“Estão a vender a minha imagem como um bandido”
O antigo vice-ministro da Defesa revela detalhes da parceria que é hoje motivo de um conflito com Christopher Sugrue. Acredita estar a enfrentar lobistas bem posicionados que defendem os interesses do empresário norte-americano. O general queixa-se da justiça angolana e questiona a capacidade desta de investigar. Sente-se perseguido, mas lembra que sobreviveu ao ’27 de Maio’ e também vai “sair vivo desta contenda”.
Em que circunstâncias se tornou parceiro de Christopher Sugrue?
Começámos de uma forma acidental. Um amigo do Chris falou com o meu sobrinho que conhecia um americano que procurava um parceiro sério em Angola para investir no imobiliário. Ligaram para mim, estava no meu ‘resort’ na Barra do Dande e pedi que fossem lá ter comigo. Foram com o americano. Disse-me que estava à procura de um parceiro com terrenos para construir. Disse-lhe que tinha um na Petrangol, mas que não dava para um projecto imobiliário e outro na Barra do Dande, que ainda não estava devidamente legalizado. Ele disse que, na Barra do Dande, dava, inclusive ainda temos a maqueta do projecto. Era suposto, depois de termos o direito de superfície, ele pegar também naqueles terrenos. Já não pegou, porque as coisas tomaram outros contornos. Sugeriu que começássemos por construir uma casa para mim. O interlocutor principal deste negócio era o meu filho. O meu filho sugeriu-me aceitar a proposta da construção da casa porque, inicialmente, não me sentia em condições de comprar uma por um milhão. Mas foi contruída? Sim. O meu filho insistiu que pagássemos às prestações e assim fizemos. Foi o primeiro negócio que fizeram. Tenho os papéis que provam que a casa foi comprada e não oferecida.
Nessa altura já eram sócios?
Não. Eles tinham uma empresa deles e nós a nossa. Fizemos acordos. Eles construíram a minha casa e mais uma modelo. Quando estavam quase a terminar, disse ao meu filho que construir ali era penoso por falta de infra-estruturas. Durante a construção da casa, alojaram-se no meu ‘resort’, não pagaram um tostão, nem pela alimentação.
E como surgiu o espaço na Ilha?
A uma determinada altura, ele insistiu em perguntar ao meu filho se eu não tinha mesmo nada. Eu tinha este lugar na ilha. É um antigo estaleiro da Desco, uma empresa sueca que prestava serviços ao Ministério das Pescas, que servia para alojar o pessoal.
Em que circunstâncias passou a ser o proprietário?
Quando a Desco terminou, entregou às pescas. O meu irmão mais novo trabalhava na Desco e disse-me que tínhamos aquele espaço que podia ser um benefício para a família. Ficámos com o contrato da gestão. Passado um tempo, o Ministério das Pescas notificou-nos para entregar o complexo por incumprimento de pagamentos, mas, verificando a contabilidade, tinha um saldo a meu favor de mais de 500 mil dólares. Aquilo funcionava como um ‘saco azul’ do Ministério. O secretário-geral ia buscar dinheiro constantemente, nós dávamos, mas tínhamos tudo apontado. Pedi à ministra que me devolvesse o dinheiro e só assim devolveria o complexo. Ela sugeriu assinar um compromisso em que iam me pagando. Não aceitei e começou um braço-de-ferro.
E venceu?
Saiu uma disposição do Governo, que dizia que as instituições públicas não podiam gerir patrimónios habitacionais. Aproveitei isso e requeri ao IPGUL o direito de superfície, pelo qual paguei 43 milhões de kwanzas e registei em nome da minha empresa. O secretário-geral das pescas era o actual governador de Luanda e a juíza que decretou a providência cautelar é filha do governador de Luanda.
Quando é que foi isso?
Foi muito antes de todo este conflito. A ligação com aqueles senhores foi em 2007.
E em que termos estendem a parceria para este espaço?
O meu filho falou comigo, lembrei-lhe do que aquilo representava para nós, mas acabei por aceitar e fizemos um acordo para cinco anos. Construir-se-ia ali. Depois de cinco anos, faríamos as contas e o compromisso seria eu reter 30% e, dado o investimento, eles ficariam com 70%. Passados cinco anos, não vi um tostão e começa a fase das mentiras e das falsificações. Começaram as desculpas, diziam que não facturaram nada e que tinham de construir um outro edifício e sugeriram que concorrêssemos à bolsa de valores. Ele tinha a arte de convencer e convenceram-me a fazer mais um esforço.
O que significava este novo esforço?
