HÉLDER CARDOSO E STEFANO DAPERNO, CÂMARA DE COMÉRCIO ANGOLA-ITÁLIA

“Há receio do investidor italiano em saber como mitigar o risco financeiro”

Pequenas e médias empresas angolanas podem beneficiar-se de linhas de financiamento de bancos italianos. Há uma de 300 milhões de dólares já disponível, mas os critérios são rígidos. Um dos quais é a apresentação de garantias. Hélder Cardoso e Stefano Daperno, respectivamente, vice-presidente e vogal da Câmara de Comércio Angola-Itália, explicam, em detalhe, o trabalho de bastidores para se viabilizarem os financiamentos à economia angolana.  

“Há receio do investidor italiano em saber como mitigar o risco financeiro”
D.R

Qual é balanço que fazem dos quase dois anos de existência da Câmara de Comércio Angola-Itália?

Hélder Cardoso (HC): A Câmara foi criada a 1 de Outubro de 2018. Desde então, temos realizado algumas actividades de destaque. Em 2019, realizámos o fórum empresarial da cidade de Milão, que teve a presença da Aipex, do Ministério das Relações Exteriores e várias empresas italianas e angolanas. O objectivo foi promover oportunidades de investimentos e de negócios em Angola e, fruto deste fórum, já têm havido algumas acções por parte de empresários italianos que pretendem investir em alguns sectores de interesse no país, como o mineiro, na compra do café angolano e na implementação de infra-estruturas, como portuárias, além do sector das energias renováveis. Embora recentemente criada, durante a presença do presidente Sergio Mattarella, em 2019, a Câmara também acompanhou a delegação presidencial.

 

Durante esta visita, foram assinados alguns acordos…

HC: Sim, foi assinado um acordo entre o Ministério das Finanças de Angola e o banco italiano Cassa Depositi e Prestiti. A Câmara tem desenvolvido alguns contactos no sentido de acompanhar este banco na identificação de projectos em Angola que poderão ser financiados por esta linha de 300 milhões de dólares. Trabalhamos com o sector privado e o público. O nosso objectivo é promover não apenas as trocas comerciais entre Angola e a Itália, mas sobretudo projectos de investimento de grande impacto no nosso país.

 

Existem casos de linhas de financiamento disponíveis, mas que não têm sido exploradas pelos empresários angolanos. Que trabalho está a ser feito para que esta linha seja efectivamente usada?

HC: É uma situação um bocadinho complexa, porque existe a vontade da relação bilateral entre os dois países, mas, para se concretizarem as coisas, deve haver forças de instituições como a Câmara, que está entre o sector público e o privado para fazer algumas realizações de modo a facilitar a implementação desta linha. Uma das acções que a Câmara tem feito é de começar a trabalhar com bancos locais e também o BDA no sentido de ver a possibilidade de se operacionalizar esta linha por intermédio destes bancos locais.

Stefan Daperno (SD): É verdade. Estes acordos arriscam a ficar apenas em acordos políticos e não se concretizarem. A Câmara faz este papel de ponte entre as instituições bancárias dos dois países e as instituições locais, nesse caso de Angola, porque devem ser activadas, onde necessário, as questões de garantias, etc.. A Câmara também tem o papel – isto já estamos a fazer com outra linha de crédito de que o BDA dispõe – de encontrar entre os seus associados projectos que se enquadram nestas linhas de crédito. Portanto, o Cassa Depositi e Prestitié uma linha que ainda está em standby. Estamos a tentar recolher projectos para apresentar. Estamos também a tentar pôr em contacto as entidades dos dois países para finalizar todos os elementos que permitirão depois concretizar os créditos.

 

Referiu contactos com os bancos privados angolanos. Como avalia a receptividade destes bancos?

HC: Neste momento, não temos algo de concreto ainda. Na sua visita, o presidente convidou um representante do banco justamente para se fazerem encontros preliminares. Estivemos com o BAI, o Sol e o próprio BDA, mas foi apenas um encontro preliminar no sentido também de avaliar quais são os projectos que os bancos angolanos têm que poderão ser financiados por este banco italiano. Existem alguns critérios genéricos. Se os projectos incluírem importação de equipamentos, obviamente poderiam ser feitos com empresas italianas.

