José Augusto Junça, director-geral da transportadora Tura

“Ninguém investe nos transportes, a menos que venham fazer lavagem de dinheiro”

Crítico de algumas decisões tomadas pelo Governo, não tem dúvidas de que Angola vai cometer um erro se acabar com o subsídio aos transportes. Defende a criação de um fundo perdido para operadoras. Acredita que ninguém irá concorrer, caso haja concurso público para novas operadoras, porque não rendem. Lamenta ter trabalhadores a passar fome e confessa não gostar da Angola de hoje. Cáustico, aconselha os dirigentes a viajarem de autocarro e a deixarem o ar condicionado nos gabinetes.

“Ninguém investe nos transportes, a menos que venham fazer lavagem de dinheiro”

A direcção da Tura anunciou que a empresa está em falência técnica. Vai fechar as portas?

Pode ser que sim. Se não forem tomadas medidas financeiras imediatas, vamos fechar as portas, o que vai colocar cerca de 4.500 (empregos directos e indirectos) dependentes da empresa numa situação difícil. Durante longos anos, não se deu a importância que se devia aos transportes públicos. Todo o mundo sabe e conhece que os transportes públicos são importantes para a mobilidade. E aqui, cada um quer ter o seu carro, entrar no mercado dos candongueiros. Alguns responsáveis do Estado não olharam como deviam para os transportes públicos citadinos. Há um acumular de situações negativas que agora, rapidamente, pretendem colmatar com algumas ideias que não vão funcionar tão rápido, por falta de dinheiro.

Que ideias são essas?

As operadoras deviam ter sido reforçadas e os custos de exploração deviam ser cobertos, e não são, através do bilhete que é cobrado. O custo de exploração hoje ronda os 200 kwanzas. A última proposta do Instituto Nacional de Preços e Concorrência (IPREC) foi de 151 kwanzas, que não cobre os custos. Há um acumular de situações negativas que levam as empresas à falência.

Na Tura, quantas pessoas ficariam desempregadas, caso feche as portas?

393. Temos despedido pessoal indemnizando. Não há condições financeiras para manter tantos trabalhadores. Tínhamos 440. Não é possível mantê-los todos. Fomos aplicar medidas económicas. Devia ter começado pela redução de salários, mas não aceitaram. Restou o despedimento.

Em Janeiro, estimou em cerca de dois mil milhões de kwanzas a dívida do Estado com a Tura por causa da subvenção dos bilhetes. Qual é a divida actual?

Sinceramente, já nem sei. É um processo longo. Continuamos a defender que o Ministério das Finanças, que faz o pagamento dos subsídios, tem dados estatísticos que permitem pagar alguma coisa. A situação do país é extremamente difícil por ter sido delapidado em vários milhões. Mas, mesmo que não seja possível pagar tudo, devem pagar alguma coisa. Não pagar nada não é possível. Informei, há uns tempos, as mais altas instâncias do país que tenho trabalhadores a passar fome. Não posso exigir nada deles. Cheguei a fazer um pedido público, publicado no Jornal de Angola, ao Presidente da República, o ano passado. Fiz também uma carta ao ministro dos Transportes, explicando uma série de situações. Nada disso foi respondido.

Que situações relatou ao ministro dos Transportes?

Falei do estado económico e financeiro das operadoras, a doação de um fundo perdido para as operadoras, as frotas existentes, a falta de acessórios como pneus e baterias, que sem esses componentes não conseguimos fazer manutenção preventiva e correctiva. Sem esses acessórios, os autocarros vão avariando e encostando. Não há dinheiro para pagar esses acessórios que precisam de divisas. A Tura chegou a ter cerca de 930 mil euros no banco durante um ano. Pedi ao BNA para não descativar a verba, mas, ao fim de um ano, descativou. E não estamos a falar em milhões. Não somos marimbondos. Falamos do sistema de bilhética, que agora está em testes. Que a Tura já tinha apresentado logo no início das suas actividades. Mas também não deram em nada. Fizeram apenas duas apresentações e nada.

