Editorial Editorial

Editorial Editorial

22 Dec. 2016

O FACTO

Jamais a nomeação de uma figura gerou tanta controvérsia, como foi a indicação de Isabel dos Santos para presidente do conselho de administração da Sonangol. Num carnaval de contestação sem precedentes, a presença de Isabel dos Santos na mais estratégica das empresas públicas motivou debates fraturantes na sociedade, gerou processos na justiça e serviu de justificação para o agendamento de manifestação na rua. No caso da disputa judicial, foi ao ponto de, pela primeira vez, levar um tribunal a solicitar esclarecimentos ao Presidente da República sobre um acto de nomeação. Um facto verdadeiramente inédito, ainda que a decisão do Tribunal Supremo tenha sido fortemente criticada por vozes que defendem a legalidade do acto do Presidente e que sugerem que essa instância judicial carece de legitimidade constitucional para requerer explicações sobre uma determinação discricionária de um órgão de soberania.

Isabel dos Santos, em teoria, de forma involuntária, acabou assim por dominar a agenda de 2016, com a particularidade de ter relegado até o tema da crise económica e financeira para segundo plano, especialmente no espaço mediático. Fora do ‘dossier Sonangol’, a empresária apareceu este ano associada a vários outros interesses públicos, como é o caso da Angola Telecom, em que é dada à frente do processo de reestruturação da empresa. Mas foi também este ano que a sua imagem se consolidou na liderança de projectos como o Plano Geral Metropolitano de Luanda, após tê-lo defendido na Televisão Pública de Angola, ou ainda a consumação do controlo de um dos mais importantes bancos angolanos, no caso o BFA, num processo que envolveu uma troca de ‘galhardetes’ com os seus parceiros espanhóis do Grupo La Caixa, no BPI, em Portugal.

É essencialmente por estas razões que, na edição de estreia da ‘Personalidade do Ano’, a presidente do conselho de administração da Sonangol foi a escolhida de forma destacada, como mostra a capa.

Não sendo necessariamente uma distinção de qualidade, a ideia fundamental da iniciativa está associada à identificação da pessoa, grupo, facto ou evento que, por quaisquer razões, mais tenha influenciado, de forma individual, a vida nacional. Em 2016, essa figura foi inquestionavelmente Isabel dos Santos que, na altercação que manteve com alguns órgãos de comunicação social, este ano, não deixou de rotular o VALOR ECONÓMICO com alguns epítetos antipáticos, após o jornal ter divulgado a notícia sobre a apuração de imparidades na Sonangol.

O VALOR ECONÓMICO, tal como se propôs na sua edição de estreia, em Março deste ano, reafirma assim o seu compromisso com a única causa que nos motiva todos os dias, a causa do jornalismo. Uma causa que, agarrada ao rigor dos factos, não se desonera de tomar posições, face ao que realmente interessa na vida dos angolanos. Foi o que fizemos ou tentamos garantir nas 40 edições contabilizadas em 2016.

PS: Por opção editorial, forçada pela paragem para férias colectivas dos colaboradores do jornal, a última edição do ano sai, hoje 5ª. feira, 22 de Dezembro, em vez de segunda-feira, 19, como seria esperado. A primeira edição de 2017 sai assim a 9 de Janeiro. Aos nossos leitores, desejamos Festas Felizes e Próspero Ano Novo!

12 Dec. 2016

CONTRASTES

Quer um exemplo categórico sobre a razão por que o optimismo do discurso oficial contrasta, de forma inquestionável, com o sentimento dos investidores? A edição desta semana é particularmente explícita. De ponta a ponta, há testemunhos e queixas de investidores e de empresários que sentem os efeitos da crise, além da pele. Investidores de todos os tamanhos. Desde os mais pequenos, como uma empresa de produção de concentrado de proteico, no Cazenga, em Luanda, que ameaça despedir os 20 trabalhadores, por falta de divisas, a gigantes nacionais como a Ensa, que admite que a escassez de cambias está a dificultar a cobrança de seguros. Ou ainda a gigantes mundiais, como a Maersk Line, que antecipa uma quebra nas receitas na ordem dos 18%. Mas, neste rol de sentimentos relutantes ao optimismo oficial, ainda podemos juntar os sinais que chegam do mercado de comercialização de automóveis em que se calcula um recuo nas vendas globais a roçar os 59%. Os exemplos que configuram esta atmosfera de perdas e quedas podem incluir também os números que apontam uma queda significativa nas trocas comerciais entre Angola e os seus parceiros da SADC. E porque não uma referência ao Banco Económico que, mais de dois anos após a sua criação, por força da liquidação do BESA, não apresenta quaisquer resultados, deixando o mercado completamente às escuras em relação a uma instituição com relevância histórica no sector?

É claro que resumir tudo isso na esfera dos sentimentos seria um exercício excessivamente simpático para não dizer eufemístico. O que está em causa ultrapassa, sobremaneira, o universo dos sentimentos. Quem, no dia-a-dia, se confronta com a possibilidade de despedir trabalhadores em massa, no mínimo, lida com verdadeiros dramas sociais. Quem, no terreno, vive diariamente o risco de encerrar uma linha de produção ou uma unidade fabril completa não percebe, de certeza, os sedativos que as vozes oficiais tentam aplicar na percepção geral que se tem da crise económica e cambial e dos seus efeitos. Repetidas vezes, ouvem-se membros do Governo a lançar foguetes sobre o fim da crise, nos termos em que a literatura técnica a concebe. Mas a quem isso interessa verdadeiramente, quando, grosso modo, as dificuldades de importação de bens essenciais e de serviços se mantém, nos níveis de 2015? Quando há projectos estruturantes e em áreas definidas pelo próprio Governo como prioritárias que não avançam do ponto em que estagnaram desde meados de 2014. Quando são anunciados projectos que, em termos práticos, não passam disso mesmo por impossibilidade de compras ao exterior e pela quase inexistência de opções de financiamento internas.

