Karl Marx continua a ser relevante?

07 May. 2018 Peter Singer Opinião

Desde 1949, quando os comunistas de Mao Zedong triunfaram na guerra civil da China, até o colapso do Muro de Berlim, 40 anos depois, o significado histórico de Karl Marx era insuperável. Quase quatro em cada dez pessoas da Terra viviam sob governos que se diziam marxistas e, em muitos outros países, o marxismo era a ideologia dominante da esquerda, enquanto as políticas da direita eram frequentemente baseadas em como combater o marxismo. Quando o comunismo entrou em colapso na União Soviética e nos seus países satélites, a influência de Marx afundou-se.

Quando se celebram os 200 anos do nascimento de Karl Marx, a 5 de maio de 1818, não é absurdo sugerir que teve previsões que falharam, tem teorias desacreditadas e umas ideias que se tornaram obsoletas. Então, por que devemos nos importar com o seu legado no século XXI?.

A reputação de Marx foi severamente prejudicada pelas atrocidades cometidas por regimes que se diziam marxistas, embora não haja evidências de que o próprio Marx tenha apoiado tais crimes. Mas o comunismo entrou em colapso em grande parte porque, tal como era praticado no bloco soviético e na China sob Mao, não conseguiu proporcionar às pessoas um padrão de vida que pudesse competir com o da maioria das pessoas nas economias capitalistas.

Essas falhas não reflectem falhas na representação de Marx do comunismo, porque Marx nunca as descreveu: não mostrou o menor interesse pelos detalhes de como uma sociedade comunista funcionaria. Em vez disso, os fracassos do comunismo apontam para uma falha mais profunda: a visão de Marx sobre a natureza humana.

Não há, pensou Marx, uma natureza humana inerente ou biológica. A essência humana é, como escreveu nas ‘Teses sobre Feuerbach’, “o conjunto das relações sociais”. E que, se “se mudarem as relações sociais - por exemplo, alterando a base económica da sociedade e abolindo a relação entre capitalista e trabalhador -, as pessoas, na nova sociedade, serão muito diferentes do que eram no capitalismo”.

Marx não chegou a essa convicção através de estudos detalhados da natureza humana sob diferentes sistemas económicos. Era, antes, uma aplicação da visão de Hegel da história. Segundo Hegel, o objectivo da história é a libertação do espírito humano, que ocorrerá quando todos entendermos que somos parte de uma mente humana universal. Marx transformou esse relato “idealista” em “materialista”, no qual a força motriz da história é a satisfação de nossas necessidades materiais e a libertação é alcançada pela luta de classes. A classe trabalhadora será o meio para a libertação universal, porque é a negação da propriedade privada e, portanto, dará início à propriedade colectiva dos meios de produção.

Uma vez que os trabalhadores possuíssem colectivamente os meios de produção, pensou Marx, as “fontes da riqueza cooperativa” fluiriam mais abundantemente do que as da riqueza privada - tão abundantemente, de facto, que a distribuição deixaria de ser um problema. É por isso que não viu a necessidade de entrar em detalhes sobre como os rendimentos ou os bens seriam distribuídos. Na verdade, quando Marx leu uma proposta para a fusão de dois partidos socialistas alemães, numa única plataforma, descreveu os ‘slogans’ de “distribuição justa” e “direito igual” como “lixo verbal obsoleto”. “Eles pertenciam a uma era de escassez que a revolução terminaria”, concluiu.

A União Soviética provou que não era possível abolir a propriedade privada dos meios de produção sem alterar a natureza humana. A maioria dos humanos, em vez de se dedicar ao bem comum, continua a buscar poder, privilégio e luxo para si e para os próximos. Ironicamente, a mais clara demonstração de que as fontes da riqueza privada fluem mais abundantemente do que as da riqueza colectiva pode ser vista na história de um grande país que ainda proclama a sua adesão ao marxismo.

Sob Mao, a maioria dos chineses vivia na pobreza. A economia da China começou a crescer rapidamente somente depois de 1978, quando o sucessor de Mao, Deng Xiaoping (que proclamou que “não importa se um gato é preto ou branco, desde que pegue ratos”) permitiu que empresas privadas fossem estabelecidas. As reformas de Deng acabaram por tirar 800 milhões de pessoas da pobreza extrema, mas também criaram uma sociedade com maior desigualdade no rendimento do que qualquer país europeu (e muito maior do que nos EUA). Embora a China ainda afirme que está a construir um “socialismo com características chinesas”, não é fácil ver o que é socialista, quanto mais marxista, na sua economia.

Se a China não é mais significativamente influenciada pelo pensamento de Marx, podemos concluir que, na política, como na economia, ele é, de facto, irrelevante. No entanto, a sua influência intelectual permanece. A teoria materialista da história, de forma atenuada, tornou-se parte de nossa compreensão das forças que determinam a direcção da sociedade. Nós não temos de acreditar que, como Marx disse uma vez incautamente, “o moinho manual dá uma sociedade com senhores feudais e o moinho a vapor dá uma sociedade com capitalistas industriais”. Noutros escritos, Marx sugeriu uma visão mais complexa, na qual há uma interacção entre todos os aspectos da sociedade.

O aspecto mais importante da visão de Marx da história é negativo: a evolução de ideias, religiões e instituições políticas não é independente das ferramentas que usamos para satisfazer as nossas necessidades, nem das estruturas económicas que organizamos em torno dessas ferramentas e dos interesses financeiros. Se isso parece óbvio demais para ser declarado, é porque interiorizamos essa visão. Nesse sentido, agora, somos todos marxistas.

 

Professor de Bioética na Universidade de Princeton, EUA, e professor Laureado da Escola de Estudos Históricos e Filosóficos da Universidade de Melbourne, Austrália