“Ser nomeado para um alto cargo neste país deixou de ser prestigiante”
Considera o crescimento da dívida em 2019 o apertar “da corta no pescoço do povo” e o dossier PRA-JA “uma vergonha para a democracia”. Sobre a prática de nomeações e exonerações sem avisos nem explicações, é taxativo: “é quase como ser enviado para uma frente de combate”.
Em 2019, a dívida pública cresceu, em termos nominais, 48% e o rácio face ao PIB passou de 84% para 107% comparativamente a 2018. Que opinião tem sobre estes indicadores?
Este crescimento da dívida pública angolana significa que o Executivo de João Lourenço apertou a corda no pescoço do povo angolano, que o anterior Presidente, José Eduardo dos Santos, já lá havia deixado. Porque, no fundo, quem vai suportar o custo da excessiva dívida, seja ela interna, seja externa, é a população da geração actual e vindoura.
Estes dados constam do relatório de execução de 2019, divulgado no primeiro semestre deste ano. É um sinal de transparência?
Isso não tem nada que ver com transparência. Deve-se apenas a alguma melhoria administrativa que terá ocasionalmente acontecido no Ministério das Finanças
Ao contrário dos 35 dólares inicialmente projectados, a proposta de revisão do OGE inscreve 33 dólares como a referência do barril de petróleo. O que lhe parece?
É uma previsão conservadora e bastante prudente. Acho bem, pois, como sabemos, o preço do crude, no mercado internacional, tem estado muito volátil e com uma tendência mais para baixo do que para cima.
Que leitura faz da previsão da inflação no OGE?
Não tive ainda acesso à proposta do OGE na sua totalidade, mas informaram-me que a taxa de inflação acumulada foi prevista para 25%, o que, a acontecer, de facto, será muito mau para a vida das populações, porquanto uma inflação de dois dígitos impacta negativamente no custo de vida dos bens de consumo e dos serviços, piorando a sobrevivência das famílias e das empresas. Todos os agentes económicos perdem com uma alta taxa de inflação, principalmente os consumidores.
Falemos do impacto da covid-19. Como perspectiva a situação socioeconómica do país no pós-pandemia?
A situação económica, financeira e social do país já vinha agravando desde 2015, após a saída do poder de José Eduardo dos Santos em 2017. Com a entrada do Presidente João Lourenço, a vida em Angola já estava difícil. Dali, a situação só se tem agravado e, com o surgimento da covid-19, as coisas pioraram. Note-se que a covid-19 só surgiu em Angola em Março e nos outros países do Oriente e Ocidente em Janeiro de 2020. Esta pandemia em Angola, até hoje, só afectou pouco menos de 300 pessoas, com menos de duas dezenas de mortos. E mesmo que venha a afectar mais pessoas e matar mais uns tantos, fica muito aquém de provocar a mortandade de pessoas que a malária e outras doenças endémicas têm provocado habitualmente em Angola. Na minha opinião, não haverá pós-covid-19, sem vacinas. E, mesmo com vacinas, esta covid-19 vai certamente transformar-se em endemia ou numa outra doença qualquer a conviver connosco, como, de resto, tantas outras doenças que antes eram epidemias ou pandemias e hoje estão no nosso seio, habitando e circulando normalmente connosco, como se de nossos familiares ou inimigos se tratasse. Por isso, as políticas públicas, sejam elas económicas sejam sociais, devem ser gizadas com muito realismo e lucidez, a contar com mais essa doença covidiana, que se junta às demais com as quais já coabitamos, há muitos anos.
Recentemente, circularam notícias segundo as quais estaria de regresso à Unita, mas, posteriormente, desmentiu. O que se passa concretamente?