 

E em relação à busca de projectos, estão a encontrar iniciativas com potencial para concorrerem para esta linha? Os bancos locais estão constantemente a criticar a qualidade dos projectos apresentados pelas empresas quando concorrem para os créditos…  

HC: De uma forma geral, é bastante complexo. Não é um problema apenas do empresário ou apenas dos bancos. É conjuntural porque existem bons projectos, mas são vários os entraves. Existe, por exemplo, o problema das garantias, é o primeiro entrave que os empresários identificam. Existe também a temática do risco cambial.

SD: O aspecto das garantias é o que os bancos mais consideram e é um bocadinho complicado, porque aí entra, de uma certa forma, o Estado pois nem sempre os terrenos, edifícios ou outros imobilizados conseguem ser dados como garantias por falta de alguns passos para serem completamente legalizados. E um banco não pode abrir uma hipoteca para um terreno que ainda não está completamente legalizado. Por isso, a Câmara está a tentar ver, por exemplo, com o Ministério da Administração do Território quais são os entraves e se há a possibilidade de ajudar a ultrapassá-los, porque é do interesse de todos: dos bancos, da Câmara e dos municípios que vão receber os investimentos. Temos dois ou três projectos que estamos a acompanhar. São empresas angolanas, sérias, que têm uma visão moderna e, penso, não terão nenhum tipo de problemas em cumprir com os requisitos previstos tanto pelos bancos angolanos, como pelas instituições bancárias estrangeiras.

 

No geral, como é que o empresário italiano olha para o mercado angolano?  

SD: A Itália sempre esteve habituada, assim como todos os países europeus, a olhar para os mercados africanos como mercados para vender produtos e tecnologia. Era uma mera troca comercial. Hoje o empresariado italiano teria mais disponibilidade em não ter só uma parceria comercial, mas ser um parceiro industrial. Fazer investimentos na indústria, sobretudo no sector agrário, mas também de transformação. Há também algumas ideias de investimento no turismo que faz parte da lista dos sectores abrangidos por esta linha de crédito da Cassa Depositi e Prestiti. A grande problemática está ligada ao equilíbrio financeiro. Faço os investimentos em euros e tenho o retorno em cinco, 10 ou 15 anos, dependendo do tipo de actividade. O meu retorno é em kwanzas, mas devo reembolsar o meu investimento em euros. Portanto, há um receio do investidor italiano em saber como mitigar este risco financeiro. Mas há uma mudança de paradigma, até porque a situação europeia é muito complicada. Hoje as empresas precisam de produzir, exportar e diversificar geograficamente o raio de acção.

 

O risco financeiro é o único ou a principal preocupação dos empresários italianos?

SD: O risco financeiro é o principal. Do ponto de vista da visão do país, no seu aspecto social e político, há uma grande confiança. A embaixadora de Angola em Itália, Fátima Jardim, está a fazer um grande trabalho de diplomacia económica e as autoridades italianas são muito receptivas, há um interesse grande e uma visão a longo prazo. Os principais investimentos hoje são industriais no sector do Oil & Gas e são feitos porque se acredita no país, sabe-se que tem estabilidade e garantias para investimentos a longo prazo.

HS: O Stefan falou de grandes empresas, mas as pequenas e médias empresas, que é o nosso target, ainda têm receio e, se calhar, pouca informação sobre Angola. Pretendemos adoptar o sistema que a Itália tem, que é constituído por médias e pequenas empresas; pretendemos estabelecer também estas parcerias com as pequenas empresas de Angola para entrarem em nichos de mercados. Só para ter uma ideia, uma pequena empresa perguntou-nos o que Angola faz com a pele dos animais dos matadouros. Provavelmente é deitada fora, mas só aí já poderia existir este pequeno negócio para exportar para a Itália. Há muitas oportunidades, acreditamos muito no know-how da Itália que é um país pequeno, mas com muita experiência em diversos sectores que poderão ajudar Angola neste processo de diversificação da economia.

 

A Inalca é um dos rostos das empresas italianas em Angola. Têm conhecimento de possível ajuda a esta empresa, por exemplo, no quadro das linhas de financiamento?

HC: A Inalca é associada e temo-la acompanhado. Da informação que temos, esta linha de financiamento da Cassa Depositi e Prestiti provavelmente iria apoiar um megaprojecto de distribuição de carne aqui em Angola.

