Com cerca de 40 anos de experiência no sector da aviação, Hélder Preza, antigo vice-ministro dos Transportes, considera “uma asneira” a forma e argumentos do programa de reabilitação dos aeroportos provinciais, por ‘engolir vários milhões de dólares, sem que as infra-estruturas impulsionem desenvolvimento local, como o aeroporto de N’dalatando, que cerca de 10 anos após a reabilitação nunca recebeu uma única aeronave. O ex-director do INAVIC e da ENANA explica ainda as razões da extinção da Autoridade de Transportes de Luanda, instituição que também dirigiu.
Tem acompanhado a reabilitação dos aeroportos?
Sim e sinto que, tal como noutras áreas de actividade da economia do país, continuamos a gastar os nossos recursos, sem a sabedoria e visão que deveríamos ter. Os factos provam muito mais do que aquilo que digo. Reabilitamos o aeroporto de N’dalatando (Kwanza-Norte) e não voa para lá nenhum avião. Reabilitámos o aeroporto do Luau (Moxico), até chamámos de internacional, mas de internacional não tem nada.Não há tráfego sequer para o Luau. Sinto, com dor e mágoa, que nós continuamos a persistir e a cometer as mesmas asneiras. Asneiras essas que se consubstanciam em fazer investimentos sem que os mesmos sejam precedidos de algum estudo de viabilidade.
Não há ganhos sociais, como argumenta o Governo?
Às vezes, o argumento de que certo investimentos traz benefícios sociais... até pode trazer, mas estes argumentos justificam muito maus investimentos. O que está a acontecer em Angola, principalmente, na área de infra-estruturas, em geral, é que, sistematicamente, fazemos os investimentos, depois cada um de nós olha para o que deverá fazer. Sinto que, no domínio dos aeroportos, continuamos a fazer muitas asneiras.
Se ainda fosse o presidente do Conselho de Administração (PCA) da , teria evitado estas obras?
Não sei se o PCA da ENANA tem como evitar, porque grande parte desses projectos é extra ENANA. A ENANA é uma empresa que só gere o aeroporto. Não tem conhecimento profundo e detalhado de como é que se fazem esses investimentos, mas quase todos são feitos quer pelo Ministérios da Construção, quer por órgãos superiores, sendo que a ENANA, às vezes, quando se dá conta, é obrigada a assumir a responsabilidade da gestão de uma infra-estrutura para qual não foi tida nem achada no processo de construção. Grande parte das vezes é assim que acontece. Por outro lado, é preciso entendermos que este conceito que, cada vez mais, se torna moderno, de que é preciso ouvir a sociedade civil, é necessário ouvir as forças vivas da nação, não pode ser um dogma que fica em palavras. Se decidirmos que temos de fazer um aeroporto em Camabatela (Kwanza-Norte) é preciso que quem decide vá a Camabatela e oiça as pessoas que lá estão, porque pode aparecer uma pessoa de bom senso e perguntar para que é que vão construir um aeroporto? Para transportar quem? Quantos passageiros vão entrar em Camabatela, por dia, semana ou por mês? Então, ao invés de construir um aeroporto, não é melhor construir um centro de abastecimento de água para a vila? Com essas intervenções de pessoas de bom senso, é sempre mais provável que se tomem as decisões correctas em relação a tudo.
Por que razão esses aeroportos não são rentáveis?
Simplesmente porque não tem tráfego. A TAAG já voou para o Uíge, Malanje e para outros destinos domésticos. Mas deixou de voar, porque os aviões iam vazios. A TAAG não está para perder dinheiro. A TAAG faz um voo para Malanje, mas só leva 15 passageiros, dois dias depois faz outro, e só leva dez, na semana seguinte vai ter de pensar, porque as tarifas cobradas por esses dez ou 15 passageiros não dá para pagar o combustível do avião.
Há províncias que não têm actividade económica dinâmica e estão muito distantes da capital Luanda. Aí, justificam-se os investimentos nos aeroportos?
É verdade. Isso é um problema das chamadas zonas isoladas, das chamadas zonas de difícil acesso. Eu não estou em condições de dizer se se justifica ou não. Agora, a justificação tinha de ser suportada com argumentos económicos e sociais. Não podem ser só argumentos sociais. O argumento social não pode justificar que a nação, como um todo, gaste milhões num aeroporto, como no Bié, e depois o aeroporto fica às moscas. Há 30 a 40 trabalhadores que tem de estar aí para manter o aeroporto. Quando há voo, é o governador que vai no avião privado. Alguém tem de pagar os salários das pessoas que aí trabalham. Isto são custos que saem dos bolsos de todos nós, enquanto cidadãos, que poderiam ser canalizados para outras áreas.
