“João Lourenço não quer abrir mão do excesso de poderes”
Adalberto Costa Júnior defende uma reforma do Estado e uma amnistia para quem desviou dinheiro do Estado, mas com a condição de o devolver. Alerta para uma potencial crise, por causa da ‘guerra’ de presidentes e adverte que João Lourenço pode tornar-se um “ditador”, porque está a “vestir o fato” de José Eduardo dos Santos (JES). O líder parlamentar da Unita avisa ainda que os empresários angolanos vão ficar afastados das privatizações.
Que avaliação faz do ano legislativo?
Nos últimos quatro/cinco meses, as agendas estiveram muito sobrepostas. Na Assembleia Nacional (AN), tivemos um Novembro incaracterístico, de trabalho do OGE, mas ocupou-se com outras coisas, não percebi. Tirou-nos do contexto do Orçamento e não faz sentido. Dá a ideia de que nos queriam distrair.
Não foi ocasional?
Estas coisas nunca são ocasionais, principalmente quando temos debates. Chamámos a atenção de que era uma agenda absolutamente anormal e depois as consequências foram visíveis, houve muita lei debatida sem conhecimento dos conteúdos, é muito perigoso.
E foram aprovadas leis fundamentais?
Tivemos algumas matérias fundamentais. Debatemos dois OGE, porque o ano anterior foi o eleitoral e o debate do Orçamento transitou. Foi interessante pela importância estratégica do OGE. O repatriamento de capitais ocupou-nos alguns meses e a postura do MPLA fez-nos perder muito tempo, infelizmente. Porque a Unita fez a proposta em Dezembro do ano passado. Foi muito difícil fazer o agendamento. Esperou-se três meses, foi agendada no final de Fevereiro, porque o MPLA não tinha proposta nenhuma.
Muito ficou por se fazer?
Há algumas coisas que não aconteceram. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública, que entrou no princípio do ano, é muito importante. Nenhum angolano sabe com rigor qual é o valor efectivo da dívida pública. De vez em quando, dão uns números, mas vão sempre crescendo, parecem cair do céu. Um verdadeiro escândalo, mas está muito elevada. Ultrapassou claramente os 60 mil milhões de dólares. A Lei do Orçamento limitava determinado tipo de concessão de intervenção a este número, mas foi retirada como limitação. É porque foi ultrapassado. Especula-se em 80 mil milhões. É assustador. A dívida que está a ser declarada é falsa na sua maioria e temos demasiados fundamentos para confirmar.
Vão insistir na CPI?
É estranho vivermos uma transição em que se assume a transparência e continuar fechada às questões essenciais de interesse económico. Continuamos a ter uma Presidência da República que tem fortes poderes sobre os outros sectores da soberania. Os poderes do Executivo limitam o funcionamento do Estado. A não realização de uma CPI sobre a dívida pública penaliza o interesse de todos e o nacional. Vamos repropor, porque as pessoas têm a tendência de se fazer esquecidas.
As decisões que foram tomadas tiveram influência política?
Tem de haver uma independência do poder judicial ao poder político. Mas, quando vejo uma viagem a Nova Iorque e dois ou três dias antes prendem-se determinadas pessoas... Quando há uma viagem à Europa, dois ou três dias antes, há uma operação de marketing… Precisamos de fazer mais para vivermos em estabilidade e com transparência.
O que significa fazer mais?
É incontornável a reforma do Estado. É muito mais importante que as reformas económicas, porque as questões económicas melhoradas assentam na estrutura de funcionamento do Estado. Se a estrutura está mal equilibrada, estamos mal, nunca vamos ter soluções. O nosso Estado continua partidário; tem institutos que não têm ‘check and balance’, que é o que faz funcionar os países; os equilíbrios da fiscalização não funcionam; a actual lei do OGE continua a limitar e a restringir a acção de fiscalização da AN. Temos desafios muito grandes. Esta nova transição faz bons discursos, mas, depois, a prática não acompanha.
De 0 a 10, que pontuação daria?
Abaixo de metade, claramente. Em Angola, nenhum cidadão elege o Presidente da República (PR) de forma directa. Para facilitar a intervenção a que o Presidente é obrigado a fazer pela Constituição, no início dos anos parlamentares, a 15 de Outubro, fiz algumas intervenções públicas. Dizia quais eram os diagnósticos estratégicos que os angolanos precisavam de ver respondidos. Falei que o país precisa da reforma do Estado e da Constituição. O angolano precisa de ver a lei eleitoral alterada e de ter uma comissão nacional eleitoral onde não haja maioria absoluta do partido que governa.
