“Tenho a certeza absoluta de que isso não é motivo para criar um mal-estar nas relações entre os dois países”
Enquanto persiste o conflito entre membros da IURD em Angola, o embaixador do Brasil em Luanda nota que há entendimento da parte das autoridades angolanas para que não ocorram novas invasões a propriedades da igreja. E que as que já ocorreram sejam tratadas nos termos da lei angolana. Paulino Neto nega que se trate de um conflito entre angolanos e brasileiros, argumentando que há brasileiros entre os dissidentes, e está certo de que as relações político-diplomáticas vão manter-se intactas.
Como é que tem estado a acompanhar o caso da Igreja Universal do Reino de Deus? Considera a possibilidade de dar lugar a um conflito político-diplomático entre Angola e o Brasil?
Prefiro evitar que se trate de um caso político e diplomático. É um caso de respeito a cidadãos estrangeiros, basicamente brasileiros, que vivem cá e que fazem parte da Igreja Universal que gerou esse conflito e essas manifestações todas nos órgãos de comunicação social não só em Angola, mas também no Brasil, com bastante intensidade. Nasceu nos dias 22, 23 a 24 de Junho. Houve uma série de invasões a templos e a residências da Igreja Universal, de membros angolanos e brasileiros, e de outras nacionalidades que fazem parte da igreja, que causou uma grande confusão e fez com que alguns brasileiros nos procurassem. A embaixada está a fazer todo o esforço para que os direitos dessas pessoas possam ser resguardados.
Que passos marcaram depois destas solicitações?
Solicitámos às autoridades angolanas, em particular ao Ministério do Interior, que tomassem as providências para que não houvesse mais invasão. Em segundo lugar, para que, no ordenamento jurídico angolano, esses invasores fossem retirados dos templos e das residências e é isso que fizemos. A Igreja Universal no Brasil e outras de origem cristã têm membros de vários pontos do mundo, inclusive angolanos. A Igreja Universal e outras evangélicas situadas no Brasil acolhem muitos líderes políticos brasileiros. Detém vários órgãos de comunicação como a Record Tv e tudo isso gera uma grande confusão. É algo que tem de ser gerido no âmbito judicial entre as autoridades angolanas e brasileiras. Eu, como embaixador brasileiro, confio nas autoridades angolanas e tenho a certeza de que se vai resolver de forma judicial.
A carta que o Presidente Bolsonaro escreveu para o Presidente João Lourenço não é suficiente para admitir a possibilidade de contornos diplomáticos?
Tive a cópia da carta em formato digital porque a original ainda não chegou às minhas mãos. Na carta, o Presidente brasileiro admira o esforço do Presidente angolano no desenvolvimento da democracia e regista a preocupação de João Lourenço com as invasões a templos da Igreja Universal e a outras instalações. Regista o relato de agressões dos membros da igreja que foram expulsos dos templos e das residências e menciona que os processos de apuramento tem um tempo na justiça e as decisões serão acatadas, pedindo que se reforce a protecção aos membros da igreja universal, garantindo a integridade física e dos bens materiais. O papel dos dois governos é encontrar uma forma pacífica para a resolução dos conflitos entre os membros da Igreja Universal de Angola e do Brasil e, naturalmente, manter as relações económicas, políticas e comerciais entre os dois povos.
Há correntes que acreditam que, se o desfecho não agradar uma das partes, digo um dos países, pode beliscar as relações bilaterais…
Não acredito. Acho que isso é uma hipótese explorada pelos académicos e especialistas, mas tanto Brasil quanto Angola temos interesse de ver esse assunto resolvido na esfera própria que, no último ponto, é a judicial. Não cabe a mim aconselhar ou sugerir entendimento, sei que as duas entidades envolvidas poderão recorrer à justiça ou ao diálogo. Que não haja mais invasão, esta perspectiva é compartilhada entre os governos, de garantir que não haverá mais invasões e aquelas que já ocorreram que sejam tratadas no âmbito judicial, porque a IURD é uma instituição reconhecida pelo Governo angolano desde 1992 com todos os direitos e obrigações.
Os pastores, chamados da ala brasileira, também estão a ser acusados de vários crimes, como uso de armas de fogo, evasão fiscal, entre outros. Corre mesmo um processo na PGR…
Não definiria que se trata de brasileiros num lado e angolanos no outro. Tanto é que a IURD aqui é mais composta por cidadãos angolanos e um pequeno grupo de brasileiros. Este grupo dos incidentes também é composto por brasileiros. Parece-me que estes incidentes querem descaracterizar a IURD. Corre uma queixa-crime na PGR contra antigos representantes da IURD em Angola e não mais a actual direcção. Se for verdade, a justiça angolana tem de acompanhar as acusações, mas um suposto crime cometido por antigos membros da direcção anterior não justifica nenhuma invasão da propriedade alheia. Um suposto crime não justifica o cometimento de um outro que ainda está em curso o processo de investigação. Essa é a nossa maior preocupação e isso não cabe a mim nem ao governo brasileiro, porque as decisões finais serão do Governo angolano, de acordo com as normas jurídicas angolanas.
A IURD foi sempre citada como tendo sido a instituição religiosa que mais apoiou a campanha do Presidente Bolsonaro. Esta situação não poderá pesar na forma como o governo brasileiro se vai envolver no caso?