Enquanto director da ENANA, qual foi a sua principal preocupação?
Na altura, quando fui director da ENANA, o quadro era muito sombrio. No fim dos anos 1980, as dificuldades eram todas. Basta dizer que, como director-geral, cheguei ao ponto de utilizar o meu carro para transportar trabalhadores, que trabalhavam por turno, porque não havia alternativa. Naquela altura, dólares? Nem pensar. Foram momentos ímpares. Alguns dos camaradas ainda se encontram aí, quase todos já reformados, mas colocámos a nossa pedra para construir a nação que hoje temos.
E como é que encontra o Instituto Nacional de Aviação Civil (INAVIC)?
O INAVIC é uma instituição que têm a obrigação de assegurar que todos os operadores que estejam no mercado de transportes aéreos, operadores ou prestadores de serviços, prestem estes serviços de acordo com as normas internacionalmente aceites. Por causa das dificuldades, por que passámos, desde a Independência, o INAVIC viu-se desprovido de quadros tecnicamente capazes para assumir cabalmente o seu papel. E, como tal, não foi capaz de assegurar que os operadores cumprissem com as normas estabelecidas. Isto levou a que os operadores, por seu turno, baixassem a guarda. Portanto, não observam as normas. Depois ficou um círculo vicioso. Muitos operadores foram permitidos que entrassem no mercado sem um mínimo de condição para o serem.
Que decisão mais importante tomou quando foi director do INAVIC?
Não tenho o hábito de enaltecer efeitos pessoais. Mas, quando cheguei ao INAVIC, encontrei um quadro que tratei de fazer algumas alterações. Uma delas foi a proibição da operação, em Angola, dos aviões Antonov 12, 26 e 30. Portanto, conseguimos convencer o Governo de que estes aviões eram velhos e tinham um monte de problemas. Se nos lembrarmos da ‘célebre altura dos Antonov’, em que havia dezenas de operadores em Angola a operarem aviões velhos e que não tinham condições técnicas, víamos vários acidentes. Até que, a partir de certa altura, se pôs ordem nos círculos.
Os donos dos Antonov eram generais?
Eram todos. Alguns deles estrebucharam. Mas conseguimos impedir que esses aviões operassem. O resultado foi que, desde que esses aviões deixaram de operar, a quantidade de acidentes que aconteciam em Angola baixou vertiginosamente. Depois disso, accionámos um programa para a melhoria de segurança operacional e começámos a apertar operadores. Cancelámos licenças de alguns operadores, obrigámos operadores a refazer todos os seus procedimentos. Mas, nós, o INAVIC, também enfrentávamos problemas semelhantes aos dos operadores. Não tínhamos pessoas para fazer isso. Era preciso pessoas formadas, tivemos de à certa altura, contratar estrangeiros para nos auxiliarem nesse processo e foi-se fazendo o caminho.
Quais são os procedimentos de seguranças que as companhias devem cumprir?
Uma companhia aérea tem um conjunto de procedimentos que tem de cumprir. Em primeiro lugar, é com o avião, em segundo com o piloto e, em terceiro, com operações do avião. Se o fabricante do avião diz, por exemplo, que este avião deve trocar os pneus depois de 30 aterragens, isto está estabelecido no manual do avião,o operador tem de ter mecanismo para controlar o número de aterragens do avião. O que acontece, às vezes, é que o operador não faz este controlo. É obrigação do INAVIC fazer com que o operador cumpra rigorosamente este procedimento. Esse é apenas um procedimento, que mas existem milhares. A norma diz que um piloto, a cada seis meses, tem de fazer um ‘check up’ de saúde. Esse piloto só tem a licença actualizada se fizer esse ‘check up’ de saúde.
Pode fazer o ‘check up’ em qualquer centro de saúde?
