CRISTINA FARIA, CONSULTORA

“Numa sociedade com tantas dificuldades socioeconómicas, lançar mais produtos de crédito é muito perigoso”

Com mais de três décadas ligada ao sector financeiro em Portugal, Cristina Faria olha para a necessidade de “mudança de mentalidade em Angola”, apontando a importância da literacia financeira tanto para clientes como para empresários, por verificar o “destino errado” a que, muitas vezes, se dá ao crédito bancário. A consultora levanta dúvidas quanto ao crédito ao consumo e defende o surgimento de produtos financeiros “puramente baseados na realidade africana, através uma união de forças dos bancos do continente”. 

“Numa sociedade com tantas dificuldades socioeconómicas, lançar mais  produtos de crédito é muito perigoso”

O sector financeiro em Angola ainda enfrenta vários desafios de crescimento. Os bancos, por exemplo, têm mais apetência em investir em títulos da dívida pública do que em conceder crédito. Como analisa o sector?

Temos de perceber que, para não financiar, há aqui sempre aquele problema da moeda. O mercado financeiro continua limitado por estas questões de câmbio, é simplesmente complicado. Em termos dos serviços da banca, estranhamente, acho que até está muito mais à frente do que eu esperaria que estivesse, em termos de produtos e serviços que oferece, da forma como opera. Em termos, de qualidade de serviços, consigo colocar Angola ao pé de qualquer outro país. O problema da banca em Angola não é esse. Em termos de diversidade de produtos, é difícil.  Sei que há um banco agora a lançar o crédito pessoal. Numa sociedade com tantas dificuldades socioeconómicas, lançar mais produtos de crédito é muito perigoso. Porque vai fazer com que as pessoas, espero bem que isso não aconteça, comecem a querer aceder ao crédito muito mais. Só que, enquanto a mentalidade, a literacia financeira não mudar, vamos ter, nos próximos anos, uma quantidade de gente a incumprir. E isso é um perigo para a banca. Compreendo por que a banca, de alguma maneira, restringe o acesso ao crédito. Porque ainda não há aquela consciência de que o crédito tem de ser pago.


Os cartões de crédito, por exemplo, não são funcionais em sociedades com baixa literacia, como parece ser o caso de Angola? 

Os cartões de crédito são exemplo disso. As pessoas, quando têm cartões de crédito, gastam e esquecem-se que têm de ir pagar. Portanto, para a banca evitar os incobrados, que foi um dos problemas por que Portugal passou, tem de haver primeiro uma consciencialização muito grande do que é o crédito para o público em geral. Portanto, acho que a banca está no seu processo. Angola, como digo, surpreendeu em termos de produtos e serviços, em termos da facilidade de movimentar dinheiro, aqui está muito mais ágil. Por exemplo, em Portugal há algumas situações. Por incrível que pareça, aqui é muito mais fácil pagar com aplicação e cartão do que, por exemplo, em Portugal, até por razões de segurança, para as pessoas não andarem com o dinheiro. Agora, em termos de produtos financeiros, de crédito, que é a área que eu mais domino, é necessário prudência. Claro que, para o sector empresarial, deve haver mais apoio, mais investimento. Agora, para o público, em geral, deve haver prudência, porque, senão, vamos assistir ao descalabro por que Portugal também passou. O facilitismo levou a uma quantidade de famílias completamente penhoradas. E outra área em que tem de se investir, fundamentalmente, é na literacia financeira desde as mais tenras idades e também para as famílias. As pessoas não sabem fazer contas, recebem os seus parcos vencimentos, gastam e a partir de uma altura do mês acabou, que é quase ao fim da primeira semana. 


Gasta-se tudo porque se ganha pouco e há alta de preços…

Eu sei. Mas há hábitos que têm de ser mudados. Principalmente o hábito da compra. Tem de se ensinar as pessoas o que vão comprar. As pessoas em Angola não sabem comprar, são iludidas. Muitas vezes, estão a comprar produtos ou serviços que acham que estão a pagar mais barato e estão a pagar bem mais caro. Infelizmente, a própria fiscalização ainda não é muito rígida nesses aspectos e é muito fácil uma pessoa estar a gastar muito mais, na ilusão de estar a gastar menos. Uma das questões de avaliação é o mercado informal, pelo qual muitas pessoas optam, mas,  se fizerem contas, ao final do ano, vão perceber que no mercado informal não pouparam rigorosamente nada. Se forem pessoas constituídas em empresas, não pouparam. Então, tem de se aprender a fazer contas. Tem de se aprender a lidar com o dinheiro de uma maneira diferente. E eu, enquanto consultora, faço muito desse trabalho, vou ensinando. Sei que o mercado informal é fundamental para a economia e para a sobrevivência de maior parte das famílias, mas atenção, muitas vezes ele está envolvido numa tremenda ilusão. 

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