Não sente que há vontade do PR em dar resposta a estas questões?
Enquanto tivermos um PR, presidente de um partido político, vamos ter um Estado partidário. É preciso ter coragem para assumir transformações de interesse de todos. João Lourenço está satisfeito com a Constituição de JES. O casaco, feito à medida para JES, está a ser vestido por João Lourenço. Não quer abrir mão do excesso de poderes. Como dizia Obama, “não temos necessidade de ter homens fortes, temos necessidade de ter instituições fortes”. Está a construir-se um homem forte e, se não tiver instituições fortes, vai transformar-se num ditador.
Não concorda quando o Presidente diz que a alteração da Constituição depende da Assembleia?
Sacode a água do capote. Isso é uma enorme irresponsabilidade. Fiz o desafio para que fizesse a reforma do Estado, e fiz outros, que nos dissesse onde está o dinheiro do diferencial do petróleo, onde está o dinheiro que está a trazer de fora e onde está a aplicá-lo. Respondeu a algumas, àquilo que tinha conveniência, e esqueceu o que não lhe interessava. Se o senhor PR, que é presidente do MPLA, quisesse mesmo, já tinha instruído os deputados do seu partido a revogar o acórdão do Tribunal Constitucional, que é uma violação ao direito de fiscalização da AN.
Aprovaram-se dois orçamentos no mesmo ano. Houve alguma diferença com o passado?
Infelizmente, não. O OGE de 2018 trazia um conjunto de recomendações e uma das mais importantes alterava a formatação dos debates. A lei diz que o OGE deve ser entregue até ao final de Outubro. A partir dessa altura, a AN começa a discutir e Novembro é o mês do debate na especialidade. Chamavam-se os parceiros sociais, auscultava-se a sociedade, mas nunca havia alterações extraordinárias. Aquele debate acabava por ser sempre inconsequente, com tanto trabalho, tanta dedicação, tanta auscultação, tanta criatividade, mas o Orçamento era sempre aprovado em Dezembro igual ao de Outubro.
O que propõe?
As auscultações seriam anteriores à entrega. No essencial, isso aconteceu pouco, mas não trouxe profundas mudanças e o Orçamento foi entregue. É preciso ter a coragem de, a partir de Maio, começar-se a fazer auscultações.
Mais coisa menos coisa, o secretário-geral do MPLA defendeu que se devia optar por uma amnistia económica tal como se fez com os crimes de guerra. Concorda?
Deve estar a copiar o Adalberto, porque tenho dito isso permanentemente. Com uma diferença muito grande: a amnistia com a devolução do dinheiro. A amnistia permite a despenalização do problema judicial, mas o bem tem de voltar ao Estado, senão estamos a fazer branqueamento.
Como avalia a mudança de discurso resultante da transição da liderança?
Esta transição veio com um novo discurso. É óptimo, vamos aplaudir. Mas esse novo discurso já teve vários ciclos de frustração. No primeiro ano, quem acreditou nele ficou completamente frustrado. O Presidente fez uma grande jogada de marketing. Recentemente, recebeu associações da sociedade civil. Mas é muito importante que aquilo que elas representam, a transparência e combate à violação dos direitos humanos, têm de ser transitadas para a qualidade de vida do cidadão. Não estão a ser correspondidos, pelo menos, no combate à corrupção. Os discursos já vão no segundo ano, aliás quase terceiro, porque a campanha também foi feita nessa base.
E...
É preciso aprovar uma nova lei de amnistia aos crimes económicos, que não despenalize o objecto do roubo. Temos de ter uma atitude de moralização. Já foi positivo tirar os medos. Há pessoas que roubaram e vivem com medo, mas vivem com o bem, então vamos recuperar o bem.
Mas há quem se tenha tornado empresário de verdade, está a trabalhar, dá empregos…
Já ganharam bastante, podem devolver o produto roubado e continuam como empresários, já estão despenalizados. É melhor do que ir para a cadeia. Se houver isenção da justiça para alguém que roubou, o bem volta para o Estado. Fomos criativos quando quisemos propor o repatriamento de capitais. A Unita fez uma proposta em que quem fez o desvio até ficava com uma pequena parte para poder investir e reinvestir, incentivando a autodeclaração. O MPLA não pensou assim.
