E agora pergunto eu...
Seja bem-vindo, querido leitor, a este seu espaço onde perguntar não ofende, no final de uma semana com a actualidade marcada quer a nível da actualidade internacional, quer a nível interno, pela literal indecência tantas vezes inerente à política.
Se à frase “o diabo é sujo” se lhe atribui entre nós muito mérito e verdade, pergunto-me se a política não será capaz de superar o próprio anticristo na capacidade de encardir… O potencial político de metamorfosear seres pensantes em qualquer coisa sem vestígio de vértebra, sem senso nem do ridículo, a capacidade de transformar pessoas, algumas até com reconhecidas capacidades intelectuais, em qualquer coisa absolutamente despida do mais elementar pudor, não têm paralelo. Para cortejar o poder político, os políticos traem, irremediavelmente, princípios básicos, não só princípios pessoais, mas princípios humanos, mentem descaradamente, contradizem-se pornograficamente; pelo poder político, as pessoas fazem as coisas mais terríveis, comprometem a sua integridade, fazem alianças que antecipam maliciosas, comprometem a sua moral. Mas, pior, comprometem as vidas dos outros e, muitas vezes, os destinos de nações inteiras. Se a política não ultrapassar ‘o carcará’ em matéria de conspurcação, será certamente uma das suas ferramentas favoritas.
Na semana que passou ouvimos que “os angolanos não comem autarquias” de pessoa que escreveu livro focado precisamente na importância das autarquias; ouvimos que “o povo confia mais do que nunca no MPLA”, ouvimos que “atingimos a autossustentabilidade na produção do milho” quando as necessidades são de 10 milhões de toneladas e só produzimos cerca de 2,5... Mas e agora pergunto eu, se o líder diz que vai “meter o dinheiro do Estado no bolso se matarem bichos”, se diz que “a fome é relativa” a fome que na semana que passou viu morrer dois miúdos entalados num camião do lixo, o líder que diz que mandou “passear os críticos” e um sem fim de pérolas de semelhante nível de trugungo e falácia, é de esperar que dos seus súbditos saiam declarações coerentes, comprometidas com a verdade ou com o bom senso?
No entanto, não é só entre nós que a política suja. Mohamed Bin Salman, o jovem príncipe saudita que governa a Arábia Saudita com mão de ferro, foi recebido com pompa e circunstância na Casa Branca (aquela casa que levou o nosso presidente a quase nos hipotecar a todos para ir visitar à força toda, como se o destino do país e não o dele dependesse daquela visita). Segundo a inteligência americana, num relatório de 2021, Mohamed Bin Salman teria sido o mandante do assassinato, desmembramento e da distribuição desses membros por malas com destinos diferentes do jornalista Jamal Khashoggi numa embaixada saudita na Turquia. O jornalista queria casar novamente, então foi à embaixada do seu país, de onde tinha fugido por ter feito críticas ao regime de Bin Salman em 2017, consciente do perigo, e só foi à embaixada pelo atestado de divórcio que lhe iria permitir casar com o novo amor. Saiu aos bocados, em malas que foram espalhadas, uma crueldade que certamente teve o condão de passar a mensagem clara da autocensura a quem se quiser aventurar a criticar por aquelas bandas.
É provavelmente a estes exemplos que o nosso presidente se refere ao dizer que entre nós há muita liberdade de imprensa.
Mas porque nos EUA há mesmo liberdade de imprensa, ainda que seja combatida por um ou outro de passagem, essa liberdade está embebida nas estruturas sociais, o visitante e o anfitrião foram questionados por uma jornalista intrépida corajosa, que perguntou ao presidente americano se achava apropriados os negócios da sua família com o governo da Arábia Saudita e ao visitante se achava apropriada a sua presença nos mesmos EUA cujos serviços de inteligência o identificam como assassino. O momento: olhem-se no espelho e assumam o que são, o momento de desmascarar a imundice e hipocrisia da política que grassa por detrás dos sorrisos e apertos de mão, das farpelas douradas que encobrem a hipoteca dos princípios morais mais básicos, foi a principal headline do encontro.
A Casa Branca, símbolo da liberdade e dos valores americanos a estender o tapete vermelho a quem a inteligência diz que mandou matar e desmembrar um jornalista que o criticou... é claro que tendo em conta que Benjamim Netanyahu, que tem mandato internacional por crimes de guerra e contra a humanidade, ainda há um mês lá foi, a visita do saudita não choca.
Do lado de cá do Atlântico, a petrolífera francesa Total está a enfrentar um processo inédito por causa de compromissos políticos que podem comprometer os mais básicos valores de decência e que permitiram que a segurança da planta de exploração de gás, que em conjunto com o investimento da Exxon Mobil se tornaria conhecido como o maior investimento privado em África desde sempre - 50 mil milhões de dólares - permitiu que uma unidade de segurança contratada ao governo, matasse um número indeterminado de pessoas em 2021 depois dos ataques de insurgência na região.
Um grupo de deslocados foi pedir guarida junto do projecto da Total que naturalmente estaria bem guardado, e foi recebido por uma unidade de tropas moçambicanas ao serviço da Total que acusou o grupo de serem insurgentes, separou os homens das mulheres e crianças e enfiou os homens, entre 150 e 250 homens, à porrada e coronhada em dois contentores da planta onde os detiveram por três meses, onde os espancaram, sufocaram e torturam até matarem a maioria. Só sobreviveram 26.
A aliança da companhia com o instinto e a displicência assassina das tropas e das autoridades moçambicanas - que já deram muitos exemplos de não se importarem com quantos civis matam pelo poder como se assistiu depois das eleições - comprometeu até ao tutano a companhia francesa, a sua presença em Moçambique e a imagem do projecto que já estava estilhaçada pelo ataque a Palma que matou cerca de 1500 pessoas e que foi notícia em todo o mundo (porque pelo menos 10 eram trabalhadores estrangeiros da planta que não saíram a tempo quando os insurgentes atacaram).
A descrição desses três meses de como foram matando as pessoas, de como foram aumentando o grau de desumanidade, violência, sevícias, lembrou-me a descrição que ouvi certa vez do gigante do jornalismo angolano, William Tonet, de alguns dos horrores que testemunhou no 27 de Maio.
O silêncio que as autoridades moçambicanas impuseram naquela região para encobrir as atrocidades que foram cometidas é mais prova de quão corrompida foi a intenção da Total na região. A accão em tribunal contra a petrolífera francesa movida pelo Centro Europeu para os Direitos Humanos e Constitucionais, depois de ser publicado um report aturado em setembro do ano passado sobre esse segundo massacre às mãos de tropas moçambicanas pagas pela Total, lembra que “as companhias e os seus executivos não são actores neutros quando operam em zonas de conflito e se forem complacentes ou permitirem crimes em seu nome devem ser responsabilizadas.” Um recado a reter. A ver vamos, com esperança sempre querido leitor, marcamos aqui encontro aqui e até à próxima, na sua Rádio Essencial.
*Crónica do programa ‘Dias Andados’, referente ao dia 21 de Novembro de 2025





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