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David Mendes, advogado e deputado

“Há vingança e pressão política na cruzada contra corrupção”

Advogado não vê razão na aplicação da prisão preventiva a entidades implicadas em processos de alegados desvios de fundos do Estado. “Estão disponíveis e não representam nenhum embaraço ao andamento dos processos”. David Mendes assume haver influência política e ‘caça às bruxas’, ao mesmo tempo que acusa João Lourenço de “humilhar” o seu antecessor.

 

“Há vingança e pressão política na cruzada contra corrupção”

O que fica reservado à Lei de Repatriamento de Capitais, no actual contexto judicial?

Na Lei, os crimes de peculato não estão contemplados. É uma das questões para as quais me bati muito no Parlamento para que fossem introduzidas, porque estava a ser como que uma amnistia geral para os crimes económicos. Não estando abrangidos os crimes de peculato independentemente do retorno ou não do capital, as medidas penais devem ser aplicadas.

Mas isso ajuda ou não o retorno do capital?

É sensato que, se existe esta Lei que, até Dezembro, possibilita às pessoas que tenham colocado dinheiro lá fora fazerem de livre vontade o repatriamento, isso, do ponto de vista processual, constitui uma atenuante extremamente importante. Nos crimes económicos a reparação do dano é importante. Então, se a pessoa tem a possibilidade de reparar o dano, e o repara, o tribunal é condescendente.

E como analisa a prisão de José Filomeno dos Santos ‘Zenu’ e de Jean Claude Bastos de Morais, indiciados no ‘caso Fundo Soberano’.

Para mim, estamos perante uma situação de precipitação. Porque, se estas pessoas não vão perturbar a instrução do processo e não se vão ausentar do país e estão disponíveis perante a justiça, acho que não é certo serem presas. Eventualmente, numa outra fase.

Há quem fale de uma verdadeira ‘caça às bruxas’. Também tem essa percepção?

Tenho. E isso não é bom na medida em que todo o cidadão tem direito a um julgamento justo. E todo o cidadão, enquanto não houver uma decisão transitada em julgado, goza do princípio da presunção de inocência. Logo não é viável que se tornem as questões judiciárias populistas. Estive a ver, por exemplo, há dias quando foram buscar um dos arguidos numa residência a forma como as pessoas à volta se manifestavam excitantes de alegria…

A quem se está a referir?

Prefiro não falar de nomes. Mas essas pessoas que assim se manifestavam de alegria se alguém dissesse: ‘agarra o indivíduo’, seria o linchamento. Precisamos de ter em conta que as nossas atitudes estimulam outras atitudes.

Mas há ou não fundamentação jurídica para o facto de os arguidos do ‘caso Fundo Soberano’ terem visto as medidas de coação agravadas?

Até agora não vi nos comunicados as razões que obrigam aplicar a medida mais gravosa.

Refere-se, no caso, à prisão?

Sim, porque as medidas cautelares são várias. Começam pelo termo de identidade, caução e interdição de saída do país entre outras. A prisão é medida excepcional. E normalmente aplica-se não só a crimes cuja moldura penal seja superior a um ano, mas quando o agente do crime se encontra numa situação de poder se meter em fuga, ou pôr em causa a instrução do processo. Se tudo isso não está em causa, é preciso que se explique a razão da prisão porque eles estavam à disposição da justiça. Sabe, talvez a minha vocação de ser advogado, mais ligado à defesa do que acusação, faça com que dê muito valor à liberdade. Muitos de nós ficamos satisfeitos de ver alguém na cadeia por não termos essa experiência. Quem tem essa experiência não deseja esse mal a ninguém.

Mas o que está em causa são questões jurídicas e não propriamente do natureza sentimental?

Independentemente do que tenha acontecido - e todo o mundo sabe que sempre me bati contra o regime de José Eduardo dos Santos, quanto à forma como tratava o erário - mais do que a prisão, o mais importante é o retorno do capital.

O que quer dizer?

Veja uma coisa: se alguém for condenado a oito anos de prisão, fazendo o retorno do capital fica oito anos e não fazendo fica na mesma nos calabouços, então essa pessoa cumpre o tempo e não devolve o dinheiro.

Os arguidos do ‘caso Fundo Soberano’ venceram o mesmo processo na Inglaterra. O que lhes ficaria reservado, acontecendo o mesmo em Angola?

