Gerir bem os autocarros ou substituir os comboios, não! Queremos metro de superfície…
Cinco meses. Quinhentos e catorze mil e duzentos e oitenta segundos. Ou se preferirem, o tempo suficiente para a cólera ter ceifado mais de setecentas vidas em Angola, transformar lares em velórios e hospitais em cenários de guerra. E o nosso Presidente da República? Bem, parece só ter descoberto agora a tragédia que assola o seu próprio povo. As centenas de mortos, os milhares de infetados, o pânico generalizado… Mas se pensa que estas primeiras declarações foram por iniciativa própria, que foi para deixar uma mensagem de solidariedade a todos os que perderam um ente-querido, ou para acalmar os espíritos ainda que com promessas vazias, engana-se rotundamente. As primeiras palavras sobre esta crise, meus caros, foi numa reunião, de iniciativa da Zâmbia, e claramente não foram dirigidas aos angolanos.

Portanto os que esperam por um: “meus queridos angolanos, estamos convosco, vamos superar isto”, um luto oficial, um plano de contingência robusto, um esfrega-nuca nos ministros da saúde, da energia e águas e seus pares, continuem à espera. Talvez um dia chegue esse dia. Por enquanto contentemo-nos com o silêncio que pesa mais do que os caixões que carregam os corpos dos pobres desgraçados que perderam a vida para esta vergonhosa doença. Mas não apenas o chefe de Estado pronunciou as suas primeiras palavras sobre o surto em frente a uma camara para outros representantes africanos, num gesto que simula preocupação, como forneceu informações que contrastam com a realidade. Segundo João Lourenço graças aos "esforços do executivo", os números da cólera estão a reduzir.
Primeiro: Esforços? Que esforços? Permitam-me que a minha veia sarcástica dê um salto mortal triplo de espanto. Desde quando é que cumprir com as suas obrigações se tornou um esforço digno de nota na galeria dos feitos nacionais? Afinal, não é suposto um governo garantir condições básicas de saúde pública para a população? Mais: não era suposto, a esta altura do campeonato, com os avanços da medicina e do saneamento básico, a cólera ser uma relíquia dos livros de história, uma doença de tataravós, e não uma realidade diária em pleno século XXI em Angola? E que números são esses que estão a reduzir? Pelo que vemos no dia a dia, nos boletins diários a cólera parece ter uma vitalidade que contrasta com a transparência dos números apresentados a sua excelência. Porque nos hospitais, nos bairros, nas ruas, a realidade teima em exibir uma matemática mais teimosa e menos conveniente. Mortes continuam, casos surgem, e a cólera, aparentemente alheia aos discursos oficiais, segue o seu curso impiedoso. Assim, temos uma liderança que, após cinco meses de silêncio, escolhe um palco externo para se manifestar e, quando decide fazê-lo… bem é melhor nem dizer o que estou a pensar…
Mas aqui… na terra da cólera o nosso governo, com a sua clarividência, decidiu que o grande problema da capital não é a falta de luz que nos remete à Idade da Pedra, nem as estradas que parecem crateras, tão pouco a água que teima em ser um artigo de luxo. Não, caros concidadãos! O grande desafio de Luanda é, pasmem, a ausência de um metro de superfície. Com os olhos postos num futuro brilhante, e endividado, insistem em cravar-nos um comboio que ninguém pediu. Como se não houvesse mais onde enfiar o dinheiro, a prioridade é um monstro de ferro que, dizem eles, irá revolucionar a mobilidade. A ideia, claro, germinou em gabinetes climatizados, longe do caos que é o dia a dia do luandense. Ninguém foi consultado, ninguém foi ouvido. Afinal, para que serve a opinião do povo quando se tem a visão genial de quem detém o poder? Gerir os autocarros que quase se desmembram em andamento, isto quando não desaparecem misteriosamente e substituir os comboios que parecem ter vindo da primeira versão do Indiana Jones parece ser um feito impossível, mas construir um metro? Ah, isso é para os fortes, para os que não temem o ridículo. E a energia? Detalhe menor, dirão. Aqueles apagões constantes que nos deixam às escuras, com comida a estragar e eletrodomésticos a queimar, são apenas um pequeno "percalço técnico". O metro, com certeza, terá a sua própria usina nuclear movida a boas intenções. O metro de superfície será diferente. Será a "revolução". Talvez importem também alguns técnicos suíços para nos ensinarem a apertar parafusos, ou talvez inventem um novo método de gestão, baseado na intuição e na fé. Preparem-se, luandenses, para - caso saia do papel, porque de inventar projectos que não passam disso mesmo coçam-, mais um elefante branco que, porventura, acabará por ser um museu ao ar livre da nossa capacidade de gastar mal e endividar pior. Aguardemos só já os próximos capítulos desta saga. Talvez, depois do metro, venha a nave espacial. Ou quem sabe, um sistema de teletransporte para resolver de vez o problema do trânsito.
*Crónica do programa ‘Dias Andados’, referente ao dia 6 de Junho de 2025
PATRÕES EMPOBRECIDOS E EXPLORADOS