Editorial Editorial

Editorial Editorial

13 Aug. 2018

E A QUALIDADE?

A protecção da saúde pública, em qualquer situação, deve estar nas prioridades de qualquer Governo que se quer sério. Não é por acaso que a generalidade dos países desenvolvidos vê nessa questão uma preocupação estratégica, com implicações no asseguramento da estabilidade e do próprio desenvolvimento económico e social. E nisso as análises laboratoriais aos produtos de consumo humano colocam-se numa posição insubstituível.

Angola marcou alguns passos, nos últimos anos, nessa matéria, mas o quadro geral continua a inspirar intensos cuidados. Com a alteração do regime legal, no princípio deste ano, que liberalizou o mercado das análises laboratoriais, ficaram por aclarar um sem fim de inquietações. Uma delas acabou respondida agora, com a regulamentação do novo quadro legal aprovado no início deste mês por Decreto Presidencial, mas outras tantas continuam em pé. Como, por exemplo, a qualidade dos laboratórios existentes para a realização das análises que o Governo torna agora obrigatórias e não só.

Por vezes sem conta, diversos importadores manifestaram-se contra a qualidade dos serviços que a generalidade dos laboratórios oferece, particularmente os da esfera do Estado. A nível da comunicação social, revezaram-se denúncias sobre laboratórios que não cumpriam sequer com os procedimentos mínimos exigidos, como a autonomia na recolha das amostras dos produtos. E pode acrescer-se ainda as suspeitas várias vezes levantadas sobre alegadas práticas de manipulação de resultados.

Por outras palavras, após o desafio da regulamentação, que continuará a carecer de outros aspectos relevantes, como a estruturação de uma entidade de regulação das práticas laboratoriais, ao Governo coloca-se a tarefa imediata de garantir a qualidade dos serviços que essas unidades prestam. E aqui as garantias das autoridades não podem ser vistas apenas na perspectiva reactiva da aplicação de multas, em caso de irregularidades. Porque, se é de validação de produtos para o consumo humano que se fala, as soluções devem ser priorizadas a nível da prevenção. A questão é como o Governo pretenderá fazer isso. Se será por uma aposta séria na qualificação dos laboratórios públicos, apetrechando-os com os recursos humanos e tecnológicos à altura. Ou se será por apelar aos privados para investimentos na indústria, com a contrapartida de um ambiente de concorrência são e justo.

Sobre a primeira hipótese não é difícil concluir que não há como figurar numa opção do Governo, no imediato, por limitação de recursos. Além do facto de que a colocação do Estado a concorrer com os operadores privados levanta a dúvida clássica da concorrência desleal. No caso da outra possibilidade, da intervenção dos privados, será uma questão de se lançar o desafio aos investidores. E aí veremos…

O debate sobre a implementação das autarquias locais em Angola já logrou certezas inquestionáveis. Particularmente no sentido da opção política que deve prevalecer. Com a conclusão do que o Governo chamou ‘consulta pública’ sobre o pacote legislativo autárquico, não restam dúvidas de que o país vai avançar com a efectivação do poder local, longe de consensos. O gradualismo territorial do MPLA vai sobrepor-se ao gradualismo funcional da Oposição e o máximo que o partido no poder poderá ceder é aligeirar o aperto no número de circunscrições que vão a votos, logo na primeira fase.

A outra certeza óbvia é a incerteza geral, ainda que dissimulada, sobre os resultados que se esperam com a implantação das autarquias locais. Em parte, porque nenhuma das propostas em cima da mesa foi suficientemente convincente na garantia dos resultados sonhados. Em parte também, porque as diferentes experiências que nos chegam de fora não parecem bastante esclarecedoras quanto ao caminho que nos é mais aconselhado. Nem os casos que optaram por avançar mais depressa em número de autarquias nem os que decidiram acalentar mais o passo tornam as opções angolanas mais fáceis.

