ANGOLA GROWING

Os cães que ladrem, a caravana passa

23 Jun. 2021 V E Editorial

Qualquer dos textos alguma vez escritos, neste espaço, sobre aquilo a que se designou “revisão pontual da Constituição” poderia ser republicado hoje, após o fim do dito exercício na Assembleia Nacional. Feitas as contas, tudo se mantém actualizado, começando pelas expectativas que ficaram goradas desde o princípio.

Os cães que ladrem, a caravana passa

Primeiro, por ardilosos desvios conceptuais. A designação comum de revisão ordinária foi substituída por “revisão pontual”. E, entre a Semântica e o Direito, vários académicos se deixaram enganar e inundaram o espaço mediático com discussões estéreis, desconfiados de um eventual descuido ou ignorância do Presidente. Maldita distracção! Nunca seria por desconhecimento nem por negligência. Antes pelo contrário. Na cabeça do ‘pensólogo’ da revisão, a escolha do “pontual” sugeriria, à partida, um campo semântico mais restrito do que poderia estabelecer a ideia normalizada de revisão ordinária. Era, no fundo, a primeira rédea curta mostrada aos assanhados, com a mensagem implícita grafada de arrogância: ‘não se estiquem, vai ser uma mexidinha nuns pontinhos’. 

No segundo momento, viria, claro, a confirmação com o conteúdo da proposta. João Lourenço deu a linha e a agulha aos seus deputados e orientou-os sobre as partes específicas do tecido que deveriam ser cosidas. Tudo menos as questões essenciais que põem em causa o propósito do manuseio e da preservação do poder por detrás da Constituição desde a sua origem. Aos teimosos, aos que tentassem levantar as questões de fundo, no conteúdo, o MPLA e tudo o que o suporta respondiam com o desvio conceptual previamente arquitectado: ‘é pontual, não é para ser profunda’. E assim, inebriados pela insaciedade do poder, da pilhagem e da desgovernação, exultam de alegria com o canto da caravana que passa, enquanto os cães ladram. E fazem-no de cabeça tranquila, ignorando que, na asfixia do processo democrático, está também a explicação da miséria e da morte de milhões de angolanos que dizem defender todos os dias. Cantarolam de felicidade pela vitória da força sobre a razão, enquanto se esquecem que, na concentração do poder, está também a razão da contínua fabricação de deuses e da pessoalização das instituições, que impedem o progresso e disseminam a desgraça. Desconversam sobre a despartidarização do Estado com soberba, mesmo lembrados todos os dias pelo passado e pelo presente que a China, a Rússia, a Cuba e a Coreia do Norte não são exemplos de desenvolvimento integral e sólido.

Definitivamente os angolanos mereciam um pouco mais de sorte.