Duramente crítico em relação a algumas opções do Governo, António Soares sente-se um “masoquista” no mundo empresarial que enfrenta a concorrência dos “mágicos”. Lança farpas à forma como o Estado favorece alguns grupos, liderados por “pessoas influentes e políticos” e não poupa os bancos que só dão crédito por interesses extra-empresariais. O presidente da Sodosa lamenta também a falta de rigor na fiscalização, que faz com que grossista e retalhista disputem o mesmo espaço.
Como caracteriza o momento actual da Distribuição?
Tenho alguma experiência, modéstia à parte, para falar deste mercado porque estamos nele há 20 anos. Nascemos como a primeira empresa no sector do comércio em 1997. É um mercado que está a crescer, fundamentalmente por o país estar em paz, haver livre circulação de pessoas e bens e a massa consumidora ter aumentado.
As infra-estruturas também estão a acompanhar esse aumento?
Sim, há cada vez mais empreendimentos a surgir, com melhores lojas e melhor cadeia logística. É um sector que está a alavancar a produção nacional, apesar da concorrência desleal existente em que alguns grupos, pelas facilidades que têm, vivem e respiram oxigénio puro e outros sobrevivem.
Quais são esses grupos?
Não quero fazer críticas e falar de nomes para não ser mal interpretado, Não é meu carácter fazer este tipo de abordagem, mas vive-se esta realidade no mercado, infelizmente. Isso é como os filhos órfãos e os filhos privilegiados. Já não falo daqueles que só eles é que conseguem fazer determinados negócios, os da ‘primeira divisão’, enquanto os restantes têm de se limitar a fazer negócios na ‘segunda, terceira e quarta divisões’.
Mas não é normal que o Governo trate os diferentes grupos considerando o nível de cada um?
Até entendo que haja e haverá sempre empresas mais privilegiadas do que outras, as tais ditas de ‘primeira divisão’. Mas já não entendo que alguns operadores/empresários, sendo donos ou accionistas de bancos, tenham facilidade em obter financiamentos e, no passado, com o modelo antigo de venda de divisas, tenham controlado as divisas, levando empresas e empresários competentes à falência. Também não entendo que outros, talvez pelo estatuto político, consigam financiamentos milionários junto da banca em detrimento de empresários experientes e competentes que poderiam ajudar muito melhor o país, gerando crescimento económico, mais emprego e mais receita fiscal para o Estado.
Muitos dos que beneficiaram de financiamento se tivessem, de facto, investido teríamos o sector mais robusto?
Sim. Há empresas que conseguem financiamentos de dezenas e centenas de milhões de dólares dos bancos, mas que não têm nem estrutura humana, física, organizacional para serem elegíveis e merecedoras deste nível de financiamentos. Mas recebem esse voto de confiança e o dinheiro para projectos e investimentos que depois nem os vemos. Não geram nem empregos, nem mais receita fiscal. No entanto, há empresas com tudo isso, organização, infra-estruturas, recursos humanos competentes e que já deram provas da sua competência no mercado, que não conseguem nem um financiamento, nem do BDA, um banco que supostamente existe para apoiar e promover o desenvolvimento em Angola.
Não teme que este discurso de haver filhos e enteados seja entendido como de alguém que pouco faz?