O caso de Moçambique, por exemplo, no contexto do debate que acontece em Angola, levanta reflexões que vão além do racional político. Quando decidiu pela implementação faseada, o poder dominante em Maputo usou precisamente os mesmos argumentos de que se serve hoje o MPLA. Passada década e meia, o processo avançou muito pouco e nem por isso grande parte das áreas abrangidas, na primeira experiência, realizou o essencial do que se esperava com as autarquias. Em teoria, isso significa que, ainda que as mais de cinco centenas de autarquias previstas em Moçambique se concretizassem, nada garante que os moçambicanos estariam mais realizados, no contexto do que se esperam serem os benefícios do poder local. É precisamente por isso que o ‘irmão’ do Índico é um exemplo complexo para o caso angolano. Qualquer coisa que defrauda as expectativas, independentemente da opção definida. Exemplos como o de Cabo Verde também colocam alguns receios, por se tratar de uma realidade, a todos os níveis, mais desigual em relação a Angola, face às maiores proximidades dos angolanos aos moçambicanos.

Perante essa sugerida encruzilhada, nada melhor do que dar a oportunidade também ao debate académico, como decidiram fazer a Faculdade de Direito da UAN e o Ministério da Administração do Território e Reforma do Estado, ao marcarem para esta semana uma conferência internacional sobre o tema, em Luanda.

31 Jul. 2018

O SONHO DOS BRICSA

Na segunda metade da década de 2000, quando Angola registava recordes inalcançáveis de taxas de crescimento, alguns analistas internos começaram a sonhar com a possibilidade de reinvenção do acrónimo grafado pela primeira vez pelo economista Jim O’Neill.

O ‘boom’ da economia do país coincidia com a afirmação dos BRIC no espaço internacional, em clara alternativa à ditadura dos paradigmas ocidentais nas relações comerciais, económicas e geo-políticas. Na altura, a África do Sul estava a anos de ver formalizada a sua integração no bloco que reunia os gigantes emergentes.

E, antes da concretização dos BRICS em 2011, houve quem se atrevesse a grafar os BRICA, numa alusão ao que na verdade não passava de uma quimérica acoplagem de Angola ao grupo até então formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China.

Os anos, naturalmente, foram passando e a crise internacional iniciada em 2008, mas que em Angola só tem reflexos visíveis a partir da segunda metade de 2009, não só despertou que o sonho dos BRICA era algo impossível na altura, como lembrou que a confiança cega no petróleo representava uma séria ameaça à estabilidade macroeconómica e até política e social do país. Menos dolorosa do que o ‘tsunami’ económico, financeiro e cambial de 2014, a crise de 2008 não deixaria, entretanto, a aprendizagem de que o país precisava.

A reapreciação do petróleo nos mercados internacionais, no intervalo entre as duas crises, recolocou o país na loucura e na ilusão da fartura. E, como consequência imediata verificada nos últimos anos, o projecto de diversificação da economia pouco mais serviu do que um adorno de luxo do discurso político.

Com a onda de choque levantada por João Lourenço, motivada também pelo novo contexto político e económico, os atrevimentos grafados há mais de uma década voltam a ser recuperados pela memória. Em parte pela presença do Presidente da República na reunião que juntou os BRICS, na última semana, na África do Sul.

Fiel à apologia de um novo mundo, João Lourenço desafiou os países africanos a cortarem caminhos para recuperarem o atraso para economias como as dos BRIC, lembrando explicitamente aos seus pares do continente a agenda de reformas que decidiu efectivar em Angola.

Para quem idealizou os BRICA até 2008, a ambição de João Lourenço, no contexto da sua deslocação à Africa do Sul, na última semana, é qualquer coisa que pode apelar para um novo sonho: a obrigação de levar o mundo, em algum momento, a aceitar a reinvenção dos BRICS para os BRICSA.

O Banco Nacional de Angola voltou a mexer na taxa de referência de juro e no coeficiente das reservas obrigatórias, sinalizando algum ‘desafogo’ no encarecimento do crédito e no aperto da liquidez.

Tal como é intenção do banco central, a generalidade dos operadores económicos perspectiva assim, nos próximos tempos, alguma disponibilidade maior dos bancos em conceder empréstimos à economia. Mas, como se percebe nas opiniões esplanadas nas páginas 14 e 15 desta edição, as medidas não geram necessariamente consensos.

O economista Yuri Quixina, citado na peça, vê por exemplo um certo perigo nos argumentos avançados pelo BNA, concentrados na queda da taxa da inflação. São perigosos, porque, ao contrário do BNA que observa uma descida estrutural e consistente da inflação, o economista vê uma inflação que recua de forma artificial, suportada sobretudo pelos atrasos do Estado no pagamento a fornecedores e aos empregados.