Não ter nada, não receber nada. Às vezes, quando temos a ideia de que o melhor está por vir, acreditamos, e nós, na altura, estávamos de boa fé. Passados cinco anos, este senhor vem dizer que investiu 55 milhões de dólares. É estranho porque o dinheiro em Angola entra pelos canais oficiais. Se não for assim, é branqueamento. O dinheiro tinha de entrar através da ANIP. Perguntem a eles que dinheiro entrou para estes senhores investirem. O dinheiro que utilizaram para construir foi de dois contratos assinados por nós. Um deles é um projecto de construção feito no Ministério da Defesa. Através dos nossos ‘corredores’, conseguimos que o Ministério nos concedesse o contrato. É com esse dinheiro que reinvestimos na construção. Eles não trouxeram nenhum investimento, pelo contrário, sacaram o dinheiro que estava a entrar. Funciona como um condomínio, havia contratos de longo e curto prazos, inclusive contratos que ele fazia com inquilinos no exterior. O dinheiro nem sequer entrava aqui, mas nós temos o controlo, sabemos quanto dinheiro levou daqui. Passado isso, foram mais cinco anos, que perfazem dez, depois mais dois anos, em que comecei a pressionar…
Quanto é que eles terão facturado?
Isso são coisas que não vou revelar, só em tribunal. Senão fico sem defesas. Ele não disse que investiu 55 milhões de dólares?! É o dinheiro que me roubou.
Não recebeu mesmo nada?
Não recebi nada. Por isso, resolvi retomar a minha propriedade. A última reunião que tive com ele foi em 2016, disse-lhe que não havia condições de continuarmos a parceria e que não havia de lhe cobrar nada, só as minhas propriedades e tudo o que fosse produzido em Angola.
O que ele respondeu?
Não respondeu nada porque já tinha o plano, a golpada que estava a preparar. Contava ficar com as coisas. Só que eu anulei tudo isso, através de canais próprios e oficiais. Fiz outros registos em nome da minha filha. Quando ele quis dar o golpe, já não o podia fazer porque a propriedade já não era dele.
Fez mesmo pelos canais oficiais, ele como sócio não tinha de assinar também?
A propriedade era minha, ele não era sócio. Era parceiro de construção e exploração daquilo que se estava a fazer em condições que estão bem especificadas nos acordos e que ele não cumpriu.
Em que condições o senhor toma posse do espaço?
Ele fugiu, depois de tomar de assalto a propriedade. A propriedade voltou para mim. Só o tinha colocado dentro da parceria, não o tinha feito sócio daquilo que é meu.
Ele depois despejou o senhor. Certo?
Não. A 3 de Agosto de 2017, o Chris veio para Angola. Sabendo que eu não estava, invadiu o condomínio, levou o SIC, advogados e polícia para tomar posse do edifício com a justificação de que tinham destituído o então gerente e nomeado um novo. Ameaçaram deportar o gerente que é israelita. No meio da confusão, este gerente consegue ligar para mim. Em seguida, telefono para a minha filha para ir comprovar o que se passava. Houve uma discussão com o Chris, ela foi buscar a polícia e correram com eles. Depois disso, a minha filha fez diligências para interditar a saída do Chris de Angola, mas sem sucesso, pois partiu nessa noite. Em nenhum momento, agiu no sentido de resolver o diferendo. Agora, só queremos que seja o tribunal a decidir.
Mas o que sabe dele?
Quem é esse cidadão norte-americano? Eles são bandidos de alto nível. Têm cadastro na Namíbia, Suíça, Itália…
Quando é que se apercebeu disso?
Quando começámos a ver o comportamento, começámos a querer entender o porquê. E essa gente não fica calada. O meu filho conhece pessoas que trabalham no escritório dele em Londres e há lá uma brasileira que nos disse que estava a ouvir comentários do que o Chris queria fazer com a nossa família.
Mas, para já, as autoridades angolanas, as judiciais pelo menos, dão-lhe razão. Como explica isso?
Porque os bandidos todos se juntam. Como é que uma estrutura que tem o direito de investigar, estamos há dois anos com queixas, e não faz nada?. Até estão a preparar a opinião pública de que, se não se consegue empréstimos do FMI, é porque há um diferendo entre mim e um cidadão americano.
Não faz sentido?
É um absurdo.
Mas acha que ele tem ‘lobbys’ para tanto?
Mas ele não aparece. Os ‘lobbys’ dele estão aqui mesmo. Não vou dizer, mas conheço-os.
São angolanos?
São. Há uma senhora, que também não vou dizer quem é, que me mandou por quatro vezes o artigo sobre o condicionamento dos empréstimos do Banco Mundial.
Não terá sido apenas para o manter informado?
Não. Faz parte do ‘lobby’. É mesmo para desgastar. Lembrei-me do caso do ex-vice-presidente Manuel Vicente em que o país se mobilizou e criou-se até um conflito para defender a integridade do Manuel Vicente como angolano. E eu sou o quê? Sou estrangeiro? Porque é que não falaram comigo para saber o que se estava a passar?