A indemnização não paga uma prisão. É ilusório quando se diz que uma pessoa presa ilegalmente pode pedir que o Estado o indemnize por danos. É verdade que a Constituição prevê isso, mas será que a indemnização paga a privação da liberdade? Não. Não estou a dizer que eles não tenham cometido. Temos muitas outras pessoas que devem repor o dinheiro e, quando nós até apresentamos queixa contra várias personalidades e que, na altura, o Ministério Público se achou, incompetente de o fazer, nós citavamos vários nomes. Hoje temos vários nomes ainda.

Está a falar da lista que a vossa Associação Mãos Livres entregou ao Banco Nacional de Angola (BNA) e que supostamente terão desviado 386 milhões de dólares?

A lista cresceu e é pública. Contém alguns nomes conhecidos, mas das pessoas que constam da nossa lista, ainda ninguém está preso. Aliás, reitero, o mais importante hoje não é a prisão das pessoas, mas sim o retorno do dinheiro. É preciso moralizar a sociedade, que se respeitem os bens públicos.

O BNA já reagiu à vossa carta?

Vamos aguardar o desenrolar da questão. Vamos aguardar que o Ministério Público e o Banco Central digam quanto está lá fora como e quem desviou.

Até aonde acha que a chamada ‘guerra’ contra a corrupção pode ir? Há a ideia genérica de que, entre a elite do MPLA, ninguém escaparia. Concorda?

É muito difícil. Muito difícil mesmo. Não sei se quando começar a tocar nos generais se isso vai representar estabilidade política. Precisamos de encontrar uma transição mais pacífica. Sou apologista por uma transição mais pacífica.

Não está a ser o caso?

Se fosse a Oposição a chegar ao poder e tomar essas medidas, todo o mundo estaria por cima a falar de vingança. E isso não é aconselhável a ninguém: nem à Oposição nem aos que estão no poder.

Mas parece-lhe que há vingança em todo esse processo?

Sim. Porque é que as pessoas agora se sentam em frente à televisão para ver o próximo a ser preso? Será que é esse país que queremos construir? Deixamos de ver as questões principais. Hoje ninguém fala, por exemplo, da subida do preço do trigo, do açúcar, enfim, da fome que ‘arrasa’ as pessoas, do salário que hoje não significa nada. Todos nos esquecemo desses problemas e de repente só queremos falar de prisão.

É inevitável que assim seja, não?

Temos o exemplo do 27 de Maio de 1977. Foi terrível. Bastou dizer-se que os fraccionistas eram culpados de tudo para o que aconteceu. Não sei se as pessoas têm a memória da ‘sexta-feira sangrenta’. Foi fruto de uma notícia falsa que levou à morte muitos dos nossos companheiros bakongo. Então temos de ter cuidado.

Há na suas palavras algum fatalismo, não acha? Quem pode retaliar?

As pessoas é que se podem vingar. Os expectadores, o público é que se pode levantar contra os ditos detentores do património. Quando determinam que, no aeroporto, tem de se passar a ‘pente fino’ detentores de passaportes diplomáticos e de serviço isso é coisificar as pessoas. O facto de se ser detentor de um passaporte diplomático não significa que se é gatuno. Há pessoas honestas que ganharam a vida lutando no duro. São técnicos e empresários de sucesso. Nem todos os que têm carro topo de gama roubaram. Não podemos ter uma política contra os que têm um bem-estar.

Circularam sempre rumores nunca desmentidos de pessoas que terão confundido alegados créditos com ofertas...

Não roubaram. Aliás, se estavam a compensar as pessoas, não vejo nenhum mal nisso. Porém, vamos dialogar e pedir que essas pessoas devolvam o dinheiro. Não devemos fazer ‘caça às bruxas’. Porque muitos deles deram tudo o que tinham pela revolução e Angola não tem apenas coisas más, tem também boas. Acredito que sou dos poucos ex-militares, que não está atrás da Caixa Social das FAA, porque, felizmente, tenho um nível de vida que me permite viver sem muitos percalços. Mas não estariam a fazer nenhum favor se, como ex-oficial das extintas FAPLA, recebesse também do fundo das Forças Armadas aquilo que é de direito.

No passado, fez parte do Governo como secretário de Estado do Ambiente. Nesta condição, não viu o que se estava a passar com a gestão do país?

