Editorial Editorial

Editorial Editorial

Pelo menos na forma, há uma tentativa de transformação do discurso do Presidente da República que dever ser destacada. Até Novembro passado, o tom de João Lourenço era excessivamente musculado, como ficou historicamente assinalado na sua passagem por Portugal. Criticamo-lo, por isso, várias vezes neste espaço, com um argumento simples. O Presidente da República pode e deve gerir a sua agenda de combate à corrupção, mantendo a equidistância formal do processo. Em primeiro lugar, porque será teoricamente mais fácil defender-se dos que o acusam também de subjugar a justiça. Se, aos olhos da opinião pública, o Presidente mantiver a distância necessária da acção dos órgãos de justiça, mais facilmente se venderá a imagem da autonomia das instituições, ainda que ninguém duvide que a onda de casos judiciais seja impulsionada pelo seu próprio punho. Em segundo lugar, o distanciamento formal do Presidente permite que os processos sejam geridos num ambiente político menos violento.

É exactamente isso o que se verificou após o regresso do Presidente de Portugal. Por mera coincidência, em alinho com o nosso entendimento, o Presidente da República regressou e moderou a palavra. Nas declarações que se seguem, mantém-se firme quanto à responsabilização dos que terão cometido crimes, mas evita o recurso a expressões de guerra, como “destruir” e “neutralizar”. Na última conferência de imprensa com jornalistas angolanos, até quase recusa que tivesse prometido poucas semanas antes um xeque-mate que deixou o país suspenso. Hoje, os efeitos da moderação do Presidente são palpáveis. A Procuradoria-Geral da República, o Serviço de Investigação Criminal e a Inspecção Geral do Estado mantêm o acelerador na cruzada contra altos gestores e governantes do passado, mas, pelo menos a olho nu, o clima político está francamente menos tenso.

É precisamente neste quadro que se faz necessário o esclarecimento da alegada nova roupagem da figura de triste memória do sr. Ordens Superiores. Nas últimas semanas, tornaram-se recorrentes informações nas redes sociais sobre alegados impedimentos de viagens ao exterior a várias figuras, que depois se confirmam. Confirmam-se com o grande detalhe de as pessoas impedidas tomarem conhecimento dessa condição apenas no aeroporto, por determinação de um tal sr. Ordens Superiores. Como foi no caso do deputado Manuel Rabelais, agora constituído arguido, o impedimento não é suportado por papéis emitidos pelos entidades competentes, mas apenas por orientação exclusiva do sr. Ordens Superiores, com violações de direitos fundamentais à mistura.

Definitivamente, é importante que se esclareça o seguinte: é contraditório defender-se a construção ou a consolidação de um Estado de Direito, substituindo práticas autoritárias por práticas autoritárias, em nome de um alegado interesse nacional. É rotundamente contraditório.

Há uma sentença atribuída a um antigo membro proeminente do MPLA, já falecido, que, a certa altura, confrontado com a possibilidade da detenção do seu sobrinho por suspeita de peculato, terá afirmado, mais coisa menos coisa, que o único milionário verdadeiramente legítimo em Angola era o Mantorras. E que, por isso, ninguém poderia atrever-se a fazer justiça contra o seu sobrinho. Verdadeira ou falsa, a alegada ‘boca’ do mais velho é contada e recontada há mais de década e meia, ainda que o seu parente tenha sido mesmo oficialmente obrigado pelo Tribunal de Contas a devolver mais de 170 mil dólares ao Estado, em 2004.

Verdadeira ou falsa, a frase é sempre rebuscada para recordar uma convicção implantada, há décadas, no imaginário colectivo, ainda que contestável: a ideia de que, em Angola, todos os milionários construíam as fortunas com acesso a facilidades e esquemas que, directa ou indirectamente, acabaram por lesar o Estado. Precisamente por isso a exclusão de Mantorras na sentença do mais velho. Porque o futebolista era, à data dos factos, a raríssima referência de um angolano que construía à sua fortuna às claras, graças ao talento com a bola que fez dele o futebolista angolano de maior sucesso na história.

Os afortunados que não se revêem na acusação do mais velho têm o direito de contestá-la. Mas, hoje, quando se olha para o desenrolar da proclamada guerra contra a corrupção, torna-se inevitável recuperar esta máxima sobre a construção dos milionários, pela falta de clareza dos critérios. É, aliás, aqui onde residem as principais críticas contra essa agenda.