Depende do que acha pouco fazer. Se a sociedade acha que pouco faz quem começa do zero, trabalha arduamente para crescer, mal consegue financiamentos da banca, não beneficia de ajudas do Estado e das empresas públicas e quem, ainda por cima, trabalhou para o Estado e não é pago… Se acha que esse é quem pouco faz, então temos de ser todos ladrões esquemáticos e corruptos. Só não vê quem não quer. Acha que não há empresários em Angola com competência e valor para merecerem financiamentos da banca e pagar-lhos? Porquê que estes empresários com competência e valor não são financiados? Porque é que financiaram empresários que não pagam aos bancos o dinheiro que receberam para fazer crescer a economia? Pergunte a alguns destes empresários quantos empregados têm. Quantos destes empregados têm salários pagos e sem atrasos? Que impostos pagam? Há ou não privilegiados? Há ou não uns que são tratados como filhos, e que recebem ajudas do Estado, e outros que pior que enteados, têm de fazer das ‘tripas coração’ para sobreviver? É mais do que sabido que os verdadeiros empreendedores sobreviveram porque são empreendedores e competentes, mas que não chegaram ao sucesso dos que, não sendo empreendedores, tiveram ajudas do sistema. Tem dúvidas? Mais, se tivessem feito com que a banca funcionasse de forma normal e financiasse quem, de facto, tem competência e conhecimento, o país teria gasto menos dinheiro em desperdício e a economia teria crescido mais, com maior taxa de emprego e mais receita distribuída pelo povo. Basta ver que os investimentos dos verdadeiros empreendedores, para o mesmo que os ‘apoiados no sistema’ fazem, é sempre inferior. Um verdadeiro empresário faz por 20 o que os ‘supostos empresários dos sistemas’ fazem por 60.
Há supermercados a nascer todos os anos. Não é sinal de que o sector tem sido bem tratado?
Apesar das dificuldades vividas, há sempre quem sobreviva e quem tenha coragem de investir, acreditando que melhores dias virão.
O crescimento é consensual, mas o mercado continua concentrado em Luanda. Porquê?
É mais ao nível das grandes superfícies, porque requerem grandes investimentos e Luanda oferece mais condições para o escoamento. Nas outras províncias, e sobretudo nas grandes cidades, há investimento a ser feito, mas faltam condições. Primeiro, é preciso que os governantes das províncias atraiam os investidores, o que, na maioria das vezes, não acontece. Fazer qualquer coisa nas províncias é sempre complicado e, quando se trata de obter terrenos, é maior a dificuldade. É preciso que existam boas estradas, energia eléctrica, água canalizada, fiscalização para se evitar a concorrência desleal do mercado informal que, não pagando impostos, é mais competitivo do que quem está no mercado formal a pagar impostos. E que haja consumo. Naturalmente, que a distribuição gera empregos e, com mais empregos, também ajuda a melhorar o nível de vida e, consequentemente, aumenta o consumo. Não havendo isso, as empresas ou não investem ou investem, timidamente e o mínimo possível, pois se não há consumo, não se vende, e se não se vende não se amortiza o investimento empresarial.
Na cadeia da distribuição, qual é o segmento mais atractivo para se investir?
Depende da estratégia de cada empresa. Há os que investem em entrepostos para comprar aos produtores e revender. Há os que abrem lojas de retalho de pequena ou média dimensão. Há os que investem mais no negócio a grosso. Há quem invista nas grandes superfícies. E há ainda quem invista em toda a cadeia.
Há ainda mercado para outros grupos?
Claro. Actualmente, os grandes grupos são poucos. Shoprite, Kero, Maxi e Candando têm mais facilidade de financiamento, mas a existência de mais empresas como o Mercadão Cash & Carry ou o Mangolê Supermercados é salutar para a concorrência, melhora a qualidade dos produtos e serviços e acaba por trazer benefícios ao consumidor.
Aponta-se o transporte e o armazenamento dos produtos como fraquezas do sector face à segurança alimentar. Concorda?
O transporte e o armazenamento de mercadorias obedecem a regras internacionais e os bons operadores sabem muito bem como fazer. Por exemplo, produtos que precisam de estar em temperaturas de menos de 18 graus não podem ser transportados em temperaturas inferiores a 10. Há casos mais graves, como produtos que devem estar a temperaturas de dois ou três graus e são transportados e armazenados a 15 e mais graus. Caso dos lacticínios, que pode ser grave para a saúde. Esta deveria ser uma das preocupações das inspecções do Ministério do Comércio, pois há muitos estabelecimentos que não têm condições de estar abertos. De qualquer forma, qualquer bom operador sabe que ou investe em boas condições de armazenamento e transporte das suas mercadorias, ou acaba tendo imensos prejuízos com mercadorias estragadas.