Os generais são vistos como pessoas que se aproveitam da posição para abusar do poder. Não será por isso?
Aproveitei-me de quê? Pelo contrário. Reformei-me em Fevereiro. Desde 2016 até ser reformado, congelaram o meu salário. Já recorri a tudo quanto é canto.
Mas está consciente de que a sociedade olha assim para os generais?
Mas é um erro. Se os generais foram vistos assim, foram mal vistos. É uma campanha enquanto estamos todos no mesmo saco. Mas quem faz isso são os que fugiram. Quando foi preciso dar o couro e arriscar a vida não estavam lá. Quando já não há guerra, os generais são descartados. Acha que sou a única vítima desta discriminação dum país que não dá dignidade aos seus soldados? Não costuma ouvir a reclamação dos antigos combatentes?
Mas sente-se abandonado?
Não estou abandonado porque tenho forças para trabalhar. Não preciso que alguém cuide de mim, mas deixem-me trabalhar. Deixem-me cuidar daquilo que é meu e que adquiri legalmente, porque não fui fazer ‘corredores’ a ninguém. Usei as prerrogativas que tenho. Levei quase seis anos para legalizar os terrenos da Barra do Dande. Fui mais de oito vezes ao Bengo, às sete horas da manhã, ficar em frente à casa do governador para ele me receber. Fiz isso humildemente, não mandei estafeta, não mandei carta.
PAÍS INVERTIDO
Não acredita que estamos num país novo?
Acredita nisso?
Então como é que se compreende a usurpação de competências? A procuradoria decreta sentenças ou são os tribunais? Um país novo com inversão pública. É este o país novo que se quer construir?
Não acredita nos sinais de melhoria?
Não sei se acredito ou não acredito. Não faço a avaliação. Cada um entende que país estamos a construir.
Acredita que os ‘lobbys’ do senhor Chris têm ligações suficientemente fortes para se sair vitorioso?
O que foi que eu disse? Trabalham com quem?
Podem ser só suspeitas…
Então investiguem. Este conflito começou em Agosto do ano passado. Fui informado de que havia interesse da mais alta magistratura do país em saber o que se estava a passar e orientou mesmo para eu ser ouvido. Porque é que não o fizeram até hoje?
O que lhe parece?
Não sei, mas todos os dias há disposições novas para crucificar o Andrade, inclusive invertem valores e competências das estruturas.
Disse que nunca tinha visto o aparato policial que, no dia 1 deste mês, esteve no espaço em conflito para o desalojar. Não está a exagerar?
Viu a entrevista que o Abel Chivukuvuku deu há dias? Acha que o pronunciamento dele já não foi um pronunciamento de ‘lobby’ dos americanos? Ao invés de falar dos assuntos que lhe dizem respeito, esquivou-se. Quando se referiu à corrupção, disse que os americanos não vêm para cá, porque fazem parcerias com angolanos e os angolanos ficam-lhes com tudo e correm com eles. Alguma vez o Chivukuvuku tem o direito de fazer uma afirmação destas? Não é ‘lobby’? Na verdade, a Unita fez sempre ‘lobby’ aos americanos. Mesmo que ele tenha feito outro partido, a génese dele é a Unita.
E é prova bastante?
O assalto foi numa sexta-feira. Na quarta, por volta das 20 horas, um alto mandatário da polícia foi ao complexo averiguar se havia tropas. O nosso funcionário explicou por quem era feita a segurança. O polícia perguntou se eu vivia lá. O funcionário disse que não, mas que vou lá todos os dias e que trabalho lá. Na presença do meu funcionário, ligou para uma entidade superior e disse que verificou que não havia tropas. Do outro lado, o superior insistia que verificasse bem e ele assegurou que não havia. Às 10 horas da manhã de sexta-feira, ligou-me o comandante-geral, porque o senhor procurador havia solicitado o meu número.
E o procurador ligou?
Sim. 30 minutos depois, liga a dizer que gostaria de falar comigo. Perguntei qual era o assunto e ele adiantou que era acerca dos imóveis da ilha. Disse-lhe que já estava nas mãos da justiça. Por ter reclamado dos processos que não andam, fui constituído arguido e aplicaram-me uma medida de coacção de termo de identidade e residência. Por reclamar, por escrito, numa carta dirigida ao procurador. Não fiz nada, não difamei nada, apenas escrevi e impuseram-me esta medida.
Encontrou-se com o Procurador?