Não pode fazer isso no ‘centro de saúde da esquina’. Existem centros especializados par fazer esses check. É obrigação da companhia assegurar que o piloto faça o ‘check up’, de forma regular. Estes são apenas dois exemplos de procedimento de segurança. Tem havido muitas falhas e em todos os operadores. Às vezes, as falhas são mínimas, mas na aviação, não deve haver margem para erros. Se a norma diz que o piloto quando está sentado no avião, o manual do avião tem de estar do lado da mão esquerda, portanto, não pode estar do lado da mão direita. Se trocar o lugar do manual é uma falha, mínima, mas se o manual não estiver lá, no avião, já é uma falha grave e o avião fica impedido de voar. A fraseologia da aviação, por exemplo, não permite que, na comunicação entre o piloto e o controlador de tráfego, se utilizem as palavras sim e não. Devem ser usadas as palavras ‘positivo’ e ‘negativo’. Angola nunca teve um sistema de controlo radar. Eu sei que, há alguns anos, houve um projecto para instalar o sistema radar, no terminal de Luanda, mas não chegou a ser implementado. Isto foi em 2011.
Angola não tem sistema de radar.Que consequência advém da falta de sistema de radar?
O radar torna-se imprescindível quando a intensidade do tráfego é muito grande. Ora, Luanda não tem um tráfego muito grande. Evidentemente que o controlo de radar melhoraria substancialmente o controlo do tráfego aéreo, as separações entre as aeronaves, inclusive os próprios procedimentos poderiam ser melhorados. Mas a sua ausência não me parece que seja um caso de vida ou morte. Em Angola, o controlo é feito via rádio. O piloto reporta a sua posição, em termos de altitude, longitude e velocidade e o controlador de tráfego aéreo encarrega-se em manter as aeronaves separadas, sem ver os aviões. Se tivesse o sistema de radar, ele visualizaria a posição das aeronaves, e seria mais eficaz o controlo do tráfego aéreo.
O piloto é dependente do controlador de tráfego aéreo?
O piloto é altamente dependente do sistema de controlo. No céu não há estrada. O piloto sabe onde está, qual é a sua altitude, longitude, velocidade e rota, mas não sabe o que está a sua volta. Os aviões têm um sistema para evitar colisão. Se um avião estiver a aproximar-se de um obstáculo, o sistema detecta e alerta que há alguma coisa à frente, mas o piloto não sabe exactamente o que é, embora receba o sinal de aproximação a um obstáculo. Pode ser que seja uma montanha. Então o controlador de tráfego é que dá as instruções ao piloto para evitar colisões.
A instalação do sistema de controlo por radar é muito caro?
Não tenho ideia. Mas, há alguns anos, eu ainda estava no activo. Pedimos a Organização da Aviação Civil Internacional que viesse fazer um estudo sobre a instalação de um sistema de radar. Naquela altura, ficava em cerca de sete milhões de dólares, há dez anos. Hoje não deve ficar muito mais caros que isso.
“O bolo que dão a bordo é o mais caro da SADC"
Que leitura faz ao negócio da aviação doméstica em Angola? É um negócio que exige muito investimento, mas o retorno é muito baixo. Na aviação, quem ganha dinheiro ganha um bocadinho. O volume de passageiro é reduzido, porque a maior parte dos angolanos não tem condições económicas para viajar de avião. Um bilhete de avião de Luanda para Cabinda custa à volta de 30 mil kwanzas, é muito dinheiro, porque há pessoas que não ganham isso durante um mês. É o dobro do salário mínimo. Ora, não tendo grande volume de passageiros, quer dizer que os poucos passageiros que viajam vão ter de suportar os custos operacionais das companhias. Além dos chamados ‘custo Angola’. É muito difícil que o mercado angolano possa gerar lucros.
Então não há bom ambiente de negócio?
Angola é um país caro. O combustível de avião em Angola é mais caro que na Namíbia, as taxas aeroportuárias são caras, o catering, aquele pãozinho ou o bolo que dão a bordo do avião, é caro, é mais caro que em qualquer país da região SADC. Isto para dizer que, sendo os custos altos, é natural que as tarifas também sejam caras. E sendo as tarifas caras, o acesso é mais reduzido e, portanto, só com uma ‘grande ginástica’ é que um operador de transporte aéreo ganha dinheiro em Angola. Aliás, a TAAG perde dinheiro todos os anos e em quase todas as rotas. Ainda há pouco, ouvimos o novo PCA da TAAG a dizer que reduziu as perdas, mas ainda não está no lucro, continua na perda. É perda menor, mas continua a ser perda.
Que mediadas pensa que deveriam ser tomadas?
