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PERSONALIDADE DO ANO

Grupo Parlamentar da Unita: tentativa de destituição do Presidente da República

DISTINÇÃO. Pelo ineditismo e pelo simbolismo político da tentativa de destituição de um Presidente da República, o Grupo Parlamentar da Unita foi escolhido como a ‘Personalidade do Ano’, pelo jornal Valor Económico. É certo que a iniciativa da Unita começou por encalhar logo no parlamento, mas teve o mérito de juntar-se aos factos que, de forma destacada, marcam a luta pela efectiva pela democratização de Angola. Em termos imediatos, centralizou as preocupações sobre os caminhos que o país tem tomado, condicionou a narrativa sobre o terceiro mandato e aprofundou fissuras, mesmo que discretas, no topo do MPLA. 

Grupo Parlamentar da Unita: tentativa de destituição  do Presidente da República

A História de Angola regista, além da guerra, tentativas de golpes de Estado e de revoltas, subversões, assassinatos de cariz político e manifestações violentas. Mas ainda não tinha servido de palco a um ensaio de uma destituição, por via constitucional, de um presidente. Ou, em linguagem política internacional, de um ‘impeachment’. Até este ano, por iniciativa da Unita, que leva a proposta ao Parlamento, a 19 de Setembro. 

O grupo parlamentar da Unita argumentou que o chefe de Estado "subverteu o processo democrático no país e consolidou um regime autoritário que atenta contra a paz". Em duras críticas a João Lourenço, Liberty Chiaka, o líder do grupo parlamentar, acusa o Presidente da República de estar “contra a democracia, contra a paz social e contra a independência nacional". Por isso, justifica o pedido de ‘impeachment’, com uma “rejeição pela nação” que se “traduz na mais elevada taxa de reprovação já verificada em tempo de paz".

Durante os meses de Julho e Agosto, diversos dirigentes do MPLA, mais ligados a João Lourenço, vão desvalorizando a iniciativa da Unita e até desafiam que a proposta seja apresentada. Rui Falcão, porta-voz do MPLA, vai mais longe a antecipa que o partido de Adalberto Costa Júnior leve “uma surra definitiva”. Num comício em Luanda, carrega no tom desafiador: "venha o voto secreto, para eles levarem uma surra definitiva. Se é o que querem, e se a lei permitir, o MPLA não tem medo disto. E 100% dos deputados do MPLA não vão votar a favor disto".

No entanto, as certezas de Rui Falcão sobre a unanimidade no MPLA têm, como função primordial, travar qualquer tentativa de divisão e mostrar um partido totalmente unido em redor do seu presidente. Mas a realidade é outra. A direcção do MPLA, em particular o núcleo duro de João Lourenço, teme os resultados de uma votação no Parlamento, apesar da maioria que detém. 

Melhor do que ninguém, o MPLA tem noção de que a história do partido, desde a sua fundação, está marcada por divisões internas, lutas intestinas e criação de facções. Este ano, com uma possibilidade de um ‘impeachment’, os receios sobem de tom e ganham outra dimensão que tinham sido afastados durante a governação de José Eduardo dos Santos.

Em ‘off’, ou seja, em declarações não públicas, muitos dirigentes e até militantes históricos do MPLA não escondem o desagrado com a actual governação. Aliás, um descontentamento bem demonstrado já nas eleições de 2022. Dos mais de 600 membros do comité central do partido, cerca de 300 nem sequer foram votar. Simplesmente, abstiveram-se de ir às urnas. São números que abalam qualquer pretensão de se considerar o partido unido. Sem hesitações, o secretariado do Bureau Político do MPLA emite um comunicado para que sejam desfeitas quaisquer veleidades de não serem cumpridas as orientações: "Face à realidade constatada e à gravidade das acusações que tem vindo a ser protagonizada de forma irresponsável pela Unita contra o Presidente da República, chefe de Estado, titular do poder executivo, e comandante em chefe das Forças Armadas Angolanas, o Bureau Político do MPLA orienta o seu grupo parlamentar a tomar todas as providências para que o Parlamento angolano não venha a ser instrumentalizado para a concretização de desígnios assentes numa clara agenda subversiva, imatura e de total irresponsabilidade política".

A ameaça de uma possível divisão no MPLA empurra a que o partido trave qualquer intenção de vingar o voto secreto. A forma de votar o ‘impeachment’ entra no topo das preocupações. A Unita insiste no sufrágio secreto com a esperança de recolher votos de deputados eleitos pelo MPLA. O partido de João Lourenço trava qualquer veleidade de o voto não ser de braço no ar. Desta forma, sabe quem pode estar contra a actual direcção. 

Em termos constitucionais, para a proposta da Unita avançar precisaria de uma maioria qualificada dos votos dos deputados, ou seja, dois terços. O mesmo é dizer que a Unita teria de recolher mais 57 votos para juntar aos dos 90 deputados que elegeu. Apesar de ter noção da tarefa hercúlea, há dirigentes da Unita que se manifestam convencidos de que a proposta tem solidez para passar. E baseiam-se em conversas de bastidores com colegas parlamentares, mas, em especial, confiam em provocar sérios abalos políticos na governação. Cavalgando nos resultados eleitorais de 2022, acreditam que a proposta ajude a abanar os alicerces do poder.

