“Há perda de qualidade no funcionamento de alguns departamentos do Governo”
Considera frouxos os resultados do combate à corrupção e alerta para a necessidade de se implementar medidas de defesa da produção nacional. Ataca os estrangeiros que fingem produzir, mas apenas importam produtos. Critica o Governo por manter “incorreções que levam tempo a serem corrigidas, entrando em total contradição com um dos grandes lemas da governação que é a transparência” e entende que é ainda um tabu falar de créditos bancários. Optimista, confia que Angola vai sair da crise em breve.
Como é que se pode caracterizar a Associação Industrial de Produtos de Higiene, Limpeza e Cosméticos de Angola (AIPHILCA)?
A associação existe desde Abril de 2017. Resultou da necessidade de algumas empresas industriais se juntarem para atender às preocupações transversais já que se vivia o início da actual crise macroeconómica ou de recessão. Surgiram 13 indústrias interessadas e foram estas que assinaram a acta de constituição. Uma desistiu e outra, no início deste ano, também se separou por cessação de actividade. Actualmente, somos 14 empresas, incluindo uma que se quis aliar, cujo objecto social é o fabrico de máscaras faciais. Mas o universo desta indústria não se limita a estas 14.
E quantas operam no sector?
É difícil responder. Só o Ministério o poderá fazer. Para estas 14, cuja constituição e documentação de oficial temos em arquivo, das outras, desconhecemos. São várias e admitindo que todas trabalham legalmente só mesmo o gabinete de estudo, planeamento e estatística e a direcção da indústria poderão complementar esta informação.
Existe um número inferior ou superior se comparado com as que constituem a associação?
Por aquilo que vamos sabendo, através das respectivas marcas, são muitas, em número igual ou superior aquelas que estão associadas.
Considerando as motivações para a criação da associação, valeu a pena a aposta?
Plenamente. Estamos mais do que convencidos de que a iniciativa foi salutar porque, infelizmente, no nosso país ainda há uma influência significativa da administração estatal na actividade económica. Para o executivo, passou a ser mais fácil dialogar com uma entidade representando várias empresas do que receber casuisticamente quase as mesmas preocupações de várias entidades. Facilitou a interação, a interlocução e a busca de soluções. Entre elas, o acesso às divisas para importar matéria-prima e matéria subsidiária não produzida em Angola.
O acesso às divisas era a principal preocupação. Está ultrapassada?
Era uma das preocupações. Existiam outras que passavam pela reforma do mecanismo de licenciamento da actividade por parte do executivo. Passava também pela necessidade de se passar a observar regras de concorrência, porque a industria foi surgindo e, em contrapartida, a importação de produtos similares continuou e foi aumentando, quando o princípio era e é lutar gradualmente para a substituição das importações. Estes eram os pilares que dificultavam a actividade. Necessitávamos de fazer sentir o nosso parceiro natural, que é o executivo, que haveria que dar uma solução a estas preocupações. Assim surgiu o decreto presidencial 23/19 de 14 de Janeiro de 2019, no âmbito do Prodesi. Define a cadeia comercial da oferta de bens da cesta básica e outros bens prioritários de origem nacional. O que vinha corporizado em intenções passou a constar legalmente. Antes de importar, os produtores nacionais têm de ser ouvidos. A intenção é só importar o que não seja manufacturado em Angola. E também orienta que a gestão de divisas seja mais cuidadosa, no sentido de priorizar a produção nacional, fundamentalmente aquela que está voltada para a cesta básica.
A aplicação ainda não é uma realidade?
O país é rico em legislação, havendo uma grande dificuldade de ser respeitada. Estamos numa fase de fazer ver e sentir ao executivo que há muita coisa por fazer. Esta legislação foi complementada com a Nova Pauta Aduaneira que levou tempo a ser publicada. Estas duas ferramentas deveriam actuar em paralelo.
Enfrentam a concorrência desleal de produtos importados?
A realidade é catastrófica. Entra no país produto que seria desnecessário usar divisas, quando se diz de ‘boca cheia’ e permanentemente que os recursos do tesouro em divisas estão aquém das nossas necessidades. Para nós, é difícil entender. Continua-se a vender divisas para importar papel higiénico, guardanapos, rolos de cozinha, pensos higiénicos, fraldas descartáveis, sabão, detergente em pó e líquidos e outros quando temos capacidade suficiente para produzir esta gama de produtos e com qualidade.
