Jornalistas detidos sem acusação e sem justificação
LIBERDADE DE IMPRENSA. Carga policial faz dezenas de feridos em manifestação em Luanda. Jornalistas atirados para a cadeia quase por 60 horas sem justificação. Onda de protestos, contra as detenções ilegais e que violam direitos fundamentais, marcou um dos fins-de-semana mais violentos dos últimos tempos na capital angolana.
Quatro profissionais a trabalhar no jornal Valor Económico e da Rádio Essencial foram encarcerados durante quase 60 horas numa esquadra de polícia, depois de terem sido detidos quando tentavam fazer a cobertura jornalística da manifestação do passado sábado, convocada por um grupo de jovens para protestar contra o custo de vida e pela realização de eleições autárquicas.
Os quatro profissionais, Suely de Melo, Carlos Tomé, Santos Samuesseca e Leonardo Faustino, foram abruptamente retirados da viatura, na qual se deslocavam, e colocados em carros de polícia, com mais outros detidos. A polícia não se inibiu de usar a força, agredindo com bastões os três jornalistas e o motorista, obrigando-os assim a entrar nas viaturas. De nada adiantaram os protestos e a exibição das credenciais que os habilitam a exercer a profissão. Depois de serem encaminhados, à força, por uma esquadra da capital, acabaram por ‘estacionar’ no Comando Provincial de Luanda, onde iriam passar as duas noites seguintes e mais a manhã de segunda-feira. Pelo meio, os polícias confiscaram todo o material de reportagem, além dos telemóveis pessoais.O mesmo aconteceu com os repórteres de imagem da Tv Zimbo e da agência France Press, que foram obrigados a apagar todas as imagens que tinham recolhido. Os dois repórteres ainda chegaram a ser detidos umas horas, mas depois libertados ainda na tarde de sábado.
A ordem para a libertação dos quatro profissionais do VE e da Rádio Essencial só chegaria na tarde de 26, sem que fosse deduzida qualquer acusação e sem qualquer explicação que justificasse a detenção dos quatro profissionais.
A detenção dos jornalistas provocou uma onda de reacções de protestos, que ultrapassou as fronteiras nacionais. Organizações não-governamentais e órgãos de comunicação estiveram na primeira linha, ao lado do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA). O presidente Teixeira Cândido condenou, de imediato, as detenções dos jornalistas e lembrou um encontro que manteve, o ano passado, com o Comandante Geral da Polícia Nacional. Nessa altura, o líder sindical ouviu a promessa das autoridades de que os jornalistas enquanto estivessem no exercício da profissão “não seriam detidos, nem agredidos”.
Também a ONG dirigida pelo activista Rafael Marques, a Ufolo, fez lançar um comunicado a “repudiar com veemência o aprisionamento, a agressão e o condicionamento de jornalistas no exercício da sua profissão”. A Ufolo sublinhava que “sem imprensa livre a fazer o seu trabalho, não há progresso, desenvolvimento nem justiça”.
Durante todo o fim-de-semana, os directores dos dois órgãos e o presidente do SJA multiplicaram-se em contactos que se foram tornando infrutíferos. Ninguém, dos diversos departamentos e estruturas policiais, conseguia dar informações concretas sobre o paradeiro dos jornalistas.
Manifestação anunciada
A convocatória para a manifestação tinha sido feita com a antecedência de três semanas e, ainda na quinta-feira, os organizadores acertaram com representantes o percurso e as medidas de segurança.
Horas antes da concentração para os protestos, o Presidente da República decretou um conjunto de medidas mais restritivas de combate à pandemia covid-19. Entre elas, o novo decreto impede ajuntamentos com mais de cinco pessoas o que, na prática, poderia significar a proibição de se realizar a manifestação. No entanto, os organizadores, argumentando com a Constituição, mantiveram os protestos. A brutal reacção da polícia resultou em ferimentos de dezenas de pessoas, um morto e a detenção de 104 pessoas que, até ao fecho desta edição, se preparavam para serem julgadas sumariamente no Tribunal Provincial de Luanda.