Se falarmos essencialmente no mercado internacional, enquanto, Angola continuar um país fechado, onde qualquer cidadão estrangeiro para entrar, precisa de ter um visto pedido com 15 ou mais dias de antecedência, apresentar não sei quantos documentos, às vezes pagar quase metade do preço da passagem, será muito difícil. Uma das coisas que tem de ser resolvida já é o problema dos vistos. Não queremos dizer que as autoridades que tem de zelar pelo serviço de migração não exerçam o seu papel. Mas, têm de exercer, olhando para a dinâmica do mundo. Actualmente, os namibianos parecem ser os únicos cidadãos, no mundo, que estão isentos de vistos para entrar em Angola, no entanto, não se vê ai uma onda de namibianos ilegais. Se abríssemos as portas, seria uma forma de impulsionarmos o tráfego. A rentabilidade das companhias aéreas só acontece quando o tráfego, tanto de passageiro como de carga, existe. Isso afecta não só os transportes aéreos como outras indústrias, como a do turismo. Esta é uma das medidas que têm de ser tomadas, flexibilizar o visto de entrada em Angola.
“A Autoridade de Transportes não tinha autoridade nenhuma”
A Direcção Provincial dos Transportes de Luanda seria extinta, com a criação da Autoridade de Transportes de Luanda. Mas a Autoridade é que foi extinta... A Autoridade de Transportes de Luanda foi mesmo encarregue de gerir todo o sistema de transporte da cidade, que envolvia essencialmente os transportes públicos ferroviários e rodoviários e o sistema de tráfego, parqueamento, sinalização e semáforos. A verdade é que era a direcção provincial dos transportes que devia ser extinta, mas isto não aconteceu, por razões que eu também desconheço. Durante muito tempo, estas duas entidades coexistiram. Ninguém sabia bem onde começava e terminava a responsabilidade da outra, até que, numa certa altura, eu fiz uma proposta ao governo de Luanda que se extinguisse a Autoridade de Transportes de Luanda. Porque aquele quadro era desagradável para todos, provocando inclusive querelas pessoais desnecessárias. Até porque a Autoridade não tinha autoridade nenhuma.
Durante a existência da Autoridade, que problemas detectou?
Nós, em Angola, temos muitas dificuldades em diferenciar o que é causa e o que é consequência. Isto é que faz com que sistematicamente tendamos a resolver os problemas atacando as consequências. O problema da mobilidade em Luanda não é exclusivo nosso, outros países já viveram estes problemas. O problema é que a nossa estrutura viária (ruas, avenidas e estradas) não tem capacidade para suportar o volume de carros que existem. Então, perante este problema, a solução quase sistemática daqueles que tentam atacar o problema é de alargar a estrada. Só que esquecem que, quando a alargamento da estrada estiver pronto, já não serão quatro mil carros, serão oito mil. Temos de encontrar fórmulas de reduzir o tráfego de circulação de carros.
Como se faz isso?
No mundo, existem soluções desde as mais extremas, de um lado, e mais extrema, de outro. Por exemplo, Singapura não tem como se expandir, não há como alargar as estradas. Quando chegaram à conclusão de que o número de viatura era muito grande, decidiram pôr especialistas a estudar, que concluíram que a cidade só tinha capacidade de ter X viaturas. Por exemplo, 60 mil viaturas, então as autoridades só venderam 60 mil matrículas em leilão. Depois disso já não podia entrar carros. Quem quisesse carro, que comprasse a quem já tivesse. Obviamente que fizeram uma aposta séria nos transportes públicos. Vão dizer: “é possível fazer isso em Angola”? É possível que não seja. Mas, enquanto em Luanda não pararmos para montar um sistema de transporte público, decente, eficaz e a preço justo, que possa levar qualquer cidadão, desde o Presidente da República ao mais humilde cidadão, de uma ponta a outra, o engarrafamento não vai acabar. Agora montar um sistema desse é difícil. Requer dinheiro, mas requer, sobretudo, coragem.
PERFIL
Natural do Huambo, Hélder Preza, licenciou-se em engenharia electroténica, pela Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto e fez mestrado em gestão de empresas, em Canadá, pela Universidade Concordia. Foi admitido na ENANA, como técnico básico, a 14 de Agosto de 1976, na altura designada Serviço de Aeronáutica Civil, onde fez carreira, assumindo várias responsabilidade, até chegar a director-geral. Foi também director do INAVIC, vice-ministro dos transportes e representante de Angola na Organização de Aviação Civil Internacional, em Canadá. O último cargo público que exerceu foi o de presidente da Autoridade dos Transportes de Luanda, entre 2011 a 2013.
“A Sonangol competia só com as empresas estrangeiras. Agora está a competir...