Já fiz divulgar, através da imprensa digna deste nome, que as informações veiculadas no panfletário jornal virtual AngoNotícias são falsas e infundadas. Sei que há muitas pessoas neste país interessadas em ver novamente Fernando Heitor a militar (militância) no maior partido da oposição em Angola. E agradeço a simpatia destes milhares de cidadãos, alguns dos quais me abordam pessoalmente sobre isso. Mas sempre pautei a minha conduta pela coerência, honestidade intelectual e ética. Tem-se dito que, em política, não há decisões definitivas. A vida é dinâmica. Não descarto a possibilidade de um dia poder retornar a militância partidária, mas, quando isso acontecer, a opinião pública será devidamente informada, tal como foi quando decidi ser simplesmente um cidadão apartidário, isto é, sem nenhuma militância partidária. O problema é que, neste país, as pessoas não estão habituadas a ver figuras mediáticas como eu (passe a imodéstia) sem estarem filiadas em partidos políticos. Temos de nos reeducar. Cidadãos sem filiação partidária são tão úteis ao país como os outros. E, muitas vezes até, a sua dimensão de percepção dos acontecimentos e de intervenção nacional é mais valiosa, porque é imparcial e isenta de qualquer peso e conotação político-partidária.
Portanto, não é total e definitivamente fechada a promessa de não mais fazer política que apresentou quando deixou a Unita?
Como disse, em política não há decisões definitivas. A vida é dinâmica e há ocasiões em que somos chamados a participar na vida política activa, alinhados com partidos políticos, para os ajudar na luta pela mudança social. De resto, eu nunca afirmei que não faria mais política. Eu fui claro em dizer, na altura, e repito sempre isso: “sou apartidário, mas não sou apolítico”. Significa que, mesmo não tendo filiação partidária, continuo atento a acompanhar e a analisar a política real que se faz neste país e a comentá-la e a criticar construtivamente, emitindo inclusive opiniões e “avisos à navegação” com muita frequência, através do meu whatsapp e em vários grupos de que sou membro bastante activo. Isto é também uma forma cidadã de fazer política, embora saia dos marcos da política activa, feita pelos partidos políticos e pelos membros do Executivo.
Que opinião tem sobre o dossier PRA-JA de Abel Chivukuvuku?
O dossier do ‘partido’ PRA-JA Servir Angola é uma vergonha para a democracia deste país. Revela que as instituições do Estado angolano são, de facto, ainda muito frágeis e que o primado da lei é ainda uma ilusão em Angola, embora haja alguns sinais encorajadores. Não sou adepto da proliferação de partidos em país nenhum. E muito menos em Angola, com o número tão pequeno de habitantes que ainda temos, pouco mais de 30 milhões, não se justifica, pois a solução dos grandes problemas económicos e sociais, com que Angola se debate, não passa pela existência de cinco ou seis ou oito partidos políticos. Até porque as diferenças ideológicas entre eles são muito poucas, se é que existem. Muitos militantes até mesmo da direcção dos partidos nem sequer sabem quais os princípios filosóficos, ideológicos e políticos em que se fundamentam os partidos de esquerda, do centro esquerda ou centro direita, da direita e extrema-direita e ou extrema-esquerda. Quais as diferenças político-ideológicas fundamentais que as dividem? Faça essa pergunta a dirigentes políticos angolanos e até mesmo africanos. Ficará estupefacto com tanta ignorância sobre isso! Em África, incluindo Angola, todos querem ser dirigentes de partidos, porque isso compensa económica e financeiramente. Só assim se entende que antigos bons advogados, bons professores universitários e às vezes até empresários se filiam em partidos e queiram ser deputados e depois, com sorte, chegam a ministros. Uns até aparecem nos partidos como independentes, para aproveitar a boleia e, com algum tráfico de influência lá dentro, são imediatamente incluídos nas listas de candidatos a deputados em lugares facilmente elegíveis, em detrimento de muitos militantes antigos do partido. Temos vários exemplos disso em Angola. Eu concordo com isso apenas para as eleições autárquicas e para cargos no Executivo, mas, para cargos de deputado, não. Estes devem ser reservados àqueles militantes partidários, com vários anos de militância leal, dedicada e esclarecida. Quantos casos conhece de dirigentes partidários que renunciaram aos seus cargos de direcção no partido e solicitaram para não serem mais incluídos nas listas de deputados, como fez um cidadão de nome Fernando Heitor? Pesquise e verá!