Não sendo verdadeiramente possível punir toda a gente que cometeu crimes, o mínimo que se deve exigir a João Lourenço é a apresentação de um projecto transparente que, pelo menos em termos teóricos, aponte neste sentido. Até porque a estratégia seria de fácil concepção, com o aparente rompimento da barreira do tempo, já que até factos anteriores a 2008 estão a ser levantados pela justiça. O ponto de partida seria tão simples quanto isto: era preciso montar uma entidade independente – à mercê do escrutínio público – que investigasse toda a gente que governou e tem governado, pelo menos desde 2002, incluindo todos os gestores de empresas públicas relevantes. Só assim as desconfianças que encontram no combate à corrupção a instrumentalização do Estado por ódios e vinganças pessoais cairão por terra. De outro modo, por muito espalhafato que se faça, os receios da instrumentalização do combate à corrupção e as dúvidas quanto aos critérios de punição permanecerão fundadas e intactas.

Além do proclamado combate à corrupção, o Presidente da República elegeu a criação massiva de emprego como uma das prioridades do seu Governo. O compromisso foi assumido com números precisos, cantarolados ao longo de toda a campanha eleitoral e nas intervenções de circunstância, após à sua investidura. Os angolanos que depositaram confiança em João Lourenço e no MPLA marcaram 500 mil empregos para cobrar até Setembro de 2022. Hoje, com cerca de ano e meio consumidos do consulado, começa a fazer-se tarde para as conclusões preliminares sobre a capacidade de cumprimento desta promessa. Para já, os sinais concretos são expressivamente preocupantes. Ao contrário da luta contra a corrupção, a criação do emprego está encostada numa posição terciária no discurso do Presidente. Na última vez em que foi questionado a propósito, em conferência de imprensa, João Lourenço escapou-se pela longitude do seu mandato. Se foi eleito para Presidente até 2022, então os angolanos têm de ter paciência e fazer as contas quando chegarem à meta. Ainda que defensável em termos matemáticos, é uma explicação politicamente angustiante e socialmente desastrada. As principais promessas eleitorais, no plano psicológico, são cada vez mais recebidas com expectativas de resultados tangíveis de curto prazo. É uma situação hoje quase que incontornável e é, sobretudo, do incumprimento das ansiedades de curto prazo que decorre o fenómeno do desgaste acelerado da função e da imagem presidencial.

Mas a promessa do emprego não está minimizada apenas a nível do discurso. Os factos são ainda mais aterradores. Notícias sobre empregos criados praticamente desapareceram dos jornais. Em contrapartida, os despedimentos somam e seguem nas empresas e em quase todos os sectores de actividade. Por ora, faltam dados fiáveis compilados. Mas, nessa ausência, sobra a certeza de que, até hoje, o Governo de João Lourenço mais destruiu do que criou empregos.

É verdade que há uma certa narrativa que toma a destruição do emprego como consequência natural do desmantelamento do empresariado forjado na era de José Eduardo dos Santos. Por outras palavras, há quem a tome por destruição criativa. Mas a destruição criativa, na sua essência, implica necessariamente a substituição do indesejado por alguma alternativa inovadora e melhorada. Em matéria do empego, não se pode dizer que isso seja um facto.

Vamos dizer as coisas como elas se colocam. Os receios da banca na concessão de crédito às empresas não têm solução de curto prazo à vista. Se têm, ninguém as aponta com precisão. Ou, pelo menos, ninguém acredita nelas com profunda convicção. Nem o Governo, nem os bancos, nem as empresas. Veja-se o seguinte: o Governo junta a banca, numa única sentada, para lhe exigir mais compromisso com a economia, disponibilizando dinheiro fresco a quem tenha projectos viáveis. Os bancos reagem positivamente ao apelo governamental à frente das câmaras, apresentando de forma aligeirada as suas reticências. Mas, por trás dos holofotes, a descrição dos factos é realisticamente cruel: os níveis elevados do crédito malparado (estimados em 30%) não estimulam facilidades da banca; a cultura de inadimplência atrelada à morosidade da justiça no julgamento das queixas apresentadas pelos bancos não incentiva a cedência de crédito; as exigências cada vez mais acentuadas no cumprimento dos pressupostos regulamentares deixam os bancos mais tímidos e acentuam o rigor na avaliação dos projectos; as elevadas necessidades do Governo de recurso ao financiamento interno não ajudam propriamente os bancos a priorizar empréstimos às empresas; as incertezas quanto ao desempenho da economia este ano, com os cortes na despesa pública na ordem dos 30%, já em curso, também não animam as expectativas. Os bancos sabem disso, o Governo também sabe, assim como as empresas.