Os produtos importados continuam a ter maior visibilidade nas prateleiras. Qual é a leitura que se pode fazer?
Os produtores locais ainda enfrentam muitos problemas para garantir uma produção regular, desde saber produzir, ter acesso a sementes e/ou outras matérias-primas, ter uma rede de representantes de marcas de equipamentos que façam uma boa manutenção e assistência técnica. Tudo isso impacta na produção, tornando-nos menos competitivos.
Podemos considerar distribuição devidamente estruturada e organizada?
Há legislação, mas parece-me que não há fiscalização. Vejamos, por exemplo, o caso da venda a retalho e a grosso. Há legislação que distingue o comércio grossista do retalhista e até as categorias diversas, mas vemos operadores a misturar o negócio retalhista com grossista no mesmo espaço comercial, o que não devia ser permitido. Mas tende a melhorar.
Os distribuidores atribuíam os preços altos às supostas inspecções caras que realizavam na Bromangol. No entanto, deixaram de ser obrigados de fazer na Bromangol, mas os preços continuam altos. Qual é a justificação?
A Bromangol era um encargo adicional para as mercadorias que entravam no país, fazendo-as ficar mais caras. Disso ninguém terá dúvidas, acho eu. Quanto aos preços estarem hoje mais altos, têm que ver com dois factores fundamentais: a oferta e a procura e a subida do câmbio entre o kwanza e as duas principais moedas usadas nas transacções comerciais, que são o dólar e o euro. Havendo menor oferta, os preços sobem em qualquer parte do mundo. Não é só em Angola! E, se o câmbio sobe, é preciso mais kwanzas para o importador comprar a mesma mercadoria. Se o importador gastou mais kwanzas para importar a mesma mercadoria, também é óbvio que o consumidor precisará de mais kwanzas para comprar a mesma mercadoria.
Mas concorda que passámos a estar mais vulneráveis em termos de segurança alimentar?
Mas que segurança alimentar a Bromangol garantia? A Bromangol não garantia segurança alimentar alguma. O que a Bromangol garantia era uma boa receita financeira e eventualmente bons lucros. Acha que a Bromangol tinha condições técnicas e físicas para garantir análises credíveis e fiáveis de todas as mercadorias que entravam no país? Não estamos a falar somente das mercadorias que entram por Luanda. Estamos a falar das mercadorias que entram pelos vários portos e aeroportos. Quem faz a inspecção dos produtos que entram hoje são os vários laboratórios licenciados e listados por entidades que representam o Governo, cabendo a cada importador escolher um laboratório com quem queira trabalhar.
Por altura do anúncio da entrada em vigor da taxa de câmbio flutuante, o governador do BNA dizia que não era razão para a subida de preços porque os comerciantes já praticavam preços altos. Concorda?
Não ouvi nem li esta afirmação do governador do BNA, mas seguramente que, se disse isso, estaria a referir-se a outra coisa. A simples desvalorização da moeda nacional, face ao dólar e euro, obriga a que tenhamos que gastar mais kwanzas para pagar o mesmo um dólar ou um euro. Qualquer desvalorização do kwanza face ao dólar e euro afectará sempre os preços que pagamos pelas mercadorias importadas.