De que mais desconfia no novo poder?
A minha grande questão é se estes discursos correspondem a uma salvação do MPLA ou se correspondem a um abraço de uma pessoa que acredita verdadeiramente na democracia. É provável que João Lourenço esteja apenas a salvar o seu partido.
Por que razão afirma isso?
Como faço parte de um partido, acho que, se o meu partido tivesse eleito o Presidente da República, ele devia largar a presidência do partido. Continuo também a pressionar João Lourenço neste sentido, que nos traga o fim do sentimento de pertença, que nos traga o bilhete de identidade como referência da angolanidade, acabe com o Estado partidário, largue a presidência do partido, assuma a presidência de todos nós, porque temos um presidente que, de manhã, assina em nome do Governo e à tarde em nome do bureau político.
Não acha que ele precisa de ser presidente do partido para ter o poder real do país…
Balelas. São formas de iludir. Nas democracias dos outros precisam do peso dos partidos para governar em democracia? Angola é um caso ‘sui generis’.
Se fosse Presidente, como conduziria o combate à corrupção?
Faria a reforma do Estado, teria a coragem de rever a Constituição, despia o casaco da constituição atípica, abraçava os institutos de ‘check and balance’.
Por que razão a Unita votou contra o OGE?
Primeira de todas, a lei do OGE concede ao PR a possibilidade de contrair empréstimos sem autorização da AN. Isto é perigosíssimo. No espaço de um ano, foi buscar lá fora muito mais de 20 mil milhões de dólares, sem a autorização da AN. Isto é também uma forma de corrupção, não é gestão transparente. O discurso e a prática não são iguais.Onde é que foi aplicado o dinheiro? Felizmente, no discurso do ‘estado da Nação’ foi detalhando, por nosso desafio. Antes da visita a Portugal, descaiu-se mais um bocado e revelou que da China vêm seis mil milhões. É muito dinheiro, sem fiscalização.
Acredita na diversificação da economia como se fala?
O Presidente da República diz e o OGE também, que é com os empresários angolanos que se faz o combate à crise. Ande pelo país, fale com os empresários e com as associações dos empresários. Eles dizem que estão completamente descapitalizados, desesperados, sofrem com o não pagamento das dívidas do Estado. Sofrem com a concorrência desleal dos políticos empresários que são aqueles que têm os apoios do Estado. A diversificação da economia é, sem dúvida, um caminho incontornável, mas não há investimento extraordinário.
Como olha para as privatizações?
Estamos a fazer as privatizações numa altura em que não há o potenciar dos empresários angolanos para poderem comprar. As empresas que vão ser privatizadas devem fundamentalmente ser compradas por angolanos. Os empresários não estão em condições de as comprar, os tradicionais não têm dinheiro. Aqueles que roubaram dinheiro ao Estado é que vão comprar. Tivemos a lei de repatriamento de capitais que não foi regulamentada. Quem roubou continua com o dinheiro na mão. Estamos a privatizar de forma acelerada.
Qual seria a solução?
A Unita propôs, na AN, que se retirasse da agenda a aprovação desta lei e que o Estado criasse algumas condições. Sugerimos um movimento de potenciamento dos empresários angolanos, com exemplos. A África do Sul, quando fez a transição do ‘apartheid’, tinha uma quantidade de empresários brancos com a capacidade económica forte e tinha uma maioria negra sem dinheiro. O governo aprovou o programa ‘black empowerment’, com fundos extraordinários que criou formas de identificar pessoas com capacidade de gestão, com formação, com trajecto empresarial e financiava-os. Uma boa parte do financiamento era a fundo perdido, para criar uma burguesia negra. Uma parte deste dinheiro foi bem utilizada, outra também não foi, também houve ali muitos desvios, mas a verdade é que foi um programa positivo. Antes de fazer as privatizações, o Estado não potenciou os empresários angolanos. Os bancos não fazem crédito bonificado para se poder concorrer à compra de empresas. O crédito actual é um crime, é impensável alguém ir à banca, pública ou privada, pedir empréstimos. As empresas que vão ser privatizadas têm funcionários. O Estado não potenciou financeiramente esses funcionários para fazerem parte da aquisição de uma percentagem destas empresas. Explicamos, mas o MPLA votou contra.
