V E

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A propósito da vergonhosa e escandalosa negociata dos 600 autocarros por 323,5 milhões de euros, o jornal português ‘Negócios’ escreveu, esta terça-feira, que “a estrela de Lourenço está a empalidecer”. Temos de partir do princípio de que se trata de uma percepção sincera, desinteressada e de quem nos vê de fora e de longe. Porque só desta forma se percebe o flagrante engano na avaliação da realidade, desculpável apenas pelo presumível conhecimento limitado dos factos e da política angolana. 

A forma como terminaram os 38 anos de governação de José Eduardo dos Santos, em condições normais, deveria servir de aprendizagem para qualquer humano sensato. A lição de fundo é tão simples quanto esta. Nos regimes autocráticos, a construção do homem forte não passa de uma ilusão incitada pela síndrome do poder vitalício. E quem padece dos sintomas do poder eterno, via de regra, alimenta-se de outra paranóia não menos perigosa. Vê-se como uma espécie distinta dos seus pares terráqueos, porque se sente infectado pelo vírus do homem vitalício. Embriagados pelos aplausos indefectíveis e oportunísticos da camarilha, os autocratas chegam ao ponto de se esquecer que não são nem uma coisa nem outra. Nem extraterrestres vitalícios nem eternamente poderosos, salvo quando morrem na cadeira. Mas a segunda afirmação também, muitas vezes, se revela falaciosa. Não faltam registos de autocratas que morreram no poder, mas cujo legado acabou varrido e depositado num caixote de lixo em 24 horas.

 

Luzia Sebastião, juíza jubilada do Tribunal Constitucional e respeitada académica angolana, disse o que de pior se pode afirmar sobre a justiça de qualquer sociedade. A notável penalista não deu rodei-os para declarar, em acto público, que hoje as pessoas têm medo da justiça. Não disse, por certo, rigorosamente nada de novo. O que torna extraordinárias as suas palavras é, entes de mais, o facto de ser ela a protagonista da crítica.

 

Assim como ocorre nas finanças e na economia e em outras áreas, os factos e fenómenos políticos acarretam muitas vezes probabilidade elevada do efeito contágio. No caso específico de África, abundam exemplos dignos de registo nestas quase duas décadas e meia do século 21. O mais significativo de todos, pelo seu simbolismo político, mas sobretudo pelo seu alcance geográfico e revolucionário, é a ‘Primavera Árabe’. Independentemente do mérito ou do descrédito dos resultados, a ‘Primavera Árabe’ produziu transformações que levaram a um certo remanejamento das relações, no contexto geoestratégico mundial. A instabilidade política e a influência nos fluxos migratórios, do Norte África e do Médio Oriente, transportam consequências até hoje incomensuráveis e que perdurarão no tempo e no espaço. Aliás, no auge dos protestos que levaram ao derrube de algumas ditaduras no Grande Magreb, não faltou quem calculasse que o poder em Angola tivesse tremido de um frio rijo e paralisante. É muito provável que esse cálculo fizesse todo o sentido, mas o contrário não deixa de ser verdadeiro. No campo da hipótese, é possível que muitos angolanos também tenham pensado que os sopros dos gritos do Magrebe não chegariam sequer perto das fronteiras angolanas.