O Governo decidiu não vender divisas para a importação de determinados produtos, mas a medida não foi muito bem acolhida pela Organização Mundial do Comércio (OMC)…
Conforme vai havendo capacidade de resposta interna, produtos similares podem ser importados por quem quiser, mas com os próprios fundos e não com recursos do tesouro nacional. Indo ao encontro da OMC, sugerimos que não se impeça a importação de nada. Muitos pseudoindustriais, que maioritariamente não querem filiar-se na associação, são os que conseguem ter o apoio dos organismos que administram as importações, violando normas que estão consagradas no decreto 23/19 e na pauta aduaneira. Estes pseudoindustriais conseguem licenciar operações de importação, conseguem com que os bancos efectuem pagamentos no estrangeiro de grandes quantidades de produtos que entram no país como matéria-prima quando são produtos acabados. Estes autênticos importadores, e não industriais, limitam-se a fazer o enchimento ou empacotamento do produto. Isso é uma autêntica violação das regras de concorrência, por um lado, e é um arrepio ao cumprimento e respeito às obrigações aduaneiras e fiscais.
A associação não tem sido suficientemente capaz de acabar com esta prática?
Não nos compete tomar decisões. Compete-nos colaborar com o executivo, demonstrando, de forma competente, cabal, técnica e legal, que determinados procedimentos desprezam, desrespeitam e violam disposições e prejudicam drasticamente o erário público, facilitando o branqueamento de capitais. Estes pseudoindustriais são quase 100% estrangeiros que não estão em Angola para outro efeito senão branquear capital. Esse tipo de cidadão evita sempre filiar-se em corporações e associações, porque há regras. Estivemos no passado 3 de Setembro com o ministro da Indústria e Comércio. Foi um encontro produtivo. Todas as nossas preocupações foram apresentadas, deixámos documentação a demonstrar e sugerir medidas. Estamos atentos no sentido de vermos aplicadas as melhorias, correcções aos atropelos clamorosos que existem, seja no licenciamento do produto acabado como matéria-prima que entra sem pagamento de imposições aduaneiras quando, quando o produto acabado, de acordo com a pauta aduaneira, deveria pagar ou deve pagar 50% do seu custo para proteger a produção nacional. Esperamos assistir, no mais curto espaço, à regularização destas graves insuficiências por parte do Ministério da Indústria e Comércio.
É um lobby organizado? Acredita tratar-se de uma situação difícil de combater?
Difícil não. Tem é de haver coragem e nós, como angolanos, ficamos apreensivos por se verificar que determinadas incorreções levam tempo a ser corrigidas, entrando em total contradição com um dos grandes lemas da governação que é a transparência, boa governação e intolerância contra medidas e comportamentos lesivos aos interesses da maioria. Talvez as nossas preocupações não tenham sido devidamente atendidas. Tendo passado a haver um novo titular do departamento da indústria e do comércio, esperamos que, com bastante urgência, esta concorrência absolutamente desleal seja corrigida e que se faça uma inventariação de quanto estas operações causaram de perdas ao tesouro nacional por falta da cobrança correcta dos impostos.
A associação tem ideia de quanto?
Participámos indirectamente em algumas secções do Grupo Técnico Económico (GTE) e, entre as acções que foram apresentadas, se enquadra o fornecimento de informação estatística por parte do Ministério da Indústria e Comércio. Será possível obter através do GTE estatísticas de quanto tem vindo a ser importado e quais os operadores destas importações que, usando posições impróprias, praticam o embalamento de produto acabado que trazem para Angola como matéria-prima em desastrosa concorrência ilegal com aqueles que efectivamente a transformam.
Mostrou-se favorável à decisão de não se vender divisas para a importação de determinados produtos. Está medida não estaria a criar condições para sustentar o mercado informal de divisas?
Acho que não, porque os bancos são livres de vender divisas e o empresário pode negociar com o banco. O banco só tem de direcionar as divisas que compra em leilão no banco central para importações pré-seleccionadas, mas também tem uma quota de livre comercialização, além de os bancos também terem passado a poder novamente comprar divisas de outras fontes.
A Autoridade Reguladora da Concorrência (ARC) publicou o guia da concorrência, em que deixa a entender que as associações funcionam, muitas vezes, como cartel, praticando actos anti-competitivos como combinar preços…
Não li, nem nunca ouvi falar. Se tivesse lido de certeza que iriamos reagir. No caso da nossa associação, não interferimos na estrutura de preços dos associados, nunca o fizemos porque não é necessário. Os preços ainda são legislados. A associação não se imiscui nisso. Se fossem produtos completamente livres, poderíamos eventualmente fazer concertações.
Qual é a capacidade de produção dos industriais da associação?
Dos 14 membros, 13 estão em Luanda e infelizmente só um em Benguela. Temos por fábrica em quilolitros para os produtos líquidos; em toneladas para os produtos sólidos ou granulados, e em unidades o que está a ser fabricado por cada um dos membros.
