Editorial Editorial

Editorial Editorial

10 Jul. 2018

NOVO DISCURSO

O primeiro aviso claro foi na entrevista que concedeu à ‘Euronews’. No discurso da última semana, em Estrasburgo, no Parlamento Europeu, saiu a sentença. João Lourenço reescreveu, em definitivo, as fronteiras geográficas de discussão dos problemas internos. Uma verdadeira revolução se tivermos, como histórico, o ‘modus operandi’ do seu próprio partido.

Até há um passado muito recente, era comum militantes e responsáveis do MPLA, a todos os níveis, revoltarem-se contra políticos na Oposição que fizessem declarações críticas à governação fora de portas. E, entre as múltiplas justificações, os ‘camaradas’ tinham a preferência de evocar a exposição do país à ingerência externa. Os adjectivos aos oposicionistas sucediam-se, por isso, em tom e em nível de gravidade. De fantoches a vendedores de pátria.

Agora é o próprio Presidente da República que, de forma explícita, dá razão aos políticos na Oposição, ainda que por motivações diferentes. Os adversários do MPLA explicavam-se, amiúde, com a alegada falta de espaço no universo mediático. E juntavam, nas reclamações, a suposta manipulação constante das suas ideias nos órgãos de comunicação social de grande cobertura, especialmente os públicos. O Presidente da República não falou da sua justiça, mas é fácil apurar pelo menos duas hipóteses. A primeira está relacionada necessariamente com a sua agenda de recusa do que considera errado no legado do seu antecessor. A segunda tem que ver com a forma como encara a necessidade de aceleração do investimento estrangeiro, pela via da ‘certificação’ do seu Governo pelo Ocidente. Não causa espanto, por isso, que João Lourenço tenha feito um discurso à medida dos ouvidos europeus. Mesmo quando tratou de referir as questões transversais africanas, com destaque para a tão controversa tragédia migratória.

Que o Presidente tem legitimidade para ‘estender o tapete vermelho’ à Europa em toda a dimensão, isso é indiscutível. Se tem completa razão, isso é outra história, só o futuro o dirá. Mas, enquanto o futuro não chega, há cautelas que não podem ser ignoradas. Por uma explicação simples. Se nos predispusemos a prestar contas à Europa e ao jeito europeu, independentemente dos nossos motivos, temos de estar dispostos a continuar a fazê-lo com disciplina canônica. O argumento de ingerência interna, tantas vezes invocado, no futuro cai por terra. E não nos poderemos queixar do que for, se, em algum momento, a Europa entender que está no seu direito de exigir contas no primeiro formato que lhas oferecemos. Afinal, a ideia de que o Ocidente é amigo do desenvolvimento africano é apresentada como ilusão todos os dias em análises, livros e relatórios credenciados.

02 Jul. 2018

ALUCINAÇÕES

Em qualquer situação normal, o último guardião da idoneidade editorial dos jornais são os seus directores. É assim que, em teoria, o papel desses responsáveis editoriais é percepcionado. E é dessa forma que se espera que o desempenhem na prática. Se num repórter se ‘tolera’ o descuido de apresentar uma reportagem com dados imprecisos, num director não se cogita a mais básica confusão entre facto e especulação. Ou entre liberdade de expressão e libertinagem de imprensa. Porque é também da observância permanente desses pressupostos que depende a credibilidade de um jornal. Pelo menos, é esse o nosso entendimento.

Interpretação contrária parece ter o director do ‘Jornal de Angola’. Na edição de domingo, 17, o mesmo decidiu comentar a polemizada entrevista que o empresário Bartolomeu Dias concedeu ao VALOR e em que faz duras críticas a certas decisões e ao estilo de governação de João Lourenço. Tudo não teria passado de um exercício legítimo do direito à opinião, se o dito director não tivesse extrapolado os limites da sua liberdade, ao declarar que se tratou de uma “entrevista encomendada”. O responsável do jornal do Estado não se deu ao trabalho de se explicar, até porque é impossível explicar-se uma especulação gratuita. Não tomou o cuidado de fundamentar o que fosse, até porque não se pode fundamentar uma acusação irresponsável. Simplesmente optou por abusar da prerrogativa de usar um título pago por todos os contribuintes para caluniar, de forma grave, um jornal que se tem distinguido, no mínimo, pelo bom jornalismo.

É certo que não nos colocamos na disposição de provar o que quer que seja ao referido director. Entre todas as razões, porque simplesmente não há nada a provar. Se a decisão de se dar a voz a um empresário afectado por uma decisão presidencial é “visivelmente”encomenda e não puro jornalismo, então estamos conversados: ele que fique com o jornalismo e nós que fiquemos com as encomendas. E, claro, estaremos sempre na expectativa de o ver encontrar encomendas em todas as entrevistas com conteúdo crítico à governação.