Depois deste tempo, volta-se ao mesmo assunto…

Sim. Pensam que o sistema de bilhética, tal como dar autocarros, resolve os problemas dos transportes. O Ministério, no tempo da gestão dos ministros André Brandão e de Augusto Tomás, adquiriu autocarros. Não basta. Precisavam de manutenção, tal como as pessoas. Isso é básico e não precisamos de ir à universidade para aprender. Isso não foi feito e houve deterioração. Não estamos nos EUA nem na Europa, em que comprar uma peça pode durar 24 horas. Se quiser importar alguma coisa da China (a maior parte da frota angolana é chinesa), demora quatro a seis meses. A Tura tinha cerca de 125 autocarros, mas, pelas dificuldades, apenas estamos a usar entre 12 e 14.

Não lhe parece contraditória a lógica dos fundos perdidos hoje?

As empresas estão em falência. Todas elas. O Estado entregaria dinheiro às operadoras sem cobrar. As empresas não têm como pagar. A TCUL recebeu, há pouco tempo, mais de 100 autocarros. Grande parte deles já está parado. Não vieram acessórios. Houve um iluminado do vento leste, que não deve perceber coisa nenhuma, que comprou os autocarros como se compram alfaces. Tenho uma informação verbal de que, dada a situação, o Ministério decidiu atribuir autocarros escolares às operadoras. O autocarro escolar não é apropriado para transporte público. Os autocarros ‘standard’, o que mais utilizamos, transportam cerca de 85 pessoas, mas chegamos a transportar 140. Vai danificar tudo. Quando o Estado pensa em comprar autocarros, sem colocar em causa os conhecimentos dos servidores do Estado, deve auscultar as operadoras.

Nunca foram ouvidos?

Não. Era o mínimo. Por exemplo, a TCUL tem cerca de 12 marcas de autocarros na sua frota e não é possível gerir isso. Algumas coisas podem ser comuns, mas a maioria não. Pedi ao representante dos 500 autocarros escolares que foram adquiridos no Brasil para ver as componentes para termos em ‘stock’. Não autorizaram. Como se mostrar isso fosse parte de um plano estratégico e secreto. Entendemos que o representante queira vender as peças a seu belo prazer, mas ele deve submeter-se às leis de Angola. Vão monopolizar e fazer os preços que quiserem.

Ainda sobre os fundos perdidos. Na actual conjuntura económica e financeira, o Estado não teria capacidade. Não concorda?

Se o Estado não for ‘gasoso’ e se existir vontade política, sim. A ideia é que as operadoras indiquem ao Estado o que as viaturas precisam de reparação. Pedir uma factura pró-forma para cada viatura para que o Ministério das Finanças ou o dos Transportes disponibilizasse os valores. A disponibilização podia não ser de uma só vez, desde que os períodos não fossem longos. Esse apoio poderia aumentar a frota das operadoras em circulação e seria para reabilitar os meios paralisados.

O Governo está a preparar a retirada do subsídio aos transportes. O que pensa sobre a medida?

Acho um erro. Em todo mundo, paga-se subsídio de transportes ao passageiro. Portugal, Espanha, Alemanha. Se querem avançar com a medida, devem autorizar que a tarifa seja definida pelas operadoras, que seriam 200 kwanzas.

Que seria mais cara que os 150 kwanzas dos candongueiros…

Sim. Porque é que autorizam 150 kwanzas para os candongueiros, quando eles nem sequer fazem parte do regulamento de transportes de Angola?

As operadoras podem concorrer com os candongueiros?

Não, não podemos. Há muitos anos, fizemos uma proposta pela situação das pessoas, que é extremamente difícil e hoje cada vez mais. Que esses transportes, primeiro, fossem oficializados e distribuídos por determinadas zonas em números limitados, como alimentadores dos transportes públicos. Eles não são transportes públicos. Vamos deixar de nos enganar.

O aumento de preços já foi aprovado na Comissão Económica do Conselho de Ministros e prevê-se a implementação para breve...

Como é que foi aprovado se não ouviram as operadoras? Essa medida é do actual secretário de Estado dos Transportes, no tempo em que era responsável do IPREC. Mas está mal. Antes de aprovarem, deveriam sair dos gabinetes com aparelhos de ar-condicionado e viverem a realidade.