Tem noção da necessidade do mercado?
Não temos informação do consumo da nossa população. O que é que os supostos 30 milhões de angolanos consomem? Não sabemos. O que o angolano deve consumir de fuba de milho, de fuba de bombó ou de sabão comum por mês, para facilmente se calcular por ano, não está observado em parte nenhuma. Cada um faz as extrapolações com base em indicadores das Nações Unidas, do Banco Mundial, da primeira República de Angola. São aproximações que se fazem. Não há forma oficial de ter uma informação de quanto é que o angolano deveria consumir nem que fosse tão só para os produtos da cesta básica. Há algum empirismo no tratamento de matéria tão importante para a governação e para o planeamento do abastecimento
Com que bases a associação garante ter produção suficiente para atender o mercado? Não teme que uma medida como a que defende possa criar pressão?
Não. A associação reitera que os seus associados já produzem o bastante para satisfazer o consumo no país através das tais extrapolações. Por exemplo, no detergente em pó, temos a primeira e única fábrica a produzir quatro mil toneladas por mês. Uma não filiada está a produzir mil toneladas por mês. Já são cinco mil. Está a ser montada outra que vai produzir onze mil toneladas/mês. Onde é que se vai pôr 24 mil toneladas de detergente em pó? Quem é que consome detergente em pó em Angola? É um produto de consumo urbano. Onde está a população urbana em Angola? Está concentrada, em 90%, em Luanda. Pode perguntar por que é que este investidor veio fazer tanto produto para Angola. São ponderações a fazer, deve estar a ver a proximidade do comércio aberto na nossa zona. A ver a facilidade que vem sendo colocar os produtos na República do Congo sem controlo.
Já há membros da associação a exportar?
A exportar oficialmente, não. A exportar oficiosamente, através dos pontos de comércio fronteiriço como o Luvo e o Luau, sim.
Há quem defenda um maior investimento por parte do Governo nos mercados fronteiriços...
Os mercados fronteiriços são pontos importantes para a prática do comércio entre países vizinhos. Há décadas que isso é prática natural das populações. Isso está consagrado nas linhas de governação. Passa por algum investimento que aguarda pelo melhor momento, aventando-se a possibilidade de parcerias públicas ou privadas. É um assunto importante que deve estar nas prioridades das agendas de alguns departamentos do Estado, convidando também os representantes da actividade empresarial privada.
Apesar do discurso de combate à corrupção, no dia-a-dia sente que o caminho ainda é longo?
Sente-se perfeitamente no dia-a-dia. Sentimos uma perda de qualidade no funcionamento de alguns departamentos, em recursos humanos e informáticos e em capacidade de resposta. Há cada vez mais degradação da capacidade e eficiência na resposta de alguns departamentos àquilo que são as necessidades do empresariado.
Como enquadra o discurso de combate à corrupção?
Este discurso só é alicerçado por diplomas, mas não basta. Tem de ser tornado prático. Há falta de capacidade e de competência dos interlocutores e há muitos vícios ainda instalados. O fenómeno que passou a ser vulgarmente denominado, entre nós, de ‘gasosa’ ainda está muito patente.
Encontra alguma razão para esta perda de qualidade?
A principal explicação é a falta de autoridade.
De quem?
De quem de direito. Os departamentos têm líderes; os institutos têm lideres, as direcções, têm líderes. Por aí em diante. Falta de autoridade na cadeia.
Ainda não existem resultados da aposta na luta contra a corrupção?
É muito frouxo para aquilo que era expectável. Muito contemplativo.
Mas não será o resultado normal considerando que são apenas três anos de luta contra a corrupção e tendo em conta o nível de corrupção existente?
Estou de acordo, mas há coisas que, na vida profissional, não se compadecem com o adiar de tomadas de decisão. Se a pauta aduaneira diz que o produto acabado tem de observar estas e aquelas imposições, essas e aquelas obrigações fiscais, se uma das fontes do tesouro nacional é a arrecadação de receitas como é que se facilita que determinadas importações sejam feitas ilegalmente sem que as obrigações fiscais sejam observadas? Não é preciso esperar da legislatura, não é preciso de mais anos para impedir que isso continue a acontecer.
Quais são as suas expectativas com o Prodesi?
São boas. É um programa bem-vindo só que encontra também dificuldades na materialização particularmente nas respostas da banca aos créditos que são um imperativo em qualquer economia. Falar de crédito à economia é quase um tabu porque sabemos que os bancos conseguiam ser superavitários usando outros produtos que não a concessão do crédito.
A banca responde que não concede mais crédito por incapacidade de se apresentar projectos sustentáveis. Concorda?
