“Não devemos ligar a subida dos preços à retirada dos subsídios”
Director-geral do órgão responsável pela vigilância dos preços explica, a redução paulatina dos subsídios, defendendo que a especulação a que se assiste em determinados casos se deve aos custos internos e não à retirada das subvenções. Cruz Lima antecipa também a adopção, em breve, de novos métodos de controlo da concorrência que irão permitir concluir que o Estado tem estado a subsidiar em vão, em alguns casos.
O Presidente da República admitiu, recentemente, um possível aumento dos preços dos combustíveis e da electricidade. Para o IPREC, seria uma medida acertada nesta altura?
O que eu ouvi do discurso do Presidente da República foi a diminuição paulatina dos subsídios. Não sei por que as pessoas estão a traduzir esta frase como aumento dos preços. Mas é possível que, na ausência dos subsídios, os preços variem. Mas os preços podem variar para cima ou para baixo. Vamos acreditar que, com a retirada desses subsídios, haja uma alta de preços! Mas a razão, nesse caso, não seria a retirada dos subsídios.
Qual seria?
Quando os preços sobem, um dos factores da composição dos preços são os custos internos. Muitos destes [preços] tiveram um movimento altista. Então, nós não podemos ligar directamente a subida dos preços à retirada dos subsídios. Temos de ligar a subida dos preços ao aumento dos custos de produção. Mais ainda: se o Governo introduzir reformas de controlo dos custos e vir que, com este mecanismo, o produto chega ao consumidor no preço recomendado, então não faz sentido continuar a subsidiar. Creio que a explanação do Presidente da República era mais nesse sentido. Vamos usar métodos de controlo da concorrência, métodos de controlo da contratação pública, verificar a contabilidade, fazer auditorias e chegaremos à conclusão de que, em alguns casos, estamos a subsidiar em vão, sem necessidade. Isto é que tem de ser elaborado.
Mas olhemos para a relação causa-efeito, em termos imediatos. Não pode haver retirada de subvenção sem que os preços alterem, em termos nominais...
A primeira preocupação que devemos ter quando estamos a reduzir os subsídios não é que virá aí uma factura mais alta. É saber se a factura que vem é sobre o quê? O que se está a cobrar? Que preço é este? O combustível tem um monte de margens da mesma companhia. Vamos falar com essa mesma companhia e questioná-la porque é que não ajusta as suas margens internas. Há margens na refinação, na logística, na distribuição, muitas margens, e sempre na mesma companhia. É como que o mesmo produtor de batata que depois vende a si mesmo como o transportador, como o armazenista, como o retalhista e depois diz que a batata está muito cara, mas está muito cara sempre na sua mão. Portanto, estas são as coisas que o Presidente mandou verificar, controlar, auditar para ver como é possível manter os preços e retirar os subsídios. Onde for possível, vamos fazer. Onde não for, não vamos.
Algumas vozes defendem que, nalguns sectores, como no produtivo, uma eventual retirada dos subsídios deveria ser ponderada. Concorda?
O Executivo criou um programa, e nós estamos orgulhosos por termos contribuído com a ideia original, do crédito fiscal para a produção de alimentos. Este é um documento que está também a ser trabalhado pelo nosso instituto, no âmbito do programa intercalar. Já fizemos uma primeira abordagem à equipa económica e estamos à espera do sinal verde a ver se é realmente isso que está a ser solicitado. Acredito que, dentro em breve, teremos uma resposta do caminho a seguir. Isto consiste em retirar do custo do produtor uma percentagem - e devia ser até à percentagem da tributação e não vai ser - do custo do combustível em que ele incorre na produção de alimentos. Mas ele tem de produzir os alimentos, primeiro. Devia ter aí um custo correcto identificado, e depois vir ao Governo dizer: estão aí as minhas toneladas produzidas, agora quero a devolução de uma parcela do combustível que gastei para produzir a batata. Muitas pessoas querem já, antes de se lançarem ao mar para ir buscar o peixe, o combustível subsidiado. Neste - ilustrando -, quando o operador vier com o peixe pescado, nós vamos devolver o dinheiro do combustível gasto. Porque há quem use o combustível para passear ao invés de pescar! Se for à Austrália, aos Estados Unidos ou à Inglaterra, está tudo dessa maneira. Esta é uma espécie de apoio, o chamado crédito fiscal. Nos outros países, é a devolução dos impostos pagos nos combustíveis. Aqui o nosso combustível não possui imposto quase nenhum. Só tem margens com a mesma empresa desde a produção, importação, refinação, enfim. Todas as margens ficam sempre na mesma empresa e o Estado cobra um impostosito de consumo, uma coisinha mínima. Como é que vai apoiar mais? O maior apoio que o próprio Estado está a fazer, e isso já foi uma orientação presidencial, é reestruturar essa companhia, muito grande, sobredimensionada, sem necessidade de ter aquele tamanho. Já conhecemos mais ou menos o modelo de negócios dos petróleos. Isso está em várias literaturas e não precisamos de ter excesso de funcionários e de organismos para o negócio de exploração, produção, refinação, ‘upstream’ e ‘downstream’.