O Governo anunciou nomas modalidades de pagamento da dívida pública como, por exemplo, o pagamento sem a actualização da taxa câmbio…
O Governo tem de ter, antes de mais, uma postura de boa-fé e seriedade. Quem trabalha honestamente e de forma cumpridora tem de ser pago. É assim com o trabalhador de uma empresa, tem de ser assim com uma empresa que trabalha de forma cumpridora para outrem. E isso não tem acontecido em Angola. O Governo pode escolher a forma de pagamento que melhor servir a economia e as partes envolvidas, desde que a boa-fé não seja beliscada. O que não acho correcto é que um trabalho seja efectuado numa determinada data, em que as compras/despesas do prestador do serviço tenham custado um equivalente de cem mil dólares, por exemplo, e quando o Governo paga, em kwanzas, o valor dos kwanzas recebidos somente valham 50 mil dólares. Quando o Governo faz isso, está a prejudicar as empresas. Está a enganar. Está a agir de má-fé. Está a matar o motor da economia do País, que são as empresas, que geram empregos, rendimentos e riquezas para as famílias e pagam impostos. É preciso entender que na maioria dos casos, as empresas compraram os insumos em kwanzas, mas equivalentes em dólar ou euro. E quando recebem do cliente Governo, nem conseguem repor o valor pago. Também há casos em que as empresas contraíram dívida com a banca e a banca actualiza a dívida. Quando o cliente Governo paga a empresa, esta nem consegue pagar ao banco o que deve, porque a dívida em kwanzas com a banca foi actualizada para o câmbio em vigor. É justo pedir cem milhões de kwanzas ao banco para trabalhar e prestar serviços/trabalhos que se cobra 140 milhões ao Governo e o Governo paga-lhe quatro ou cinco anos depois? E quando paga, os 140 milhões, o empresário não consegue pagar os cem milhões que deve ao banco porque o banco actualizou a sua dívida para o câmbio actual e a dívida de cem milhões passou para 151 milhões. O banco ainda lhe cobra juros sobre o capital da dívida. Resumindo, perde-se dinheiro. O Governo ou paga a tempo ou então deve pagar com juros de mora e fazer a correcção cambial.
Dá a entender que o Governo/Estado não é tão bom pagador como se diz. Considera acertada a leitura?
Para trabalhar para o Governo ou se é mágico ou se é masoquista. Os mágicos são os que conseguem transformar as suas empresas que mal têm capital para sobreviver (e às vezes só têm meia dúzia de empregados) em empresas inacreditavelmente capazes de dar crédito ao Governo de dezenas ou até centenas de milhões. E depois quando recebem nem reclamam pois é quase tudo lucro e comissões porque são mágicos. Os masoquistas são aqueles que acreditam na virgem e trabalham na esperança de que vão ter sorte e vão receber o pagamento do trabalho efectuado. E lixam-se, porque quando recebem quatro ou cinco anos mais tarde, têm um prejuízo que, em alguns casos, pode levar à falência da empresa. Moral da história: ser honesto não é a melhor prática para quem trabalha para o Governo. O Governo tem que mudar a sua atitude e exigir honestidade e competência aos seus servidores!
Entre as novas modalidades de pagamento também está a possibilidade de uso da dívida para o pagamento créditos malparados que as empresas possam ter em bancos públicos. Parece uma política acertada?
Acho muito bem. Quem deve aos bancos, e não só, tem de pagar. É um princípio básico que deveremos todos defender para melhoria da economia e dos bons valores no nosso país. O Governo, ao fazer isso, está a ajudar os bancos a recuperar o crédito malparado e a evitar que as empresas e empresários fujam ao pagamento das suas dívidas.
Algumas empresas do sector têm acordos de fornecimento com algumas fazendas. É também uma prática da Sodosa?
A Sodosa é uma ‘holding’ que tem empresas a actuar na distribuição e, como tal, não faz este tipo de acordos. Mas as nossas empresas e particularmente a empresa Mercadão Mangolê faz acordos com produtores nacionais e estamos a preparar o arranque de uma unidade de apoio aos agricultores para fazermos a recolha dos produtos no campo e posteriormente calibrarmos e embalarmos para o consumidor.
A aposta em marcas próprias é outra prática que vai ganhando espaço no mercado. Também está nos seus planos?
Claro que sim. Somos os fundadores da empresa Cabire Alimentos que tinha como estratégia as marcas. A marca Cabire chegou a ser considerada por estudos efectuados na altura como uma das seis marcas mais visíveis e conhecidas em Angola, ao lado da Sonangol, Angola Telecom, TAAG, TPA.
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