A banca, por sua vez, ainda que concorde com o sinal de desaperto do BNA, não estará propriamente disposta a esfregar as mãos de contente. E aqui o problema é diferente daquele que advoga o economista. Com a revisão da política monetária, no passado, que levou à retirada dos títulos públicos na constituição das reservas obrigatórias, os bancos viram-se desprovidos de um recurso atenuante no enxugamento da sua liquidez. No fundo, é como se tivessem passado a fazer uma espécie de ‘sacrifício’ duplo, sendo ‘obrigados’ simultaneamente a emprestar dinheiro ao Estado, através da compra de títulos do Tesouro, e a cativar dinheiro para o Estado, pelo cumprimento das reservas obrigatórias.

Não espanta assim que vários banqueiros e bancários consultados a propósito das mais recentes medidas do BNA não tenham manifestado grande entusiasmo, quanto à possibilidade de um avanço significativo dos empréstimos à economia. Por um lado, porque é expectável que os bancos desviem parte significativa da liquidez a ser libertada para os títulos públicos. Por outro, porque, pelo menos no curto prazo, o contexto económico continuará a projectar-se excessivamente frágil, para justificar um atrevimento maior dos bancos com empréstimos às empresas e às famílias.

Em tese, isso significa que não é para já que o Banco Nacional de Angola se livra do complicadíssimo equilíbrio que o obriga a manter a liquidez sob controlo, sob pena da derrapagem da inflação, e a garantir, ao mesmo tempo, alguma abertura para estimular o crédito e o investimento. A cautela na revisão da taxa de referência e na redução do coeficiente das reservas obrigatórias é mais do que esclarecedora.

16 Jul. 2018

QUAL É O CAMINHO?

Entre os sinais da reforma política iniciada pelo Governo de João Lourenço, destaca-se o reposicionamento da economia nacional, no contexto das relações com o resto do mundo. Ainda na semana passada, com perspectivas de análise dissonantes, fez destaque a passagem do Presidente da República pelo Parlamento Europeu, em França. E esse destaque deveu-se, em parte, ao discurso que dirigiu aos europeus de abertura completa do país ao investimento. Antes disso, intervenções notáveis, como a que fez na sua primeira deslocação a Paris como chefe de Estado, mantiveram o pano de fundo de uma Angola aberta a quase tudo. Mais para trás, ainda por altura da campanha eleitoral e pouco depois no discurso da sua investidura, João Lourenço sublinhou a tónica na atracção do investimento estrangeiro.

Melhor do que isso, algumas das primeiras decisões políticas de monta foram consequentes. Deu instruções para se mexer na legislação do investimento privado, mandou reformular os procedimentos migratórios e deslocou-se a Kigali para apoiar o lançamento da Zona de Comércio Livre em África. Tudo isso faz prever, naturalmente, um país que se prepara, no curto prazo, para abrir completamente as portas. E, no médio, para colocar os seus produtores a competirem com o resto mundo.

As reticências vão-se colocando, entretanto, quando surgem discursos, como o reportado na principal matéria da página 11 desta edição. Conforme indicado, o Ministério da Indústria e o ‘lobby’ do sector das bebidas são favoráveis à colocação de entraves no licenciamento de novos operadores da indústria de bebidas. Mais especificamente os que se colocam no segmento de produção de cerveja, água, sumos e refrigerantes. E, curiosamente, a justificação vai contra a narrativa de instauração de um mercado verdadeiramente livre: a existência de auto-suficiência, com excedentes inclusive para a exportação.

Colocam-se aqui, claro, vários problemas. O primeiro é o aparente paradoxo que se esse protecionismo coloca, face ao discurso de abertura sem limites em sectores não-estratégicos. O segundo é a liberdade de escolha que se retira, à partida, ao consumidor. Não por força das dificuldades conjunturais que limitam às importações, mas sim por imposições administrativas, através do recurso a práticas protecionistas.

É lógico que não há necessariamente contrassenso entre abrir a economia e manter algumas áreas sob alguma protecção do Estado. Só que, nestes casos, a orientação política tem de ser clara, sob pena de se criarem dúvidas nos investidores. E clareza significa o Governo nomear, com precisão, os sectores em que não pretende ver novos investidores. Lançando as ideias aparentemente de forma desconcertada não poder ser positivo nem conciliatório com o novo paradigma que se apregoa.