E em relação à electricidade? Defende igualmente a retirada dos subsídios?
O problema da electricidade é o não fornecimento. Aos preços actuais, nós temos a electricidade mais barata do planeta, porque o resto é tudo subsídio. Nós vimos que, no ano passado, não conseguimos fazer o pagamento das ordens de saque. Elas foram emitidas, os cálculos de subsídios foram feitos, foram mandados ao Tesouro, ao BPC para o respectivo pagamento e ficaram lá à espera da homologação. A receita pública não entrava em quantidade suficiente para pagar aquelas facturas. E faz um ano inteiro e não há subsídio à energia. Isso mata as empresas de energia. Elas não podem fazer milagre. Nós, quando fazemos um ajuste ao preço da energia, temos de ter em conta quanto estamos a consumir. Temos de ter contadores. Por exemplo, o consumo básico de uma família não custa assim muito caro. Se fizermos as contas, veremos que a nossa tarifa actual não ultrapassa os 2.500 kwanzas. Portanto, a questão não é não subir o preço da energia. A questão é saber quem é que não pode pagar para podermos ajudar. Então, a energia está muito barata. Eu - o dito guardião dos preços - estou a dizer à nossa população que é necessário subir a tarifa da energia para as empresas não fecharem, porque, se assim não for, será pior. Não há como subsidiar mais a energia. Temos de mudar a forma de encarar as empresas e os negócios. Porque, se a empresa de luz fosse nossa, estarámos aí a dizer sobe...sobe. Se as pessoas não querem que o preço da energia suba, o Estado que venda então a empresa de luz para o público e ver como deveria ser a solução. Se eu tivesse a capacidade de gerir isso, amanhã mandava já privatizar a ENDE. Seria a primeira coisa para ver se é ou não necessário subir a energia. Mandava privatizar a Ende, a RNT e todas as outras do sector eléctrico porque é um bom negócio. Então se assim é, porque é que tem de estar com o Estado e não pode estar com as pessoas? Mas, afinal, o Estado é o quê? Não é um conjunto de cidadãos, organismos e instituições?
O Presidente João Lourenço admitiu também recentemente a criação de uma lei da concorrência. Havendo esta possibilidade, que aspectos deviam ser destacados?
Os monopólios, conluios, práticas de abuso de independência económica, abuso de posição dominante, concentração de empresas. Isso tem de ser trazido para a mesa. Isso, às vezes, é que faz o preço subir. Quando só há um indivíduo que fornece petróleo, ele fornece o preço mais caro que quiser. Nós [IPREC] demonstrámos uma vez, num estudo, que a parte importada do nosso petróleo podemos comprá-la em países que têm os custos mais baixos e não em países que têm os custos mais altos que os nossos. Acredito que a abertura dos mercados vai também trazer mais competição e baixa de preços. Não temos de ter apenas uma empresa a distribuir água em Luanda, não consegue. Tem de haver mais empresas e depois as pessoas poderiam até optar por uma ou por outra. Agora vou fazer uma analogia. Se uma determinada empresa for pertencente a todos os indivíduos que têm cartão de contribuinte, essa empresa é dita pública. Isso é melhor do que dizer que esta empresa é do Estado, cujo sócio é o Tesouro e o instituto público. Esse tipo de empresa tem pouco escrutínio. Se a empresa fosse de todos os detentores de cartão de contribuinte, essa empresa teria o escrutínio de todos os donos. A partir do momento em que um dos donos visse que o administrador agora tem um carro muito caro, comprado com os fundos da empresa, era logo dispedido.
É também um problema de valores...
O problema é que priorizamos um modelo de desenvolvimento da propriedade exclusivista. Se for buscar uma empresa de aviação, uma empresa dos petróleos e uma empresa financeira inglesa, americana ou mesmo brasileira, e for buscar também empresas angolanas destes sectores e colocá-las sobre a mesa, vamos concluir que as angolanas vão ser todas do Estado, representandas por um ou outro organismo público, e as estrangeiras, privadas. E, nas angolanas privadas, veremos que são somente de três ou quatro pessoas. Ora, quando você só tem quatro ricos, você é miserável! Porque, quando se é rico no meio da miséria, se é desgraçado. Você é rico quando pertence a uma comunidade rica. As nações não são ricas porque o Estado é rico. As nações são ricas porque as pessoas são ricas.
A especulação atinge hoje níveis preocupantes, sobretudo porque afecta também os produtos em regime de preços vigiados, muitos dos quais integrantes da cesta básica. Como o IPREC olha para esta situação?
Isso é consequência de algo. Isso não é causa de nada. E nós agora queremos concertar a consequência. Não estamos a concertar a causa. Ou seja, cai água do telhado e não se concerta o telhado, cimenta-se o chão porque está molhado. Ao invés de estarmos a olhar para os preços dos supermercados que estão a subir, devemos perguntar-nos por que razão os preços estão a subir.