SD: A Inalca tem um projecto mais abrangente de logística de produtos alimentares, compra nos produtores, transformação, empacotamento e distribuição, incluindo a carne. Estamos a falar da Inalca que seria o grupo Cremonini, que é o maior grupo europeu de venda de carne e um dos principais a nível mundial. São grupos que lidam directamente com os governos. A Câmara, obviamente, também é voz dessas empresas, mas o nosso principal foco, sem esquecer os outros, é o sector empresarial composto por médias, pequenas e microempresas que são aquelas que podem fazer a diferença e fazer a economia angolana. E são as que precisam de mais auxílio porque têm menos contactos. Grupos como a Inalca e a Eni conseguem chegar directamente às instituições.    

 

Em 2015, salvo erro, a Itália teve uma presença considerável na Filda. De lá para cá, alguma das cerca de seis ou sete dezenas que participaram instalaram-se em Angola?

HC: Na última Filda, havia apenas duas empresas italianas, foi a do ano passado. O foco da Câmara para este ano seria aumentar a presença das empresas italianas. Já tínhamos um pacote organizado, viriam cerca de 20 empresas, mas tivemos de cancelar com esta situação da covid, não apenas a Filda, mas também a MAC Frut, que é uma feira de hortofrutícola. A Câmara já tinha organizado10 empresas do Uíge que participariam.

Mas podem explicar a razão da redução drástica do número de empresas na última edição da Filda?

HC: Acredito que foi justamente por causa do cancelamento. Há dois anos, já tinha empresas inscritas para a participação na Filda, mas, à última hora, houve um cancelamento. Desacreditaram um bocadinho no processo.

 

Como é que o empresariado italiano tem acompanhado e reagido ao discurso político adoptado pelo Governo, desde 2017, de uma maior transparência?

HC: De uma forma geral, este novo paradigma tem um grande impacto para quem está fora. Havia um preconceito do passado, de como as coisas eram feitas, facilitava-se mais os grandes grupos empresariais em detrimento dos outros e só a mensagem do novo Executivo passa uma mensagem de transparência, de oportunidade e de clareza. Só o aspecto da privatização das empresas públicas já deu alguns frutos, já temos algumas unidades privatizadas e esta situação dá mais credibilidade ao nosso país, mais confiança ao investidor privado.

SD: Gostaria de complementar com um dado que é sobre o papel da Câmara neste processo de maior transparência. Temos tido solicitações de empresas angolanas que estão a realizar negócios com grupos italianos e vice-versa, temos recebido pedidos de certidões de associados. Isto é um bocadinho também o papel da Câmara. Ou seja, o associado é sócio porque passou por uma triagem, uma espécie de due diligence e isso permite dar ao empresário italiano que faz um negócio com angolano e vice-versa uma credibilidade maior.

 “Há receio do investidor italiano em saber como mitigar o risco financeiro”

Como se pode estimar a presença de empresas italianas em Angola tanto em números como em volume de negócios?

HC: Em 2018, o volume de negócios entre Angola e a Itália era de 441 milhões de dólares, destes, 100 milhões eram as exportações de produtos petrolíferos para a Itália e 341 milhões estavam relacionados com a importação de maquinaria da Itália para Angola. Isso diz claro que a relação, até ao momento, é mais comercial do que de investimento local. O Stefan, para além de vogal da Câmara, representa uma empresa italiana em Angola. Como ele, existirão 50 ou 60 empresas que estão implementadas em Angola. É um número muito tímido e acho que tem que ver com o facto de a Itália ser um país que nunca teve uma grande história com África, embora tenha sido o primeiro a reconhecer a Independência de Angola. Mas não houve a situação do colonialismo e a relação que tem a França, Portugal e Inglaterra com os países. Provavelmente, isto deve jogar um papel, mas, de uma forma geral, são maioritariamente empresas prestadoras de serviços e que representam algumas marcas cá no país.

SD: Acontece um fenómeno exactamente pelas razões históricas. Aqui são vendidos muitos produtos italianos, mas que não fazem parte da balança comercial entre Angola e a Itália, porque ainda existe uma grande central de compras, sobretudo em Portugal, e existem muitos produtos italianos que entram em Angola através de Portugal ou de outros países. O empresariado italiano ainda tem muito espaço, pode estar mais dentro do tecido económico angolano.

 

Há alguma empresa italiana a concorrer no processo de privatização?

HC: De momento, não há nenhuma que seja do nosso conhecimento.

 

Qual é o impacto da pandemianos negócios das empresas italianas em Angola?