Dito isto, uma merecida palavra aos leitores, com os quais, desde o primeiro minuto, assumimos o compromisso de servir a causa do jornalismo. Não haverá outra forma de sermos lidos e interpretados senão pelos inegociáveis rigor e isenção que caracterizam o trabalho que se faz nesta casa. As marcas são irrefutáveis, num arquivo acumulado de mais de dois anos de VALOR e de pouco mais de seis anos de ‘Nova Gazeta’. Até hoje, são centenas de milhares de páginas que se misturam entre elogios e críticas à governação. A de ontem e a de hoje. Críticas e elogios de dentro, concretizados em artigos de opinião dos directores e editores. E críticas e elogios de fora, expressos também em artigos de opinião, entrevistas e em conteúdo diverso. E não, não é a atitude fútil de quem usa o poder da intermediação dos jornais para ostentar vaidades, é a única forma de fazer jornalismo em que nos revemos. Não, não é a postura leviana de quem confunde os desvarios pessoais com as causas do Estado, é o peso da responsabilidade de quem coloca o jornalismo ao serviço da regulação dos poderes.

E não, não é encomenda, é jornalismo. O resto, o resto mesmo… são alucinações.

25 Jun. 2018

Dois casos

Dois temas que preenchem as páginas deste número são destacados para a reflexão de hoje. O primeiro é sobre a decisão que alarga os anos de carros usados permitidos para a importação. A questão essencial aqui prende-se com a justificação da medida. No entendimento do Governo, os elevados preços praticados pelas concessionárias e as dificuldades no acesso às divisas impossibilitam a compra de viaturas novas pelas populações com menos recursos. Quem contraria o Governo, por sua vez, além de mencionar a abertura do país à possibilidade de entrada de ferro velho, lembra que a decisão é incompleta, porque não resolve o problema crucial de acesso às divisas.

Mas, para se perceber o fundo dessa argumentação contestatária, vale a pena uma micro-caracterização do mercado. Para começar, a venda de viaturas usadas, além das restrições legais forçadas pelo lobby das concessionárias, recuou significativamente por causa da crise de divisas. Como os vendedores oficiais de marcas não importam viaturas usadas para revender, a compra dos usados no exterior, enquanto existiu, foi controlada sobretudo pelo mercado informal. E quem vende nesse mercado informal é o tal operador que, assim como no passado, é o que mais dificuldades tem para aceder à moeda externa, no presente. Por isso, a menos que o Governo dê instruções ao Banco Nacional de Angola para vender divisas a quem queira importar viatura usada (seja para uso pessoal, seja para negócio), no curto prazo, a decisão do Governo não pode ter qualquer efeito digno de referência. Nem no médio prazo terá, enquanto houver racionalização apertada do dólar e do euro, para prioridades atendíveis.

O outro tema é sobre as declarações, ao VALOR, da Bombardier a propósito da sua relação com o desfeito consórcio na aviação Air Connection. Diz a companhia canadiana que nunca chegou a assinar qualquer contrato de venda de aeronaves com a Air Connection. Mas antes com uma outra entidade, a African Aero Trading SA. Só que essa resposta levanta várias curiosidades, interrogações e contradições. Aquando da assinatura do acordo, a 5 de Maio, o responsável de vendas da Bombardier para África assinalou que esperava adicionar a Air Connection à família de operadores das aeronaves Q400. O Ministério dos Transportes mencionava, por sua vez, em comunicado, que o contrato tinha sido assinado com o novo operador de transporte aéreo angolano Air Express e o fabricante Bombardier. E, para deixar tudo em águas aparentemente claras, os integrantes do então consórcio foram os mesmos que assinaram o documento com o representante da empresa canadiana.

Contas feitas, tudo volta ao ponto já referido neste espaço várias vezes. Era, no todo justificado, que o Governo esclarecesse de forma definitiva o que esteve por detrás do tal negócio que levou à exoneração de Augusto Tomás.

18 Jun. 2018

AUTARQUIAS ‘NIM’

Não parece restarem dúvidas de que toda a discussão sobre as opções em cima da mesa para a concretização das autarquias locais bloqueia no quesito da escassez de recursos. Quer a solução comedida do gradualismo territorial defendida pelo MPLA, quer a preferência ousada do gradualismo funcional defendida pelos partidos na Oposição, qualquer uma delas está incapaz de oferecer garantias sólidas em matéria de recursos. Em relação ao capital humano, tem-se ideia dos planos governamentais de formação de agentes para atenderem às estruturas do poder local, mas a meta assumida de 2020 parece curta para amainar as ansiedades. Particularmente quando se leva em conta o contexto de restrições financeiras que deve manter reduzida a capacidade do Estado de fazer ‘engenharias orçamentais’, com vista a acudir as preocupações autárquicas. Isto apesar do compromisso político assumido com a sociedade, pelo Presidente João Lourenço, em pleno Conselho da República.

