes consumidores de leite. Durante vários anos, compraram leite à Lactiangol. O depósito das FAA, a base central de abastecimento (BCA) está a 500 metros da nossa fábrica. Por uns anos a esta parte, começaram a comprar leite na Alemanha. Têm o leite a 500 metros e vão dar emprego aos alemães para fazer o leite.

Mas a Lactiangol já foi privilegiada quando servia a merenda escolar, certo?

As administrações municipais criaram ou inventaram ou surgiram empresas não sei como, que fornecem sumos rebuçados e uma série de coisas. Hoje está reduzida a um número reduzido de escolas. As administrações fazem concursos onde a Lactiangol nunca é convidada ou nunca ganha e depois não sei como anda.

Perdeu todos os contratos do programa merenda escolar?

Estamos com dois municípios.

Há perspectivas de expandir mais fábricas pelo país?

Não. Há perspectiva de diversificar a produção com introdução de novos produtos.