Que avaliação faz da sua passagem pelo BPC como administrador executivo?
Só posso dizer que a minha experiência no BPC foi positiva. Foi o próprio Titular do Poder Executivo que gentilmente me telefonou a convidar para me juntar ao elenco de qualificados técnicos que havia sido escolhido para formar o conselho de administração e a comissão executiva do BPC que, como sabe, é ainda o maior banco comercial deste país. Mesmo sabendo que este banco público estava a viver uma situação muito grave, falência técnica, aceitei com entusiasmo o convite e fui juntar as minhas valências técnicas e profissionais às dos demais colegas e posso afirmar com honestidade que, sob a liderança corporativa inteligente e esclarecida do doutor Alcides Safeca, fizemos um bom trabalho digno de respeito e consideração em prol da recuperação deste banco. Fomos elogiados em reunião da assembleia-geral, de accionistas, pela actual ministra das Finanças, na altura secretária de Estado. Mas, curiosamente, não nos permitiram ir mais longe porque ‘interesses ínvios, inconfessáveis’ impediram a nossa progressão. Hoje é só ver o que está a acontecer neste banco, após a nossa exoneração. Aproveito esta oportunidade para endereçar aos meus ex-colegas da administração e aos directores os protestos da minha alta consideração e simpatia. Alguns deles são quadros excepcionais, autênticos gurus nas áreas em que funcionaram.
Depois de exonerado, manifestou-se descontente pela forma como foi conduzido o processo da exoneração…
Essa pergunta já está respondida no ponto anterior. A forma como são exonerados os quadros qualificados, nomeados para altos cargos no aparelho executivo deste país, é pouco honesta, pouco transparente e desmotivante porque banaliza os cargos, retira-lhes autoridade e credibilidade, além de criar instabilidade e desmotivação no seio dos trabalhadores das instituições. Eu critiquei e continuo a criticar essa prática bizarra, que atenta contra os bons princípios de governação e de gestão de quadros. Ser nomeado para um alto cargo neste país deixou de ser prestigiante, para ser desesperante. Você não sabe quando e por que razão será exonerado. É quase como ser enviado para uma frente de combate. Você não sabe quando será atingido por uma bala ou cair numa emboscada ou numa mina… (risos)
Aceitaria outro convite para fazer parte da estrutura do Governo e ou de uma instituição pública?
É evidente que aceitaria um convite de qualquer partido que formasse governo em Angola, para ocupar um cargo público. Sou um quadro nacional, felizmente, bem formado e, técnica e profissionalmente, bem qualificado. Todos o sabem. Tenho várias provas dadas. Sendo um quadro nacional, é óbvio que a minha disponibilidade para servir o meu país é total. Mas, desde que se definam previamente contratos-programa com metas e prazos de execução. Nada de ser nomeado num dia e seis meses depois ou no ano seguinte ser exonerado, ainda por cima sem que se expliquem as razões da exoneração. E como se fosse um produto descartável. Isto é um sinal de abuso de poder e desrespeito aos quadros nacionais. Mesmo que se seja reconduzido para outro cargo, como acontece com alguns ‘dançarinos de cadeiras’. Essa prática de gestão de quadros ou de cargos é contraproducente. Assim é teatro e por isso não concordo nem alinho (risos). Faz tempo que tenho recusado dar entrevistas a jornais, você insistiu e convenceu-me a quebrar a pausa de mais de 12 meses. Espero que tenha valido a pena.
Perfil
Nascido no Icolo Bengo, Catete, em 1955, Fernando Heitor Francisco é mestre em Economia na especialidade de Desenvolvimento Económico e Social de África e tem pós-graduação em Gestão de Empresas e ainda em Gestão Financeira de Multinacionais.
Foi vice-ministro das Finanças durante vários anos na vigência do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN), foi deputado e, mais recentemente, administrador executivo do Banco de Poupança e Crédito.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...