Por uma questão lógica, a solução dos receios passaria por ‘corrigir’ alguns dos problemas levantados, nomeadamente o do malparado, mas isso não daria garantias imediatas de expansão do crédito. Muito pelo contrário. A inversão da tendência do malparado passará, entre outras exigências, por uma avaliação mais criteriosa da viabilidade dos projectos. No contexto actual, isso contribui necessariamente para alguma retracção dos empréstimos, porque é dos próprios bancos a autocrítica sobre a inviabilidade de muitos projectos que, entretanto, foram e têm sido aprovados. Quanto aos demais receios apontados, sabe-se que não são desafios a ultrapassar no curto prazo. Não é em 2019 que a justiça se vai tornar mais célere no tratamento das queixas dos bancos, porque, além das limitações estruturais, está toda ela virada para a ‘campanha’ de combate à corrupção. Não é para já que o Governo vai deixar de sugar os dinheiros que os bancos teriam para ceder à economia, pelo que o Estado, por ser mais seguro, deve continuar a ser o cliente preferencial da banca. Aparentemente, estamos perante uma encruzilhada.

Aparentemente, pelo menos para já, não é possível exigir-se uma banca mais séria, cuidadosa e criteriosa e simultaneamente mais amiga das empresas.

Para se compreender a contestação popular contra o aumento da taxa de emissão do passaporte ordinário, é preciso explicar-se antes o que se se passou pela cabeça das autoridades. Desde há algum tempo, figuras ligadas ao Serviço de Migração e Estrangeiro (SME) vêm vendendo a ideia de que o custo do passaporte tinha de aumentar, essencialmente, por duas razões. Em primeiro lugar, porque o Estado incorria em altos custos para subvencionar a emissão do documento. Informações fidedignas a propósito são escassas, mas há fontes que colocam em mais de 60% o contributo dos cofres públicos para a emissão do passaporte ordinário. Em segundo lugar, porque era preciso combater o desperdício. O SME reclama regularmente dos milhares de passaportes que ficam anos a fio nos ‘armazéns’, porque não são levantados pelos seus titulares.

O problema é que as duas justificações do Governo jogam contra si próprias. Em relação à subvenção, ainda que, por hipótese, o Estado cobrisse três quartos do valor actual, teríamos uma subida, no máximo, de 300% para 12 mil kwanzas. A desculpa do subsídio é, por isso, manifestamente insuficiente para se justificar o aumento superior a 1.000% no tratamento do passaporte ordinário. No caso do combate ao desperdício, as autoridades optaram por inverter a lógica, prejudicando uma potencial maioria esmagadora de cidadãos que trata e usa os seus passaportes, para castigar a tal minoria que não levanta os documentos.

Ora, se um simples exercício aritmético desmonta com facilidade os argumentos das autoridades, a solução tinha de ser necessariamente outra. As novas taxas tinham de levar, em paralelo, a necessidade de prevenir os ‘passaportes ociosos’ e a ‘protecção’ daqueles que realmente precisam do documento. Dito de outra forma, o agravamento do custo do passaporte seria aceitável, se, em termos percentuais, não ultrapassasse as fronteiras do surreal. Mais de 1.000% é qualquer aumento no extremo do absurdo, especialmente num contexto em que a maioria dos serviços públicos agravou significativamente os custos para os contribuintes.

Finalmente, uma explicação necessária. Ao contrário do que defende a generalidade da opinião popular, em termos práticos, o absurdo não está necessariamente nas relações que se estabelecem entre a nova taxa do passaporte e o salário mínimo nacional. Porque o que a realidade nos mostra é que, mesmo nos actuais três mil kwanzas, quem ganha no fundo da tabela tem poucas hipóteses de precisar de um passaporte. E, se fosse caso disso, as autoridades poderiam sempre flexibilizar procedimentos para tratar de casos especiais.

O problema é mesmo outro: é esta saída inexplicável e indecente de oito para oitenta.