SD: O impacto é bastante evidente, porque, só o facto de não se poder viajar limita-se muito a prospecção de novos negócios ou a realização de negócios já aprovados, mas que ainda precisam da deslocação das pessoas. Acho, no entanto, que, ao contrário daquilo que poderia parecer, não é só para a Itália e Angola, poderá ser uma grande oportunidade porque esta pandemia criou, paradoxalmente, uma maior coesão europeia. Foram aprovados instrumentos financeiros para ajudar os países e a Itália foi dos que mais vai receber desta ajuda. Se, por um lado, servirão para ajustar as contas e ajudar as empresas e as famílias italianas, por outro, permitirão também às empresas italianas, que fazem exportação ou que pretendam internacionalizar-se, serem mais competitivas. Achamos que poderá ter um impacto positivo também para Angola.

 

Já agora, qual é o grupo que o senhor Stefan representa?

HC: É o grupo ES-KO. A ES-KO Italiana tem a sede na Itália, é um grupo que é conhecido em Angola desde os anos 1990, porque era a empresa que realizava toda a logística da missão de paz das Nações Unidas denominada Unaven. A ESKO é um dos principais fornecedores de logística para as missões militares das Nações Unidas. Depois, virámos para dar apoio logístico às empresas do Oil & Gás e de construção. Por exemplo, fazemos vendas e assistência técnica de geradores e maquinarias italianas. Os prefabricados que utilizamos são italianos.

 

Têm tido dificuldades em responder à procura?

HC: Não. Reduzimos muito as importações, porque apostámos mais nos serviços. Mas, mesmo com os serviços, é preciso fazer importação de sobresselentes entre outros, não temos registado grandes problemas.

 

Estimaram em 441 milhões as trocas comerciais em 2018. E como foi 2019?

HC: Recebemos alguma informação da AGT, 2019 houve uma redução e aproximadamente rondava os 300 milhões. Houve uma redução importante, não sei se relacionada com o preço do barril e a situação financeira actual.

 

Esperam um 2020 pior?

HC: Provavelmente, com esta pancada…Já estávamos numa crise económica acentuada mais com a covid-19, sinceramente...

 

E como é que o empresariado italiano tem estado a acompanhar a crise económica em Angola. Manifestam intenção de investir nesta altura mesmo?

HC: Acredito que sim, alias, não temos parado de trabalhar com as empresas. Cada dia recebemos solicitações. Também é um facto que as economias europeias já não crescem mais do que já cresceram, estão num processo de estagnação e muitas das empresas têm esta necessidade de se virarem para outros horizontes e maximizar o potencial. Temos recebido muitos interessados. Obviamente, para se concretizar, ainda vai levar algum tempo.

 

E como vê o futuro imediato?

HC: Do lado de Angola, a Câmara tem trabalhado também no sentido de ajudar as empresas a identificarem outlet para a exportação dos seus produtos. Existe um grande interesse de empresas italianas para a aquisição de rochas ornamentais em Angola, mariscos, café. Há um grande interesse por parte de empresários italianos. É só trabalhar com empresas que também nos possam garantir sustentabilidade na oferta dos produtos. Já mediámos algumas amostras de empresas angolanas, portanto existe um grande interesse. Da parte das empresas italianas, a nossa responsabilidade é mudar aquilo que era o status quo de não apenas trocas comerciais, mas queremos investimentos no país porque é possível.

 

Perfil

Stefano Daperno nasceu em 1979, em Cuneo (Italia) onde se formou em Contabilidade. Apos 11 anos de trabalhos em várias empresas italianas chega em Angola em 2000 colaborando em projectos humanitários com a cooperação italiana onde conhece em 2004 o grupo ES-KO que se ocupa de serviços de suporte logístico. É director de duas empresas do grupo, ES-KO Angola Lda e ES-KO Habitat Lda que prestam vários serviços desde venda e assistência técnica de geradores, soluções pré-fabricadas para bases de vida nos sectores Oil and Gas, construção e outros. Em Novembro de 2018 abraça a causa da Câmara de Comércio e Indústria Angola Itália sendo actualmente vogal e tesoureiro da instituição.

 

Perfil

Nascido em Luanda, em 79, Helder Cardoso passou parte da sua via entre França, Estados unidos e mais tarde Italia. Foi nos EUA para aonde se deslocou aos 17 anos onde se licenciou em Negócios Internacionais na Universidade Strayer, em Washington DC. De regresso a Angola, começa a trabalhar numa empresa de família onde desempenha a função de Director Geral Adjunto. Em 2017 inicia os passos preliminares para criação da Câmara de Comércio Angola Itália, fundada a 1 de Outubro de 2018.