Acredita no sucesso da campanha de repatriamento?
Se houver transparência, sim. Não está a haver muita transparência nisso, quando não se faz a regulamentação, quando se anda com leis umas atrás das outras de forma meio complicada. Se o Estado quiser fazer o repatriamento de capitais é muito simples. O Estado tem serviços de inteligência que sabem onde está o dinheiro. Tenho amigos que me contactaram nos últimos meses a dizer que são advogados que trabalham nos gabinetes do ministro e do primeiro-ministro de um país que é um paraíso fiscal. Neste país, há mais de mil milhões de dólares resultantes de desvios de Angola. Esse paraíso está a ficar exposto por causa da corrupção de Angola e é do interesse desse país fazer o retorno do dinheiro. Se eu individualmente tenho amigos que me trazem estes canais, os serviços de inteligência do Estado não têm? Podem chamar-me que dou os nomes reais.
A Unita diz que tem uma lista…
É factual, foi dito numa intervenção na AN. Desde aquele dia, ninguém nos procurou. Porque não têm interesse, porque os nomes que estão nessas listas são protegidos. Não fui procurado por ninguém, nem do Governo, nem do sistema judicial.
Pode partilhar o valor e os nomes?
É superior a mil milhões de dólares. Mas os nomes são muitos, temos muitos dados. Tenho um dossier que trata dos desvios do Estado, que uma empresa de angolanos nos trouxe e levou também à Procuradoria Geral da República, que identificou nomes, tem fotocópias dos documentos, tem fotografias dos actos das assinaturas e fala de desvios que são superiores a dois mil milhões de dólares. Nenhum dos envolvidos nestes desvios está sobre o alvo da justiça.
Há correntes que acreditam que grande parte dos altos quadros do MPLA tem o nome nessa lista…
Os maiores ladrões estão cá fora. Infelizmente, são membros do bureau político, com responsabilidades muito grandes. Há que ter aqui uma postura de uma transição um bocado mais responsável, exigindo do Estado maior equidistância e procurando a moralização das instituições.
Que consequências podem ter para o país um suposto conflito entre o ex-Presidente da República e o actual?
O teatro que nós vimos é muito negativo, não fica bem. Por exemplo, um presidente a dar uma entrevista a um órgão estrangeiro. As entrevistas nunca são dadas a órgãos nacionais. Não é bonito. O Presidente tem de ir aos debates, porque é presidente do partido. Ele não pense que se faz substituir pela vice-presidente. Recentemente, houve um convite da TPA aos presidentes dos partidos. Entrevistou os presidentes do PRS, da FNLA, da Casa-CE e depois queria o presidente da Unita, tendo anunciado que quem iria do MPLA não era o presidente.
O presidente da Unita não foi por isso?
Não pode ir mesmo, foi o vice como o MPLA mandou. Quando se tem responsabilidades políticas tem de se prestar contas. Quando o Presidente da República dá uma entrevista a um órgão estrangeiro e diz que não recebeu nada na transição, o assunto é público. E este assunto devia ser tratado de outra forma. Quando o outro vem também responder publicamente que deixou 15 mil milhões de reservas internacionais líquidas, estamos numa crise, no âmbito institucional, no topo. O anterior Presidente deveria estar potencialmente disponível para aconselhar o novo Presidente dada a experiência. Isto tudo também deve ajudar-nos a reflectir sobre o país e os dirigentes que temos. Este conflito é muito negativo. Isabel dos Santos veio dizer que, quando saiu da Sonangol, tinha umas largas dezenas de biliões de dólares em disponibilidade financeira. Se fosse Presidente, nomearia uma comissão independente para apurar a verdade, porque um diz uma coisa, outro diz outra.
PERFIL
O engenheiro ‘roubado’ pela política Licenciado em Engenharia Electrónica, Adalberto da Costa Júnior já desempenhou vários cargos na Unita. Foi responsável da JURA no Porto, em 1980 para, entre 91 e 96, ser o representante da Unita em Portugal. Entre 96 e 2002 desempenhou a mesma função na Itália e no Vatícano. Foi ainda secretário provincial da Unita em Luanda, secretário para a comunicação e marketing e porta-voz. Entre 2009 e 2011 desempenhou a função de secretário para os assuntos patrimoniais e entre 2012 e 2016, foi vice-presidente do Grupo Parlamentar da Unita.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...