Não concordo, porque os bancos abraçaram o repto. A estes bancos, foi solicitado que organizassem departamentos especializados para acompanharem e darem respostas a este desiderato que é a necessidade de concessão de crédito à economia. Esse chamamento passa pela necessidade de concessão interna daquilo que podemos chamar de o perfil e as condições para se ser candidato a crédito. A pessoa interessada é informada e recebe a matriz com todos os pormenores que deverá reunir para apresentar ao banco. O candidato a crédito ou trata disso na empresa ou recorre à consultoria. Foi posto à disposição pelo executivo o Inapem que está a ser reestruturado para assessorar os processos de candidatura a crédito. O primeiro a ser chamado na preparação e informação de como é que o interessado deve reunir os pressupostos para se candidatar ao crédito é o próprio banco.
Os bancos também se queixam da falta de garantias…
Foi uma dificuldade. As garantias podem ser reais do candidato ao crédito, que são quase que nenhumas face à realidade concreta do nosso país, mas, felizmente, o executivo conseguiu capitalizar o fundo de garantias de crédito que está aberto a toda a demanda que existir. Não conheço situações em que a garantia de crédito não tivesse sido accionada desde que os processos fossem organizados.
A pandemia covid-19 está a ser boa para os negócios da vossa indústria?
Esta maldita pandemia provoca que o cidadão acautele mais e melhor os cuidados higiénicos ou sanitários pessoais, da casa, do local de trabalho o que levou a que o consumo tivesse subido. Também alguns produtos de baixo consumo, como desinfectantes, entre eles o álcool gel, passaram a ser muito procurados. Este desinfectante era produzido no máximo em três unidades industriais, hoje já é produzido em cerca de seis.
Como olha para o futuro da vossa indústria?
Poderá ser promissor se houver a aplicação das normas que estão instituídas.
E para o futuro da economia, considerando os indicadores como inflação, sistema cambial, preço do petróleo?
Sou esperançoso. Já tivemos outros momentos não bons nestes quase 45 anos de independência. Este tem vindo a ser o mais prolongado por razões óbvias e não dependentes só de Angola. Temos de perseguir o propósito que é de fazermos mais nós mesmos o que nunca foi feito em 45 anos. Temos de fazer aquilo que sempre fomos buscar ao estrangeiro. Fazer mais e mais porque temos condições de ter peixe suficiente e a bom preço a todas as mesas e nas 18 províncias. Podemos ter hortofrutícolas em todas as mesas nas 18 províncias. Se assim for feito com rigor, muita disciplina, muito acompanhamento e controlo sairemos do estado preocupante em que nos encontramos.
Parece ser irreversível o caminho para a implementação da zona do comércio livre da Sadc e de África no geral. A vossa indústria está preparada?
O primeiro passo deve ser dado pelo do Governo, através do Instituto Nacional de Normalização e da Agência Nacional da Acreditação, porque está muito atrasado na criação dos pressupostos para serem instituídas as normas de qualidade e evitar que cada um a bel-prazer faça a tampa, a água, o sabão. Temos de criar condições para que isso fomente a qualidade e seja controlada. Só assim poderemos fazer frente à abertura que se avizinha do comércio da nossa região porque os outros já trabalham dentro destes parâmetros.
Também falta laboratórios para avaliação da qualidade dos produtos que entram e saem do país. Concorda?
Laboratórios e qualidade são imperativos. Os existentes são insuficientes e mais investimentos impõem-se, seja por parte do Governo, seja por parte do privado, seja por parte das associações económicas. É um dos nossos propósitos. Está dentro do nosso plano de trabalho, criar condições para fazermos um laboratório.
Perfil
Luís Gomes dos Santos, 65 anos. Nasceu na ex-Vila Teixeira de Sousa, hoje Luau, Moxico. Cresceu no Lobito. Seguiu para Luanda para dar continuidade aos estudos, tendo ingressado no Instituto de Contabilidade. Licenciou-se em Gestão pela Universidade Agostinho Neto. Trabalhou no Estado colonial, no Fundo de Comercialização de Angola que fazia da então Secretaria de Estado da Economia. Trabalhou no gabinete de promoção de exportações. Depois da independência trabalhou no primeiro gabinete de abastecimento de Angola e no Ministério do Comércio Interno. Esteve na primeira direcção da Empresa Nacional Distribuidora de Bens Alimentares, Endimba. Depois foi para o órgão central do Ministério, onde desempenhou várias funções, entre as quais, director do comercio retalhista, responsável executivo da comercialização no campo, director do gabinete do plano e director nacional do comércio. Saiu do Estado em 1991. A partir de 1992, apostou no privado, trabalhando desde então por conta próprio, sendo sócio-gerente da Huilux.
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