A IURD e as demais igrejas evangélicas no Brasil têm uma presença muito grande na sociedade, estão muito ligadas em sectores significativos da sociedade brasileira e são eleitores. Têm os seus representantes nas diversas instâncias de poder, seja nos municípios, estados e representação federal, inclusive no poder executivo. Naturalmente, exercem legitimamente pressão política sobre deputados, prefeitos, senadores, governadores e, inclusive, a própria Presidência da República. É legítimo em democracia como a do Brasil, participativa e vibrante. A sociedade brasileira tem uma complexidade e diversas opiniões públicas e manifestam livremente, não só aquelas que favorecem determinadas acções do governo, mas também aquelas que estão na oposição política, civil, ONG e os próprios media brasileiros, que é extremamente livre onde se encontram todos os pontos de vista, de opiniões e isso se reflecte em tudo, inclusive no episódio da IURD em que há visões diferentes sobre o assunto. Em relação à questão específica das invasões, no Brasil, há quase unanimidade, independentemente de serem partidos políticos da oposição ou partidos que apoiam as políticas do governo de Bolsonaro. Todos condenam os actos de violência cometidos contra a IURD em Angola, não pelo Governo angolano, mas por esses antigos membros.
Edir Macedo, como é óbvio, está directamente envolvido na tentativa de resolução do caso. Sabe se já entrou em contacto com o Presidente Bolsonaro? E com o senhor embaixador?
As questões ligadas à IURD não são da minha alçada. Não estou a falar em nome da IURD, estou a falar em nome do Estado e do governo brasileiros. Sou o representante do Presidente Bolsonaro em Angola, que é o chefe de Estado e de governo. Não represento instituições específicas brasileiras, respondo pelos interesses de cidadãos brasileiros que vivem em Angola e alguns deles fazem parte da IURD. Quanto ao tratamento de outras entidades da IURD, isso, sem dúvidas, ocorre lá no Brasil, até porque alguns políticos lá são evangélicos e muitos deles obreiros da IURD e é natural que tenham uma interlocução com autoridades políticas no Brasil.
Quando se fala da evasão financeira, estimam-se receitas de cerca de 80 milhões de dólares por ano. Tem informações destes números?
Nenhuma. Eu não posso fazer observações ou comentários de ouvir dizer ou que são colocadas no facebook ou que são feitos por terceiros porque não quero entrar neste meio. Quem tem de tratar disso é a justiça angolana se houver uma denúncia a respeito ou quem fez a acusação tem de prová-la. A mim não cabe entrar neste método porque não é meu papel nem minha atribuição. Quem acusou tem de provar e a melhor maneira de comprovar é fazer uma denúncia pública às autoridades locais que é o Ministério Público angolano que fará as investigações cabíveis e decidir a respeito. Acho temerário fazer acusações sem provas.
Portanto, não acredita mesmo na possibilidade de o caso vir a atrapalhar as relações entre os dois países?
Tenho a certeza absoluta de que isso não é motivo para criar um mal-estar. Tudo o que nós queremos entre as autoridades angolanas e brasileiras é trabalhar para se ter uma óptima relação, muito fluída e aberta com todas as autoridades angolanas para que isso não venha a criar qualquer tipo de embaraços nas relações bilaterais, porque os nossos interesses são muito mais amplos. Não só interesses no campo oficial, cooperação oficial, cooperação política, mas principalmente a cooperação entre os povos, porque a comunidade brasileira aqui é uma comunidade razoavelmente importante em termos de números, além disso está muito inserida na sociedade angolana. Porque os brasileiros que trabalham aqui são empreendedores, têm participado no desenvolvimento económico de Angola e actuado em diversos sectores de economia, nas indústrias, agricultura. E como temos também uma grande presença de angolanos que vivem e estudam no Brasil que trabalham e casaram-se com mulheres e homens brasileiros. No fundo, fazemos parte da mesma história desde sempre, desde que o Brasil é Brasil e desde que Angola é Angola.
Mudando de assunto, como estão as trocas comerciais entre Angola e Brasil neste período de confinamento?
As importações e o comércio bilateral permanecem. Apesar da covid-19 em todo o mundo, espero que as importações e exportações voltem aos níveis anteriores, porque, no ano passado, foram 700 milhões de dólares para o comércio bilateral. Temos empresas brasileiras aqui, temos investidores brasileiros que querem vir para Angola. Queremos manter os voos directos entre o Brasil e Angola e vice-versa.
Há informações sobre a possibilidade de o governo brasileiro financiar Angola. Confirma?
No passado, havia boas conversações para apoiar o crédito por via do BND e o Brasil apoiou Angola com mais de 4 mil milhões de dólares em 20 anos que foram bem utilizados em obras. Por isso, gostaríamos de retomar tão logo sejam possíveis as visitas bilaterais, vamos apoiar o sector privado.
Diplomata há 35 anos
Paulino Neto é natural de Curitiba (Brasil), começou a carreira diplomática em 1985. É formado em diplomacia e administração pública, no Brasil. Entre as funções desempenhadas nos últimos anos estão a de director do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos, tendo ainda sido chefe da Divisão do Meio Ambiente e chefe da Divisão de Serviços Gerais. Já foi diplomata na Suíça, Itália e Chile.
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