Entre os detidos, esteve o deputado da Unita Nelito Ekuikui que chegou a ser agredido, mas foi solto no mesmo dia. Esteve também o secretário provincial de Luanda da Jura, braço juvenil da Unita, Manuel Epalanga e activistas políticos que já tinham participado noutras manifestações ao longo do ano.
Comunicado conjunto do jornal valor económico e da rádio essencial
Face aos acontecimentos ocorridos no último sábado, 24 de Outubro, em Luanda, Angola, que, entre outros factos, resultaram na detenção de dois jornalistas da Rádio Essencial, um fotógrafo do Jornal Valor Económico e o motorista que os transportava, as direcções do Jornal Valor Económico e da Rádio Essencial tornam público o seguinte:
1. Os jornalistas Suely de Melo e Carlos Tomé, o fotógrafo Santos Samuesseca e o motorista Leonardo Faustino foram detidos às 10h27 minutos de sábado, nas imediações do Comando Provincial de Luanda. Eles estavam devidamente identificados como jornalistas e fizeram questão de informar a Polícia que estavam em serviço.
2. A detenção ocorreu quando os quatro profissionais já deixavam o local da manifestação, de tal sorte que foram retirados por agentes da Polícia abruptamente da viatura, que ficou abandonada na via pública. Os jornalistas foram agredidos pela Polícia e os telemóveis dos quatro, além da câmara fotográfica, foram apreendidos e não foram devolvidos até à data.
3. Após a detenção, os quatro profissionais passaram por várias esquadras da Polícia até se fixarem no Comando Provincial de Luanda, onde passaram as noites de sábado e de domingo e toda a manhã de segunda-feira, 26.
4. Enquanto os profissionais se encontravam detidos, as direcções dos órgãos desdobraram-se em vários contactos com diversas entidades, mas particularmente com a Polícia, que nunca explicou o motivo das detenções, mostrando mesmo dificuldade em confirmar a localização e o estado de saúde dos mesmos, o que gerou o pânico entre os familiares e colegas.
5. Perto das 15 horas de hoje, 26 de Outubro, os profissionais acabaram por ser libertados, obrigados a assinar um mandado de soltura com número de processo 11100/20-DCCO, depois de terem sido interrogados várias horas pelo Ministério Público.
6. Os profissionais acabaram, entretanto, libertados sem qualquer acusação e, até ao momento, nenhuma autoridade explicou a razão de os quatro terem passado mais de 50 horas detidos nas celas da Polícia.
7. As direcções da Rádio Essencial e do Valor Económico condenam veementemente esta clara tentativa de intimidação dos seus profissionais, corporizada numa violação grosseira e inaceitável de princípios e de direitos fundamentais.
8. As direcções da Rádio Essencial e do Jornal Valor Económico vão assim manter-se empenhadas na busca de esclarecimentos junto das autoridades sobre os motivos das detenções absurdas e arbitrárias dos seus profissionais e não descartam a hipótese de exigirem responsabilidades.
9. A Rádio Essencial e o Jornal Valor Económico asseguram que se vão manter firmes na defesa dos valores e dos princípios do jornalismo, como, de resto, sempre foi o seu apanágio.
10. As direcções da Rádio Essencial e do Jornal Valor Económico agradecem, finalmente, a todos os órgãos de comunicação social, aos colegas jornalistas, às organizações nacionais e internacionais e a todas as pessoas que, directa e indirectamente, se manifestaram solidários e que condenaram, de forma expressa, mais este atentando à liberdade de imprensa e indesmentível abuso de poder das autoridades. Um agradecimento muito particular ao Sindicato dos Jornalistas Angolanos, na pessoa do seu secretário-geral, Teixeira Cândido, que se dedicou enérgica e incansavelmente para a libertação dos nossos colegas.
Luanda, aos 26 de Outubro de 2020.
Pelas Direcções
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