ANGOLA GROWING
Cimeira da CPLP junta nove estados a 17 de Julho

Por entre fricções políticas e os interesses económicos

DIPLOMACIA.Presidente do Brasil ausente, Guiné-Bissau em fricções com Angola, Guiné-Equatorial à beira de eliminar a pena de morte e Luanda a pensar nas relações económicas. É este o resumo de uma cimeira que vai aprovar a mobilidade diplomática. Em definitivo, cai a ideia de haver a livre circulação de pessoas e bens entre os países da língua portuguesa.

Por entre fricções políticas e os interesses económicos

Há 25 anos, desde a fundação, que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) procura aprovar a livre circulação de pessoas e bens. Há 25 anos que essa pretensão esbarra em obstáculos. E só este ano, por proposta de Cabo Verde, país que preside à organização, é que ficou semi-ultrapassada a barreira. Ainda assim, com 'nuances' linguísticas e práticas, longe da ideia inicial.

Pela segunda vez a presidir à CPLP, Cabo Verde leva para a cimeira uma proposta a que chama de 'Geometria variável' e que basicamente consiste num modelo de integração comunitária. Em vez de 'circulação', a CPLP opta por 'mobilidade'. Assim, a livre circulação de pessoas e bens dá lugar a um acordo geral,  que prevê estadias até 30 dias no espaço da CPLP isentas de vistos e ainda vistos de curta duração para profissionais, investigadores e docentes, além de autorizações de residência mais facilitadas.

Desta forma, a CPLP dá uma 'meia volta por cima' ao maior obstáculo: a imposição da União Europeia que impede Portugal de assinar acordos de livre circulação, sobretudo numa altura em que a Europa tenta fechar fronteiras aos países africanos.

 

 'Irritantes' Brasil e pena de morte

Outro estorvo prestes a ser ultrapassado está nas mãos da Guiné-Equatorial. O país entrou para a comunidade, primeiro como observador, em 2008, e depois como membro de pleno direito apenas em 2014. O passo decisivo foi a promessa de abolir a pena de morte, cujos pormenores legislativos devem ser conhecidos na cimeira de Luanda.

Ausente da cimeira e do encontro dos nove chefes de Estado, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, vai ser substituído pelo vice Hamilton Mourão, um militar na reserva e que se destaca por ser um fervoroso apoiante da ditadura resultante do golpe de Estado de 1964. O anúncio da ausência de Bolsonaro foi imediatamente interpretado, nos meios políticos, como demonstração do desagrado do presidente brasileiro pela forma como Luanda está a lidar com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), com a expulsão dos pastores e o apoio aos chamados 'rebeldes'. O presidente brasileiro limitou-se a justificar a ausência com problemas de agenda. Mas, no ano passado, não hesitou em deslocar-se a Luanda, por umas horas, apenas para conversar com as autoridades angolanas em que o problema da IURD esteve em cima da mesa. Pelo lado angolano, em entrevista à Agência Lusa, o ministro das Relações Exteriores, Tete António, também tentou desfazer um possível mal-estar, garantindo "não existirem fricções entre os Estados-membros da CPLP".

A mesma garantia, usando a frase "não há fricções", foi dada pelo chefe da diplomacia angolana a propósito do 'irritante' desentendimento entre Angola e a Guiné-Bissau. O presidente guineense chegou a acusar João Lourenço de querer "interferir nos assuntos internos" da Guiné-Bissau, a propósito das eleições de 2019. Antes, já tinha acusado o presidente angolano de ingratidão e de perseguir a família de José Eduardo dos  Santos.

Umaro Sissoco Embaló ganhou as eleições em Dezembro de 2019, mas Angola só reconheceu os resultados, à boleia da CPLP, quatro meses depois.

No caso de Portugal, apesar da correcção da linguagem diplomática de ambos os lados e das confirmadas presenças de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa, várias análises têm apontado para um certo arrefecimento na relação com o Governo angolano. João Lourenço é inclusivamente interpretado como tendo marcado passos no sentido de uma maior aproximação à Espanha, em detrimento de Portugal, para vincar o seu alegado descontentamento pela insuficiente cooperação das autoridades portuguesas na sua controversa agenda de recuperação de capitais. 