Disse-lhe que não falaria com ele sem a presença dos advogados. Se estou nas mãos da Procuradoria-Geral da República, então tinha de ir com alguém para zelar pela minha integridade. Ele deu-me razão. Às 17 horas, mandam o aparato para me humilhar, intimidar. Um oficial sai das forças armadas e leva consigo um exército? Onde é que ia buscar tropas? Então foram lá, com o pretexto de que o general Andrade tinha tropas, então teria de haver um combate. Eles não sabem de guerra. Mas a minha guerra não é com eles, é com a injustiça. Não estou a pedir que me defendam como defenderam os bandidos.
A quem se está a referir?
Tire as suas ilações. Só sei que estou a ser tratado como um bandido, estão a vender a minha imagem como um bandido.
Depois da operação, voltou a falar com o Procurador?
Liguei várias vezes, mas ele não atendeu.
E com o comandante?
Com ele falei, mas sabe o quê?! Pilatos. Estava dentro da trama, ele sabia.
PERFIL
António Francisco de Andrade Foi director do Instituto de Reintegração Sócio-Profissional dos ex-Militares de Angola (IRSEM) e ministro da Defesa, nomeado em 1990. Tem 70 anos, três filhos e está reformado desde Fevereiro, depois de quase 40 anos. Começou a investir em pequenos negócios não por ter espírito de empreendedor, mas sim por necessidade. “Trabalhar para sobreviver. Vou ficar sentado?”, interroga.
“Nunca fui ouvido, onde está o contraditório?”
O que levaria essas pessoas que acusa a defenderem o senhor Chris?
Ele não precisa de ser protegido nem defendido, como eu também não preciso.
Então porque é que acha que o estão a defender?
Porque é preciso liquidar as pessoas. É preciso dar a entender que o país está mal e que há culpados e temos de os encontrar de qualquer forma. Não podem ir buscar razões para crucificar, só porque querem mostrar trabalho.
O que estava escrito na reclamação feita à PGR que lhe custou a medida de coacção?
Reclamei simplesmente. Questionava que estrutura era esta que só defendia estrangeiros. Se era uma estrutura de malfeitores. Não acreditava que fosse assim, apenas perguntei. Eles constituíram-me arguido dizendo que injuriei as autoridades. No comunicado, a PGR diz que eu incorri à desobediência e, por isso, davam a propriedade à outra parte. Qual a proporcionalidade de desobediência para se entregar um património? Está a ver a incongruência? Que aberração é essa? Estas pessoas estudaram mesmo para conseguir saber como actuar em função da legalidade? Não estudei Direito, mas estudei e aprendi é que precisamos de ser correctos e, acima de tudo, verdadeiros.
Caso venha a perder, qual será a sua posição?
Não me vou suicidar. Só se eles me matarem.
Acredita no discurso do combate à corrupção?
Não são coisas do meu interesse, porque não estou envolvido em corrupção. Se isto for bom para o país, muito bem. Mas não é isso que me faz perder o sono ou que me faz alegrar. Estou mais preocupado com outras coisas: que consiga ter segurança, que consiga sentir-me digno no meu país.
Não estará a sofrer as consequências do combate à impunidade?
Mediante os factos e documentos, acha que estou a ser impune e protegido? Está a fazer uma pergunta que não posso aceitar. À partida, analisa que realmente tenho algum crime que precisa de ser combatido. Não tenho como aceitar que estou protegido ou que fui protegido. Não falei do 27 de Maio? Sabe o que passei? Até gravações para me incriminar foram feitas e passadas na rádio. Nem de um lado, nem do outro, nunca ninguém se desculpou. Saí da cadeia hipertenso, cardíaco, velho. Um mês depois de sair da cadeia, fiquei com barba branca.
Que desfecho perspectiva?
A questão fundamental é saber a quem pertencia o primeiro imóvel. Como é que a VRAL, empresa da minha família, passou para Elico? Quem é que criou a Elico? Quando? E o que foi acordado pelas partes? A acção principal está parada há mais de um ano. O tribunal decretou uma providência cautelar. Tenho cumprido. E a acção cautelar, que deve legitimar o julgamento para se ver quem tem razão e quem não tem, está parada há mais de um ano. Como é possível e porquê? Porque é que o juiz não despacha a acção principal? Todas as questões que até agora suscitámos que fossem resolvidas não tiveram pronunciamento do juiz Adelino Muhongo. Reclamamos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial sobre a actuação do juiz.
Está a reprovar o desempenho da PGR?
A PGR perdeu credibilidade ao agir como o fez no dia 1 e com o comunicado posterior dizendo que, por eu desobedecer, a propriedade deve ser entregue a outro. Nunca fui ouvido. Onde está o contraditório? Se a PGR não tem informação, busque informação. Tenho lá tudo. No comunicado diz que a propriedade passou para a Elico. Quem é o gerente da Elico?! Sou eu, portanto, a propriedade é minha.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...