Fui do Governo de Marcolino Moco e um bocado quando entrou o professor França Van-Dúnem. A corrupção começou a surgir mais tarde, a partir de 1997. Se reparar, Marcolino Moco, França Van-Dúnem, Lopo do Nascimento, que foram ex-primeiro-ministros, não têm património relevante. Temos outras figuras que também fizeram parte do Governo, como o falecido mais velho Mendes de Carvalho. E tivemos ainda exemplos, como de Paulo Jorge e Lúcio Lara, pessoas que deram no duro e morreram honestas. Conheci pessoas relevantes no Governo que vivem mal e muitos deles do MPLA. Então, nem todos são gatunos.

Muitos afirmam que ‘corrigir o que está mal’, como a corrupção, e a fuga de capitais é uma ‘luta inglória’ porque o grosso dos implicados é do MPLA. Ou seja, muitos poderão sempre ser protegidos.

O Presidente João Lourenço disse que ninguém se devia assustar se os primeiros a “tombar” fossem do MPLA. Mas também eram e são os únicos que tinham e têm acesso ao dinheiro. E há de ver que quem está no Governo e nas empresas relevantes são pessoas do MPLA. Hoje, ainda não temos abertura de concursos sem o símbolo partidário para postos relevantes.

Mas voltemos às prisões. Há quem encontre, em certos casos, mais motivação política do que judiciária. Concorda?

Sim, porque são os mesmos juízes, os mesmos procuradores. Porque não fizeram antes e só estão a agir agora? Em relação à prioridade, eu pergunto-me: e os casos de homicídio e de violação? Uma criança violada e o processo não ter prioridade? Pessoas que viram os seus familiares assassinados e não serem priorizadas? Vê-se que são decisões com conotação política e não judiciária.

Sobre o ex-ministro dos Transportes, fala-se na impossibilidade de ser libertado sob caução...

Faltou o juiz de instrução porque quem está a decidir as prisões é o procurador.

O procurador tem legitimidade para isso. É o que importa, não?

Não conheço o processo e por isso não posso falar em concreto. Mas gostaria de recordar que há uma orientação da Procuradoria-Geral da República para não se prender às sextas-feiras. Porque, normalmente, quando se prende à sexta-feira, o visado não tem nenhum instrumento de defesa ou de reclamação e passa o fim-de-semana na cadeia. Batemo-nos por isso, durante muitos anos, os métodos foram alterados, mas voltaram agora a ser implementados.

Norberto Garcia também está em prisão domiciliária, acusado de participar numa ‘abortada’ burla ao Estado angolano. O que sabe deste caso?

Não conheço este processo, por isso não me vou pronunciar a esse respeito.

Acha que o sistema de justiça está no bom caminho, ou há reformas a fazer?

A justiça está no bom caminho só porque se está a prender dirigentes? Penso que não! Você tem ideia de quantos anos fica um processo no Tribunal Supresso? Ficam até 20 anos, quando o normal seriam apenas cinco anos, no máximo. Lembra-se do famoso ‘caso Frescura’, quantos anos passam e não tem fim? Do ‘caso Kalupeteka’? Então porque vamos dar prioridade ao peculato?

A violação do segredo de justiça, nas redes socias, tornou-se uma prática corrente. Qual é a sua leitura?

Está-se a buscar o populismo da justiça. É grave! Antes de alguém ser preso já se sabe o que pode acontecer. É preciso que haja vozes críticas para que as pessoas façam o ‘contra poder’.

Não está a mudar a trajectória, quando nos seus pronunciamentos públicos sempre privilegiou o combate à corrupção e branqueamento de capitais?

Não estou a mudar de ‘casaco’. Apenas quero que se cumpram as regras do Estado de Direito. Não sou pela perseguição de ninguém. As perseguições não dão estabilidade. Veja que todo o mundo agradeceu que Angola teve uma transição pacífica. Por isso é que em África muitos líderes chegam ao poder e depois não querem sair. Têm medo do ‘day after’.

Está a dizer que João Lourenço caminha para eternizar-se no poder?

É óbvio. Não se humilha o adversário.

Refere-se ao ex-Presidente José Eduardo dos Santos?

Acredito que, nesta altura, está a ser humilhado.

PERFIL

David Mendes nasceu no Cazenga, em Luanda em 1962. Licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, optou pelo exercício da advocacia. É fundador da Associação Mãos Livres, de defesa dos direitos humanos. É chamado o “advogado dos pobres” e sempre se assumiu descomprometido com o regime. Foi galardoado com o Prémio Martin Luther King dos Direitos Humanos pela Embaixada dos Estados Unidos da América em Angola, como reconhecimento do seu trabalho em defesa dos direitos humanos no país. Deputado independente, na bancada da Unita, é casado e pai de sete filhos.