 Economia mais economia

Fora as divergências políticas, Angola assume, pela segunda vez, a presidência da CPLP com uma agenda a apostar no desenvolvimento das relações económicas da comunidade. "A República de Angola gostaria de ver um quarto pilar acrescentado às nossas prioridades actuais, que é o pilar económico e empresarial", afirmou o ministro Teté António, à Lusa.

Luanda vai ser palco da XIII Conferência dos Chefes de Estados da CPLP sob o lema 'Construir e Fortalecer um Futuro Comum e Sustentável'. O ponto alto será a cimeira que vai juntar os chefes de Estado. Uma reunião que se repete a cada dois anos.

Criada há 25 anos, a 17 de Julho de 1996, a CPLP tem actualmente nove Estados-membros: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Guiné-Equatorial. Além destes membros efectivos, outros 10 participam como observadores, dos quatro continentes, Senegal, Ilhas Maurícias, Japão, Namíbia, Turquia, Geórgia, Uruguai, República Checa, República Eslovaca e Hungria.

CPLP com mudanças de objectivos

No princípio era a língua

 

Foram precisos 13 anos para que a ideia de criar uma comunidade dos países falantes da língua portuguesa ganhasse corpo. A ideia foi acarinhada e incentivada pelo embaixador brasileiro em Portugal, José Aparecido de Oliveira, que se mostrou o maior entusiasta. Diplomata muito ligado à cultura, amigo de escritores lusófonos, José Aparecido de Oliveira 'agarrou' a oportunidade, logo na primeira vez que a intenção de criar a comunidade foi abordada a nível político. No caso, por Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em 1983, que propôs a realização de reuniões regulares que juntassem os sete Estados.

Só que, nessa altura, as relações entre Portugal e os governos africanos viviam momentos escaldantes, com grandes fricções. Durante anos, os sucessivos governos portugueses foram apoiando os movimentos que se opunham aos poderes em África. Angola e Moçambique, com as guerras mantidas pela Unita e Renamo, eram os casos mais complexos. Só a partir de 1991, com a introdução do multipartidarismo nos países africanos, e com o desanuviamento político, foi possível pensar-se na criação efectiva da CPLP.

Começou por ser um projecto cultural, sobretudo em defesa da língua, mas com o decorrer dos anos assumiu a defesa de interesses mais económicos. Desde o início que um dos propósitos era a livre circulação de pessoas e bens. Mas a ideia, apenas aplaudida pelo Brasil e Cabo Verde, sofreu forte oposição de Portugal e de Angola.

José Eduardo dos Santos, durante os anos em que liderou o Governo angolano, nunca se mostrou um grande entusiasta da CPLP. Angola faltou aos compromissos de pagamento de quotas a que cada país está obrigado. Por imperativo dos estatutos, seguindo a ordem alfabética, Angola foi o primeiro país a presidir à CPLP e a designar o secretariado executivo, cuja liderança, por escolha de José Eduardo dos Santos, recaiu sobre Marcolino Moco, um dirigente do MPLA fora do núcleo do poder.

Em 11 cimeiras, José Eduardo dos participou apenas em três, uma em que foi o anfitrião, nas outras duas realizadas em Lisboa. Mas esteve na fundação, a 17 de Julho de 1996, ao lado dos presidentes de Portugal, Brasil, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Na altura, eram apenas sete os países-membros. O grupo foi alargado a Timor-Leste em 2000 e à Guiné-Equatorial em 2014.

De acordo com os princípios, aprovados há 25 anos, a "CPLP tem três linhas de acção fundamentais: a concertação político-diplomática, a cooperação em diferentes domínios e a promoção e a difusão da língua portuguesa". A futura presidência angolana quer acrescentar um quarto pilar: o económico e empresarial.

Sem a presença dos observadores, a CPLP abrange mais de 260 milhões de pessoas e nove países em quatro continentes.

Tendência decrescente marca trocas comerciais entre principais parceiros

Com o objectivo de reforçar a cooperação comercial entre os membros, os ministros do Comércio dos Estados-Membros reuniram-se pela primeira vez em Maio de 2012, em Luanda. E sublinharam a urgência na articulação de acções das entidades públicas para ampliar, aprofundar e facilitar a cooperação económica e empresarial no espaço da CPLP, através do incremento do comércio, do investimento e de parcerias, assegurando uma maior inclusão e interacção dos agentes económicos e das economias dos Estados membros. Passados nove anos, no entanto, os números mostram que a tendência tem sido contrária.