Nesse caso, quais são as causas então?
São, precisamente, os custos desses preços. Porque você vai fazer uma cesta básica com uma plataforma de importação. Isso é suícida. Imagine- se, como antigamente, as nações guerreassem-se umas às outras, era só fechar os nossos portos e aeroportos e já estávamos dizimados. Ou seja, desenhou-se mal a cesta básica e habituou-se as pessoas que este é o seu consumo e sem o qual morre-se. Isso é falso! Antigamente, aprendi que o melhor alimento que tem mais proteínas era a folha da mandioqueira. Os pesquisadores europeus chegaram à conclusão de que a kizaca é o melhor alimento da humanidade. Agora, vai ver a nossa cesta básica, a nossa balança comercial, e não se vê nada disso. Só há aí, arroz, massa, leite, enfim. Isso é que é cesta básica? A maior parte da população angolana alimenta-se mesmo disso? Então por que estamos preocupados com isso? Devíamos estar mesmo preocupados com os preços das coisas que podemos produzir. Temos de definir, de facto, o que é a nossa cesta básica. Perguntar às pessoas o que mais comem, o que mais consomem. E, depois disso, devíamos incutir os produtos nacionais na nossa dieta alimentar. Eu trocaria o nome de cesta básica pelo de dieta alimentar. E ficava preocupado com os preços da dieta alimentar dos angolanos. Isso é que é uma preocupação de Estado. Estão preocupados em arranjar dinheiro de um país estrangeiro para ir comprar comida noutro país estrangeiro para dar ao nosso povo e depois dizer que o preço subiu? Não estamos a olhar para as causas. Nós definimos os preços daquilo que temos. O produtor define aquilo que vai vender. Não é o comprador. Há anos que tenho participado em debates. Já sabia que nós, com este tipo de dívida, com essa balança comercial, de preferência pela importação, de preferência para os consultores estrangeiros, não teríamos divisas para aguentar essa pedalada. Portanto, a subida dos preços da cesta básica, que ocorre de forma especulativa, é consequência de uma decisão que alguém aprovou. Já era esperado. Então, se você não tem aqui nenhuma fábrica de leite, se esse produto está a ser importado com recurso à moeda estrangeira e se o preço da moeda estrangeira muda, como é que você quer que o preço do leite se mantenha?
Ainda assim, a vigilância sobre os preços vigiados deveria ser maior?
Vai sair agora a tabela de preços de referência e tudo o que estiver acima dessa tabela de referência tem de ser investigado. Constatando-se que há ali um afastamento substancial do preço em vigor em relação ao preço de referência, calculado pelo IPREC, os órgãos da fiscalização comercial e da polícia económica têm uma palavra a dizer.
A actual lei comercial está adequada à realidade?
O Governo vai discutir, em breve, a proposta de lei do sistema nacional de preços que nunca houve. É uma questão que o IPREC propôs no ano passado, foi analisada no conselho nacional de preços e que está agora na agenda do conselho de ministros. Aí, sim, o IPREC passa também à autoridade reguladora. Ou seja, os seus poderes de sanção vão poder ser exercidos por determinação legal e não por determinação de despachos.
Está previsto algum tipo de limite ao chamado regime de preços livres, de acordo com a legislação existente?
Esse regime vai ser regulado agora. Da forma como está, até parece que estamos num país do G8, mas não é o caso. Aqueles diplomas de 2011, e mais tarde regulado em 2016, trouxeram um regime de preços livres, construídos com base na oferta e na procura. A oferta e a procura livre só são válidas em regime de franca concorrência prevista na Constituição. Então, a partir do momento em que um preço é administrado por qualquer instrumento da sua fórmula de cálculo, o preço já não deveria ser livre. Deveria passar para um outro regime. Só seria livre, se fosse produzido e oferecido em condições de livre e sã concorrência. A partir do momento em que essas condições se verificam, o Estado tem uma palavra a dizer. Na proposta do código penal, há alguma coisa sobre especulação. Essa redacção foi feita antes de estarmos na posição de director-geral do IPREC. A nova direcção do IPREC não se revê nessa redacção, porque achamos que ela não vai ajudar na política de combate à especulação. Essa redacção defende, por exemplo, que só há especulação quando chegar a 100%, e quando chegar a 99% não há especulação. Então todo o mundo coloca o preço a 99%, porque, quando chegar a 100%, é que as autoridades podem agir. Tínhamos de ter uma forma mais clara, mais dinâmica até que ligasse a especulação à realidade de cada mercado, de cada negócio em que os padrões de ganho e de lucro fossem mais ou menos definidos pelo mercado. Tinha de haver uma espécie de normalização do mercado. E tudo o que estivesse acima do normal aconselhado e recomendado internacionalmente comparado poderia ser interpretado como especulação.
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