Coronavírus: doença da autocracia chinesa

19 Feb. 2020 Opinião

O surto de um novo coronavírus que começou na cidade chinesa de Wuhan já infectou mais de quatro mil pessoas - principalmente na China, mas também em vários outros países, da Tailândia à França e aos EUA. Dada a história da China, como os surtos de doenças - incluindo síndrome respiratória aguda grave (SARS) e peste suína africana - e o aparente conhecimento das autoridades sobre a necessidade de fortalecer a capacidade de lidar com ‘grandes riscos’, como isso pode acontecer?

Não deveria surpreender que a história se repita na China. Para manter a autoridade, o Partido Comunista da China (PCC) deve manter o público convencido de que tudo está conforme o planeado. Isso significa realizar encobrimentos sistémicos de escândalos e deficiências que se podem reflectir mal na liderança do PCC, em vez de fazer o que é necessário para responder.

Esse sigilo patológico prejudica a capacidade das autoridades de responder rapidamente às epidemias. A epidemia de SARS de 2002-2003 poderia ter sido contida muito antes, se as autoridades chinesas, incluindo o ministro da Saúde, não tivessem escondido deliberadamente as informações do público. Depois das medidas apropriadas, de controlo e prevenção de doenças, terem sido implementadas, a SARS foi contida em meses.

No entanto, a China parece não ter aprendido a lição. Embora existam diferenças importantes entre a epidemia de coronavírus de hoje e o surto de SARS - incluindo uma capacidade tecnológica muito maior para monitorar doenças - o PCC tem o hábito de encobrir. Para ser claro, à primeira vista, o governo da China parece estar mais próximo do último surto. Embora o primeiro caso tenha sido relatado a 8 de Dezembro, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan não emitiu um aviso oficial até várias semanas depois. E, desde então, as autoridades de Wuhan subestimaram a gravidade da doença e tentaram deliberadamente travar a cobertura noticiosa.

Esse aviso sustentava que não havia evidências de que a nova doença pudesse ser transmitida entre humanos e alegava que nenhum profissional de saúde havia sido infectado. A comissão repetiu essas alegações a 5 de Janeiro, embora 59 casos já tivessem sido confirmados até então. Mesmo depois da primeira morte ter sido relatada a 11 de Janeiro, a comissão insistiu que não havia evidências de que pudesse ser transmitida entre humanos ou que os profissionais de saúde poderiam ser afectados. Durante esse período crítico, houve pouca cobertura noticiosa do surto. Os censores chineses trabalharam diligentemente para remover as referências ao surto da esfera pública, o que é muito mais fácil hoje do que era durante a epidemia de SARS, graças ao controlo extremamente rígido do governo sobre a Internet, a media e a sociedade. A polícia perseguiu pessoas, alegando que estavam a “espalhar boatos” sobre a doença.

De acordo com um estudo, as referências ao surto no WeChat - um aplicativo popular de mensagens, media social e pagamento móvel chinês - ocorreram entre 30 de Dezembro e 4 de Janeiro, numa altura em que a comissão municipal de saúde de Wuhan reconheceu o surto. Mas as menções da doença dispararam posteriormente.

As referências ao novo coronavírus aumentaram ligeiramente a 11 de Janeiro, quando foi relatada a primeira morte, mas depois desapareceram e, de novo, rapidamente. Foi somente depois de 20 de Janeiro - após relatos de 136 novos casos em Wuhan, bem como em Beijing e Guangdong - que o governo retrocedeu nesses esforços de fazer censura. As menções de coronavírus explodiram.

Mais uma vez, as tentativas do governo chinês de proteger a sua imagem mostraram-se caras, porque minaram os esforços iniciais de contenção. Desde então, as autoridades mudaram de rumo e a estratégia agora parece mostrar quão seriamente o governo está a encarar a doença impondo medidas drásticas: uma proibição geral de viagens a Wuhan e cidades vizinhas na província de Hubei, que juntas têm uma população de 35 milhões de habitantes. 

Mas não está claro se e até que ponto essas etapas são necessárias ou eficazes. O que está claro é que o manuseio inicial da China do surto de coronavírus significa que milhares serão infectados, centenas poderão morrer e a economia, já enfraquecida pelas dívidas e pela guerra comercial, sofrerá outro golpe. Mas talvez a parte mais trágica dessa história seja que há poucas razões para esperar que a próxima vez seja diferente. 

A sobrevivência do Estado de partido único depende do sigilo, supressão da media e das restrições às liberdades civis. Mesmo que o presidente chinês Xi Jinping exija que o governo aumente a sua capacidade de lidar com ‘grandes riscos’, a China vai continuar a prejudicar a sua própria segurança - e a do mundo - a fim de reforçar a autoridade do PCC. 

Quando os líderes da China finalmente declararem vitória contra o actual surto, sem dúvida, estarão convencidos que, de novo, estão a dar crédito à liderança do PCC. Mas a verdade é que é exactamente o oposto: o partido é novamente responsável por esta calamidade. 

Professor de Economia no Claremont McKenna College e membro sénior não residente do German Marshall Fund dos EUA