A direcção de João Lourenço chega a fazer um apelo público, em que aconselha todos os angolanos a manterem a "serenidade, a coesão e o respeito pela diferença", mas com "um alto sentido de vigilância". O comunicado ainda se refere à necessidade de “cerrar fileiras em torno da firme liderança de João Lourenço". Acaba por ser um toque a reunir, que o partido se sente obrigado a fazer.

Pelo meio, organiza uma “acção de massas” que junta, como é hábito, milhares de pessoas. À cabeça do acto, surge Rui Falcão, um dos dirigentes mais destacados do MPLA e porta-voz do partido. Desta vez, Rui Falcão, à semelhança dos discursos anti-Unita feitos durante a guerra, recorre a expressões mais duras: "Com este comportamento irresponsável e antidemocrático, a Unita indica que pretende assumir uma atitude de rotura com o diálogo institucional, sobretudo em sede da Assembleia Nacional”. 

Durante o processo, entre o anúncio das intenções de Adalberto Costa Júnior e a apresentação do acto formal, alguns analistas políticos, membros da sociedade civil e políticos na oposição mostram apoio à iniciativa da Unita.  

Uma das críticas ao MPLA, mesmo sem ser surpreendente, parte de Marcolino Moco. O ex-dirigente e antigo primeiro-ministro reforça nos ataques ao MPLA, na altura em que dá forças ao processo de ‘impeachment’: “O Presidente João Lourenço está a matar os mecanismos judiciais de forma acintosa, à luz do dia, toda a gente a ver”. Marcolino Moco recorre aos despachos presidenciais para adensar as críticas, acusando João Lourenço de ter criado “um grande monopólio económico,” de estar a “empobrecer o país e a congelar o sangue do país: a moeda não circula, a fome, a indigência, o desemprego aumentam”.

No lado da Unita, a deputada Mihaela Webba refere-se à “violação da lei" por parte de João Lourenço como "motivo bastante para a destituição". 

Todos estes argumentos ajudam na formulação do processo de destituição, apresentado pela Unita. A votação, de braço no ar, dá o resultado previsto: o MPLA chumba a proposta, usando a sua maioria. Nenhum deputado, eleito pelo MPLA, arrisca votar ao lado da Unita. Para a história, fica a primeira tentativa de se tentar a destituição de um Presidente da República, recorrendo apenas a métodos políticos. 

No acto da votação, deputados da Unita gritam “ditadura!”, como já o tinham feito durante o discurso do Estado da Nação. 


CAIXA

Os argumentos económicos que endossaram o pedido da destituição

Com um conjunto de mais de 200 “provas documentais” com as quais argumentou a iniciativa do pedido de destituição de João Lourenço, o Grupo Parlamentar da Unita (GPU) juntou pelo menos 45 testemunhas, incluindo o ex-presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos ‘Nandó’, e Manuel Domingos Vicente, o antigo vice-Presidente da República ‘exilado’ nos Emirados Árabes Unidos. Nas chamadas “provas documentais”, os argumentos de natureza económica preencheram parte significativa da fundamentação. Denunciando destacadamente a contratação simplificada, o GPU acusou João Lourenço de “fazer descaso” do valor máximo permito pela lei dos contratos público. “Os seus actos de contratação simplificada sem o cumprimento da Lei dos Contratos Públicos, configuram violação do princípio constitucional da legalidade”, refere a acusação, acrescentando que, “por serem recorrentes e reiterados, atenta contra o Estado democrático de direito”, colocando a economia do país “a girar em torno de monopólios”, exemplificando com os casos da Carrinho, Omatapalo, Mitrelli  e Gemcorp. “Por força das reiteradas contratações simplificadas, por despachos do titular do poder Executivo, bens do Estado passaram para a esfera de grupos relacionados com os interesses privados do Presidente da República”, denuncia a acusação do GPU, mencionando como exemplos vários despachos, incluindo um em que João Lourenço autoriza o Ministério das Finanças a alienar cinco aeronaves do Estado a favor da empresa do seu irmão Sequeira João Lourenço, chefe adjunto da Casa Militar do Presidente da República, e outro em que autorização a celebração de contrato com a Sodimo, empresa participada pelo Banco BAI, em cuja lista de accionistas João Lourenço figura. O Grupo Parlamentar da Unita não deixou de mencionar o parecer do Tribunal de Contas, pelo qual concluiu que “as  conta do Estado não batem certo” e que a “situação financeira e patrimonial do Estado real do Estado é desconhecida”. “Há diferenças significativas e não explicadas entre as operações de crédito no OGE e o Balancete Estatístico, relativo aos Bilhetes e às Obrigações do Tesouro”, repara a acusação da Unita, insistindo que “os princípios que concorrem para a boa governação e que foram recorrentemente violados, na execução do OGE 2021, são o princípio da legalidade, o princípio da disciplina e da transparência financeiras”.