Pensa que quem a aprovou não tem noção da realidade?

Não tem. Queria ver determinados técnicos com os seus fatinhos nos autocarros públicos. Queria ver como se sentiam, num autocarro que leva normalmente 80 pessoas, no meio de 140 pessoas. É só isso. Viverem a realidade.

O que vaia acontecer às transportadoras, se a medida entrar em vigor?

Isso é um problema das autoridades e não nosso. O Brasil já teve isso e foi resolvido. Os nossos ‘experts’, que fazem várias viagens de ajuda e controlo, é que devem saber. Eles é que estudaram e são doutores. Eu não sou.

Conseguiriam sobreviver com os 200 kwanzas que acreditam que seja o preço justo?

O problema não é pagar os 200 kwanzas. Já batemos na mesma tecla há 10 anos. Nesses anos, fizeram reuniões e ‘workshops’, mas adormeceram, sem medidas. Têm medo de propor superiormente. Sobre o tal programa BRT, que anunciaram com pompa e circunstâncias, a maior parte de quem trabalha nos transportes não faz ideia do que seja. Fomos os primeiros a ter um bi-articulado. Uma das componentes do sistema. Devem estudar para saber e, quando não souberem, pedir ajuda a quem sabe. Foram negociados 220 autocarros no Brasil para o BRT. Mas, antes disso, deveriam desenvolver outros assuntos, como o sistema de bilhética. Quando o antigo ministro das Finanças, Pedro de Morais, teve os estudantes a reclamar pelos transportes, quis atribuir um passe estudantil a custo zero. Perguntámos se o ministro fazia ideia de quantos estudantes Luanda tinha. Não sabia. Pegámos no levantamento e mostrámos, espantou-se com o número. Aí pensou em atribuir quatro milhões de dólares para a bilhética. Dissemos que não chegava. Fez-me lembrar um colega que pensou que comprar máquinas de contabilidade resolvia a contabilidade. Hoje, em Angola, temos equipamentos sem técnicos noutras áreas.

Os transportes continuam a ser um problema, apesar dos vários programas e iniciativas governamentais. O que terá falhado?

Ainda é um problema muito grave. Nunca foram meditados.

Qual acha que deve ser a solução?

Devemos começar do início. Perceber o que precisamos realmente. Começaria pela reparação das estradas para conservar as poucas viaturas. No tempo das chuvas, tenho de retirar os autocarros porque não podem circular. Tenho muita pena que a população fique sem transportes. Mas, se puser os autocarros em determinadas vias, fico sem eles. Precisamos de formar técnicos. Se não tivermos técnicos, teremos de importar. E pagar custos, como residência e alimentação. Angola não está preparada para isso.

O que acha do novo período de governação?

Espero que não demorem muito a tomar medidas efectivas e reais. Acredito, mas tenho de ser como São Tomé.

Que caminhos é que acha que o novo ministro dos Transportes pode tomar para melhorar a situação dos transportes?

Orientar os programas a executar e pedir resultados. Quem não cumprir, fora! Deve ser assim em todas as áreas. Não podemos propagandear tanta coisa que depois não é concretizada.

O Governo pretende abrir novos concursos públicos para novas operadoras de transportes…

Não vem ninguém. Podem abrir.

Porquê?

Ninguém vem investir nos transportes públicos quando não há retorno. Nessas condições actuais, a menos que venham fazer lavagem de dinheiro…

Há quem defenda que o negócio só não dá lucros por má gestão...

As pessoas que dizem isso que venham cá discutir comigo. Devem estar inseridos para saber o que se passa. Não há retorno no negócio. Dificilmente, vem alguém investir. As entidades estrangeiras convidadas exigiram a exportação de dividendos. Não garantiram nada. Transporte público não é só colocar autocarros. Tem de se pensar em motoristas, fiscais, mecânicos, administrativos e instalações apetrechadas. No mínimo dos mínimos, para a abertura de uma transportadora, o investidor precisaria de sete milhões de dólares. Se vierem tudo bem, mas vão-se dar mal.