Quanto aos recursos financeiros, as dúvidas não são para menos. E aqui as restrições do Estado voltam a ser evocadas. Conforme está constitucional e legalmente determinado, as autarquias locais deverão manter-se sob a protecção do Estado, através da canalização de dinheiros do Tesouro. Mas é esperado que tenham capacidade de recolher parte dos recursos financeiros necessários para a cobertura das suas despesas. No contexto actual, salvo alguma evolução extraordinária da economia neste e no próximo ano, as restrições do Estado deverão manter-se. Ainda que o preço do petróleo dê o ar da sua graça, tudo dependerá da disponibilidade do Governo em seguir à risca ou não o manual de instruções do Fundo Monetário Internacional. No mais recente pacote de elogios e avisos que deixou ao Governo de João Lourenço, a instituição de Christine Lagarde sugeriu que o possível saldo resultante da diferença entre o preço real e o preço fiscal do barril do petróleo fosse canalizado para o pagamento da dívida pública externa e dos atrasados internos. Para o FMI, a prioridade será a consolidação orçamental. E o Governo, depois de ter aprovado um Orçamento com metade da despesa orientada para desembolsos da dívida, dificilmente rejeitará a receita do Fundo.

A parcela reservada à arrecadação local também está em cheque. Como é sabido, as assimetrias são de tal ordem que, baseando-se nos valores referenciais de hoje, há municípios em Angola que não chegam a arrecadar o equivalente hoje a 100 mil dólares norte-americanos. Sendo que não se pode perder de vista que ainda que se alarguem as fontes locais de renda, as autarquias, especialmente as mais desfavorecidas, continuarão a precisar do mínimo de actividade económica para taxar e tributar. Terminamos como começámos. O quesito dos recursos (humanos e financeiros) é o principal ‘calcanhar de Aquiles’. E, no fim de contas, o MPLA terá de se assegurar vigorosamente a essa ‘desculpa’ para fazer passar a sua vontade.

11 Jun. 2018

NA EXPECTATIVA?

De certa forma, o país continua preso num mar de expectativas. É a sensação geral com que se fica, sobretudo, quando se fala com os agentes que lidam diariamente com os problemas reais da economia. A diferentes níveis, mais do que ideias aparentemente soltas de boas intenções, pedem-se planos e projectos concretos. Os empresários e investidores nacionais assistem a uma correria do Governo ao exterior à procura do capital estrangeiro, mas não têm ideias do que está pensado para o apoio de que precisam. Grosso modo, as empresas vêem a autoridade tributária diariamente à porta à procura de impostos, mas não vislumbram perspectivas imediatas de melhoria do negócio ou, pelo menos, de acesso ao financiamento.

No fundo, a cerca de quatro meses para o fecho do primeiro ano do novo Governo, as incertezas continuam a sobrepor-se às certezas. Mesmo com a consciência do tempo que, por via de regra, as reformas requerem, ressaltam cada vez mais os questionamentos sobre a ausência de resultados tangíveis de prazos mais imediatos. Na entrevista que trazemos esta semana, um notável empresário angolano faz uma leitura sobre a governação que corporiza precisamente parte das ideias defendidas pelas correntes mais cépticas. Bartolomeu Dias, numa linguagem clara e com um discurso contundente, critica não só a qualidade de uma série de decisões cruciais, mas também o estilo. Na declaração de João Lourenço à ‘Euronews’ sobre o desfeito consórcio na aviação, por exemplo, o empresário não só encontra “arrogância”, como vê uma decisão que põe em causa a imagem do país. E, como argumento, defende-se com o facto de se tratar de um processo que era necessariamente do conhecimento do Presidente da República e que, só por isso, não merecia o tratamento que teve da parte do chefe de Estado. Essa é, aliás, uma das razões por que já dizíamos, na última semana e neste espaço, que seria no todo justificado o Presidente da República explicar-se sobre o motivo que o levou a anunciar, no exterior, a inexistência do consórcio Air Connection Express. Porque, na ausência dessa explicação, mais do que se avaliar a qualidade da decisão, a tenção geral fica votada para a qualidade do estilo.

Qualquer coisa como relegar o conteúdo para o segundo plano em benefício da forma. Mas a preocupação dos cépticos, claramente em contraponto com os aplausos provindos de fora e não só, vai um pouco mais além. A ideia de um chefe de Estado que, até ao momento, “só colocou travão no desenvolvimento”, se transportada além da decisão sobre o consórcio, tem de justificar alguma preocupação da parte de quem governa.