V E

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Já o dissemos vezes sem conta. O combate à corrupção e a todas as práticas lesivas ao erário tinha de começar de forma efectiva a partir de alguma altura. Mas a seriedade e a legitimidade do processo dependeriam necessariamente da habilidade e da visão da liderança do país em materializar um projecto que fosse o mais justo possível aos olhos da sociedade. Afinal de contas, Angola tem uma história e circunstâncias muito específicas que determinaram e continuam a determinar o saque ao erário. Era obrigatório tê-las em conta. Por isso, por muito complexo que parecesse, João Lourenço tinha apenas duas opções. Ou capacitava e libertava as instituições da justiça de modo a que avançassem de forma autónoma e independente contra tudo e todos, condenando quando houvesse provas e inocentando quando estas não existissem. Ou inventava um pacto com o seu próprio regime que estabelecesse novas regras com benefícios directos e palpáveis para a população. João Lourenço ignorou compreensivelmente a primeira hipótese porque, levada à letra, como chegou a afirmar certa vez o economista e político Justino Pinto de Andrade, todos tinham de se apresentar à esquadra de polícia mais próxima. Seria uma espécie de ‘pequeno grande’ fim do mundo para Angola. Colocada de lado a primeira hipótese, a João Lourenço não restavam alternativas ao segundo caminho, porque a recusa deste implicaria inevitavelmente a opção pela caça às bruxas, que acarretaria custos materiais, políticos e reputacionais incalculáveis. Ao que os factos provam até ao momento, não estávamos errados.

É inevitável. Uma governação longeva e autoritária também se resume necessariamente num cúmulo de contradições insanáveis. Além da arrogância exacerbada, extraída da ilusão do poder ilimitado; excluída a incompetência grave, traduzida na incapacidade de se resolverem os problemas críticos do país, as contradições também são uma marca cristalizada dos poderes intermináveis. Não raras vezes, as incongruências atingem tal ordem que evoluem para a inconsciência, para o disparate e para a tolice.

 

Independentemente do resultado do próximo jogo contra a poderosa Nigéria, depois da vitória face à vizinha Namíbia, Angola está de cabeça erguida na CAN 2023. Ganhe ou perca o próximo jogo com os nigerianos, os jogadores, a equipa técnica e a direcção da Federação Angola de Futebol (FAF) cumpriram o seu papel. Mas este editorial não é apenas sobre futebol, nem sobre a prestação da Selecção Nacional e muito menos ainda sobre a Copa Africana das Nações. Acima disso, é sobre a desorganização, o oportunismo, a falta de vergonha e a bajulação irritante que grassam nas hostes dos (des)governantes deste país.

É um facto oficial que a qualidade da comunicação é um dos focos da governação que, por vontade própria, João Lourenço decidiu relegar para plano nenhum. Numa das suas primeiras conferências de imprensa em Luanda, pouco depois de começar a ‘aquecer’ o cadeirão da presidência, João Lourenço disse alto e bom som que não tinha qualquer obrigação de explicar exonerações e nomeações. Não raras vezes em conflito com a língua, na ocasião, pôs os pés pelas mãos ao justificar a sua sentença. 

Não se trata de julgar o mérito de qualquer causa. Qualquer um que não tenha conhecimento de fundo sobre a verdade dos factos de um processo-crime está sujeito a meros exercícios de especulação. A palavra da Procuradoria Geral da República representa e representará sempre uma versão dos factos. A outra, a palavra de quem é acusado, deveria ter importância equivalente. Dizemos deveria porque, em Angola, efectivamente não tem. Quando o Ministério Público anuncia a abertura de um processo-crime, até à acusação formal, os arguidos acabam praticamente condenados na praça pública. Os processos levam uma eternidade até aos tribunais e, durante essa demora, o público consome apenas a versão do Ministério Público que, com a ajuda de uma imprensa domada, se consolida como verdade incontestável. É, em parte, por essa razão que a força do Ministério Público, em Angola, se confunde com o poder dos tribunais. Não raras vezes até se fica com a impressão de que os tribunais se sujeitam ao Ministério Público. Em parte, é também próprio da natureza de um regime em que a separação de poderes não passa de uma ofensa à inteligência colectiva.