E as quatro operadoras continuam a apostar num negócio não rentável?

Não estamos a apostar. Estamos a tentar sobreviver. O caminho mais real é a falência total. Fechamos. Não há hipóteses. Se o Estado, através do Ministério dos Transportes, não investir parcimoniosamente vamos fechar. Incluindo a TCUL. Isso de injectar autocarros não funciona. Aliás, onde está o presidente do conselho de administração da TCUL? Ninguém sabe dele. Os catamarãs estão a andar? Qual é a razão? Contratámos pilotos estrangeiros quando a Marinha de Guerra podia fornecer.

Quanto tempo é que a Tura consegue aguentar sem o pagamento dos subsídios?

Não sei. A falta de pagamentos é uma situação anómala que tem vindo a prejudicar gravemente as operadoras e, em especial, os trabalhadores. Estamos com até cinco meses de atrasos. Há trabalhadores que retiraram os filhos das escolas por falta de pagamento das mensalidades; há ainda quem não consiga custear a aquisição de medicamentos; actos fúnebres. Além das paralisações e greves. Quando o actual presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos, era vice-presidente da República, pedi uma audiência para que ele percebesse o que se estava a passar nos transportes há alguns anos. Comecei com formalismos, mas ele desfez toda a formalidade. Expus a situação. Convidei-o a visitar todas as operadoras e falar primeiro com os trabalhadores e só depois com os directores. Não o fez. A minha parte está cumprida.

Como está a facturação, quando antes funcionavam com mais de 100 autocarros e hoje têm apenas 12 a circular?

Está tudo a cair. Em termos de facturação, está tudo mal. Não posso dizer os números, mas digo que não temos facturação que cubra os custos. Preciso, no mínimo, de 25 milhões a 30 milhões de kwanzas por mês e não faço nem metade.

Quantos passageiros, a Tura transporta por dia?

Varia muito. Os períodos em que mais se transportam são os primeiros da manhã e os finais do dia. Depois oscila muito. Temos carreiras em que, às vezes, andam dois ou três passageiros. Luanda precisa de sete mil autocarros para cobrir as necessidades, cumprindo as normas internacionais. Há uns anos, fazíamos a rota do hospital militar a Viana em 25/30 minutos, mas hoje não fazemos em menos de duas horas e meia. Logo, as receitas caem. A velocidade comercial cai. Milagre quem os fazia era Jesus Cristo e Simão Toco.

Mas quantos passageiros conseguiram transportar em média nos dois últimos meses?

Em Fevereiro, transportámos 440.258 e, em Janeiro, 400.485.

Qual seria o ideal?

O ideal seria que transportássemos, por mês, entre 800 mil e um milhão de passageiros.

O que espera nos próximos dias do Ministério e da nova Governação?

Que Simão Toco e Jesus possam ouvir-me. Quando aconteceu a reunião do conselho consultivo do Ministério dos Transportes, levei o documento que remeti para mostrar ao ministro e ele disse que o tinha recebido. Não houve uma resposta. Não vou mais preocupar-me.

Gosta da Angola de hoje?

Não. Evidente que não. Para não falar no tempo do colono, vou falar do tempo da guerra. Não vivíamos assim, pelo menos, em Luanda. Fale com o povo. Com as bases. Há pessoas a sofrer demais. Tenho trabalhadores que passam fome. Implementamos a política de uma semana o trabalhador fica em casa e a outra vem trabalhar. Para não gastar dinheiro de táxi à toa. Fui colega de vários dirigentes. Cheguei a trabalhar com Agostinho Neto. Conheço bem o ‘mambo’. Quando tenho toda hora pessoas a pedirem dois mil kwanzas para comprar fuba, não posso gostar. Passados uns dias, eles vêm devolver. Digo sempre que não.

Perfil

Augusto José Junça nasceu no Tombwa, Namibe. É militante do MPLA. Trabalhou na Rádio Nacional de Angola como técnico há mais de 20 anos. Foi gerente da antiga Tecnidata. Passou também pela Cosal. É director-geral da Tura há 15 anos.