Um roteiro africano para Biden
Nas últimas décadas, a relação entre os EUA e África desiludiu ambos os lados. Os presidentes republicanos e democratas dos EUA trataram o continente com uma negligência afável, ou até mesmo com total desprezo, e, como esperado, os EUA ficaram para trás em relação à China, Índia e França em termos de comércio geral com África.
Embora Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, tenha lançado a modesta iniciativa 'Power Africa', as suas quatro viagens a África são principalmente lembradas pelas conferências sobre “boa governação”. E isso vindo de um governo que fez vista grossa aos autocratas em países que acolhiam bases militares dos EUA e, em seguida, uniu forças com o presidente francês Nicolas Sarkozy numa intervenção militar mal orientada e dispendiosa na Líbia. As consequências para o Sahel e além foram catastróficas.
Depois veio Donald Trump, que nem sequer considerava África como um destino que valesse a pena visitar. Os seus insultos racistas sobre o continente (“países de merda”) confirmaram esse desdém e não serão esquecidos ou perdoados tão cedo. É verdade que a administração de Trump reconheceu que a estabilidade, prosperidade, independência e segurança duradouras em África são do interesse nacional dos EUA. Mas as suas promessas de aumentar os laços de trocas e comerciais e de combater o terrorismo islâmico não se concretizaram. Em vez disso, a administração transformou a política comercial numa arma ao suspender o estatuto de isenção de impostos para algumas exportações africanas sob a Lei do Crescimento e Oportunidades para África dos EUA, em retaliação contra o Ruanda pelos esforços para proteger a indústria do vestuário.
Agora, a chegada do governo do presidente Joe Biden oferece uma oportunidade para reacender o relacionamento entre os EUA e África. Normalmente, articular uma estratégia para África não é uma prioridade máxima para os novos presidentes norte-americanos. Joe Biden assumiu o cargo numa altura de temores globais intensificados em relação à covid-19, incerteza económica contínua e profunda divisão geopolítica. E, por sua vez, África está a sofrer o pior desempenho económico de uma geração, preparando o cenário para uma miséria persistente, agitação social e conflitos violentos no futuro.
No entanto, a profundidade destes problemas torna este o momento perfeito para iniciativas ousadas. Indubitavelmente, África – uma região dinâmica com grande resiliência, grandes aspirações, recursos abundantes, criatividade sem limites e muitas ideias – não deveria depender de nenhuma potência estrangeira para o futuro político e económico. O rastilho da prosperidade e paz tem de ser aceso no interior do continente. Mas, como o comércio é o principal motor de crescimento e desenvolvimento socioeconómico para as economias africanas (em que todas são pequenas e abertas), e porque os EUA continuam a ser o actor económico dominante do mundo, os africanos esperam que o governo de Biden proponha um novo rumo.
Para esse efeito, os EUA podem colher grandes benefícios políticos e económicos agindo de forma simbólica, estratégica e operacional. Para começar, o governo de Biden pode definir o tom para uma nova parceria com várias propostas gratuitas. Declarações oficiais a reconhecer a enorme contribuição de África para a civilização humana e a necessidade urgente de recuperar um papel proeminente nos assuntos mundiais transmitiriam respeito e ajudariam a mudar as percepções. E o compromisso dos EUA de apoiar a adesão permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas para a União Africana e de co-financiar missões de manutenção da paz na região do Sahel e na Bacia do Lago Chade fortaleceria esse tipo de medidas.
A nível estratégico, os EUA devem oferecer uma nova visão para a sua abordagem em relação ao continente, mudando o foco nos interesses geopolíticos e em fazer frente à China, que levou a resultados desastrosos durante a Guerra Fria, para uma verdadeira parceria baseada em relações comerciais mutuamente benéficas e apresentação de resultados visíveis. Isso significa ir além dos parcos projectos bilaterais que visam apenas firmar uma bandeira norte-americana. Por exemplo, os EUA devem assumir um papel de liderança para garantir que as vacinas contra a covid-19 cheguem rapidamente a África. Isso seria consistente com as prioridades de Biden e enviaria um forte sinal de que a era da negligência afável acabou.
Durante muito tempo, os EUA contentavam-se em apoiar qualquer ditador africano que oferecesse cooperação na luta contra o terrorismo (ou acesso seguro à extracção mineral), sob o argumento de que isso era necessário para evitar o caos. Mas essa política falhou: os EUA acabaram por ficar com ditadores e caos ao mesmo tempo. Sem cair na armadilha arrogante de tentar obter uma mudança de regime, o governo Biden deveria tratar os maus líderes africanos da mesma forma que os EUA trataram os autocratas comunistas na Europa do Leste. A clareza moral é essencial.
Por fim, a nível operacional, o pragmatismo renovado em relação a África poderia gerar vitórias rápidas e valiosas. A primeira tarefa deveria ser despolitizar as políticas macroeconómicas promovidas por instituições internacionais e bancos de desenvolvimento onde os EUA dominam. As políticas monetárias africanas devem estar receptivas a debates intelectuais e políticos internos, tal como são noutras partes do mundo. Da mesma forma, as estratégias africanas de política fiscal, financiamento e gestão da dívida devem reflectir o conhecimento actual e não as velhas ortodoxias de contabilidade estática.
Com estas considerações em mente, um primeiro objectivo ousado para o governo Biden seria estabelecer uma data-limite para acabar com a ajuda externa dos EUA a África, com o objectivo de substituir os actuais instrumentos politizados de ajuda bilateral por novos programas de financiamento e facilitação do comércio.
Como segundo objectivo, os EUA poderiam melhorar a posição em África, reconhecendo que os seus subsídios agrícolas com efeitos de distorção afectam negativamente os preços globais de muitos produtos, reduzindo assim as taxas de crescimento em África. Ao reformar o próprio financiamento agrícola, os EUA poderiam desencadear mudanças políticas positivas semelhantes nos países da OCDE, bem como encorajar a industrialização africana – o que beneficiaria tanto os EUA como África.
Terceiro: o envolvimento dos EUA com a China, a União Europeia, o Japão, a Índia, além de financiadores públicos e privados, ajudaria a diminuir o risco de investimentos em África e facilitaria o financiamento de infra-estruturas produtivas. Visando sectores onde os países africanos têm uma vantagem comparativa (agro-indústria, produção industrial leve e sectores culturais e criativos) e apoiando a construção de zonas económicas especiais e parques industriais, os EUA podem ajudar a estimular a procura global, gerar crescimento e criar empregos em África e nas economias avançadas de forma semelhante.
A melhor resposta à exportação de Institutos Confúcio, por parte da China, não é a retórica sinofóbica, mas sim acções concretas para promover a aprendizagem e a acumulação de conhecimento em África.
A nova administração dos EUA não pode confiar apenas no simbolismo. Do ponto de vista estratégico e também operacional, uma nova relação com África requer um quadro de cooperação que incorpore os princípios da dignidade e do respeito mútuo.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...