Por exemplo, as trocas entre Portugal e Brasil (membros com maior volume de trocas entre si) naquele ano estava avaliada em cerca de 2,62 mil milhões de dólares. Em 2018 recuou para cerca de 2,156 mil milhões de dólares.

Já entre Angola e Portugal (maior parceiro comercial de Angola na comunidade) as trocas estavam estimadas em cerca de 4,770 mil milhões em 2012 e terminaram 2018 com 2,9 mil milhões de dólares. A tendência decrescente também se registou nas trocas entre Angola e Brasil, que é o segundo maior parceiro do país. Em 2012, estavam avaliadas em cerca de 1000 milhões, mas em 2020 foram de 535,4 milhões de dólares.

No caso de Angola, registou-se uma tendência contrária nas trocas com Moçambique em 2020 face a 2019 com um crescimento de cerca de 117% para 2,9 milhões de dólares.

 A análise de especialistas

Relações e conflitos entre Estados

Reacções. Especialistas dividem-se nas preocupações sobre Angola e a Guiné-Bissau, mas defendem maior união e uma maior intervenção da CPLP, quando há conflitos. Gaspar Luamba, João Sassanda e Ramos da Cruz traçam um retrato da comunidade. 

João Sassanda

Sociólogo e politólogo

A CPLP deveria ser mais ambiciosa e não pensar apenas nas cimeiras. A questão de Moçambique é grave, é terrorismo, um problema que enferma o mundo moderno e era importante que a CPLP mobilizasse não apenas parceiros fora dos continentes em que estamos inseridos. (A CPLP) devia formar um mecanismo para salvaguardar a estabilidade dos Estados quando forem invadidos, com a criação de uma força militar própria que possa integrar os diferentes Estados. É preciso também que seja uma plataforma giratória do aumento da democracia dentro dos países-membros para que os processos eleitorais sejam muito mais monitorizados para se evitar situações como na Guiné-Bissau e que se vive um pouco por toda África.

Não basta falarmos uma língua quando ela não tem uma relevância política, económica e científica a nível do mundo. É preciso apostar na ciência, no desenvolvimento sustentado para que o português tenha alguma relevância e os nossos povos comecem a tirar proveito.

Estamos muito aquém dos objectivos da criação da CPLP.

Gaspar Luamba

Especialista em Relações Internacionais

Do ponto de vista económico e estratégico, a Guiné-Bissau é um Estado falhado e pode acontecer o mesmo com Moçambique.

Refuto a ideia de que, nos últimos dois ou três anos, a relação de Angola com a CPLP não tenha sido das melhores. No passado, não houve grandes melhorias.

A relação baseia-se simplesmente entre governos. Entre os povos, não há impulso, não há estratégias económicas eficazes porque até o mais simples, que era eliminar as barreiras de locomoção entre os povos, não se conseguiu fazer, nem tão pouco se conseguiu encontrar um acordo ortográfico.

Nestes 25 anos, não se conseguiu alcançar os objectivos desejáveis e estão muito longe de se alcançar enquanto a organização mantiver a mesma filosofia. Os Estados directores da CPLP olham para o organismo como uma organização circunstancial.

A relação de Angola e Guiné-Bissau dentro da CPLP nunca foi vantajosa no ponto de vista recíproco no plano económico.

Ramos da Cruz

Especialista em Relações Internacionais

Bolsonaro, de forma inteligente, não quer juntar a sua crise interna com uma crise internacional, porque já esteve muito mal em termos de comunicação. Está a tentar juntar alguns cacos que já estão partidos e não quer aumentar, de forma que, na CPLP, preferiu não vir mas, mesmo assim, já pôs o seu genro e outro embaixador que são próximos à IURD para acalmar exactamente esta pressão que está a sofrer por parte da igreja.

O presidente da Guiné-Bissau não está a ter com o Presidente João Lourenço e com Angola uma posição de Estado. Ele, ao associar-se a José Eduardo dos Santos numa altura em que as relações não são boas, também não ficou muito bem.

Estas crispações já tiveram um reflexo. Angola já retirou o embaixador. A embaixada de Angola está a ser gerida por um ministro conselheiro, o que baixa de forma considerável o nível de comunicação entre os dois.