Exemplos mais afirmativos para a percepção dos contrastes é quase impossível. Mas, no fundo, o que separa aqui o optimismo do cepticismo não é a percepção diferenciada da realidade entre o Governo e o resto. Toda a gente faz a mesma ideia do que se passa. A diferença é o recurso ao eufemismo que serve bem a aflição de que, a todo o custo, se sente na obrigação de tapar o sol com a peneira.

05 Dec. 2016

A SUCESSÃO

O comunicado final da reunião do Comité Central do MPLA, na última sexta-feira, não mencionou a sucessão de José Eduardo dos Santos, dentro do MPLA, na corrida às eleições de 2017. Mas essa omissão não alterou o sentido de toda a informação e da análise sobre as mudanças que se projectam no partido, por vontade expressa de José Eduardo dos Santos. A perspectiva da indicação definitiva de João Lourenço e de Bornito de Sousa para as primeiras duas posições da lista do partido que vai a votos mantém-se. O VALOR ouviu várias vozes destacadas do partido que a confirmam, mas ao mesmo que remetem a decisão final para um pronunciamento das estruturas de base do partido.

O raciocínio por detrás das correntes que apelam à permanência de José Eduardo dos Santos levanta um problema lógico para o presidente do MPLA.

José Eduardo dos Santos renovou a liderança incontestável no partido há menos de quatro meses. Foram expressivos 99,6% dos delegados ao Congresso que declararam apoio à continuidade. E, olhando para o contexto de vizinhança de eleições gerais em que o Congresso do MPLA decorreu, é razoável assumir que o sentido de voto no conclave sinalizou a vontade dos militantes de verem José Eduardo dos Santos como cabeça de lista no partido às eleições de 2017. Não é difícil, por isso, perceber a crítica mordaz que chegou de um proeminente militante do MPLA. Aquela segundo a qual a desistência de José Eduardo dos Santos, depois de vencer o Congresso, soaria a uma traição para as correntes que lhe renovaram confiança.

É possível colocar a análise noutra perspectiva para se aferir, de forma completa, a frustração dos defensores da continuidade. O vice-presidente proposto para cabeça de lista não reuniria tamanho consenso no Congresso, ainda que concorresse no partido com o apoio expresso de José Eduardo dos Santos. É esse o já referido problema lógico que se coloca ao líder dos ‘camaradas’. Mas não é o único. Vista na perspectiva da concorrência político-partidária, no quadro das eleições do próximo ano, a saída de José Eduardo dos Santos fragiliza em toda a linha o MPLA. Os factos são irrefutáveis e todos se entrecruzam com o factor tempo. A sucessão presidencial, confirmando-se agora, significaria que não se tratou de um projecto suficientemente amadurecido. Por razões óbvias, um partido que contabiliza quase quatro décadas da mesma liderança precisaria necessariamente de uma transição mais folgada, em matéria de tempo. Tanto mais porque está em causa o mesmo partido que comanda o país desde a sua existência como Estado independente, ainda que tenha partilhado a gestão do território por quase três décadas, por conta da guerra.

Aqui chegados, voltamos à omissão do comunicado do Comité Central, saído da reunião de sexta-feira. Até o MPLA divulgar oficialmente os nomes de João Lourenço e Bornito de Sousa é pacífico relativizar as ansiedades. Afinal, em política, dois mais dois nem sempre é igual a quatro.

28 Nov. 2016

NOVO CAPÍTULO

Desde que Isabel dos Santos foi nomeada para presidir à Sonangol, repetimos neste espaço várias leituras em torno da inevitável polémica. Questionámos as questões ético-morais correlacionadas. Explicámos a legitimidade de quem governa assumir riscos políticos, mas deixámos, de forma transparente, a interpretação da Lei aos especialistas do Direito. Passados vários meses e com várias análises dispersas, a propósito do requerimento de impugnação colocado no Tribunal Supremo, o argumentário legalista ganha cada vez mais forma. E, neste âmbito específico, o da legalidade do acto, parece cada vez mais claro o lado da razão.

Informação a que o VALOR acedeu, de forma exclusiva, indica que alguns constitucionalistas portugueses de opinião respeitável estão alinhados com os defensores da legalidade do acto de José Eduardo dos Santos. Um deles é Jorge Ferreira Sinde Monteiro, professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, que avança três justificações correlatas: o facto de se tratar de um acto discricionário do Presidente da República, que, no caso, é um órgão de soberania; o facto de os actos do Presidente da República serem limitados apenas pela Constituição, e, por último, o facto de o Presidente da República ser o titular do Poder Executivo e não propriamente um membro do Executivo. Jorge Bacelar Gouveia, outro constitucionalista catedrático português, identificava, sexta-feira à TPA, razões processuais e substantivas para questionar o requerimento de impugnação. E foi inclusivamente mais longe ao questionar a legitimidade do Tribunal Supremo em aceitar o expediente de contestação à nomeação de Isabel dos Santos, por assim interferir num espaço discricionário do poder governativo de um órgão de soberania. Já na semana passada, o jornal ‘Nova Gazeta’ deu estampa aos prós e contras do caso Isabel dos Santos na Sonangol. E, na balança dos contra-argumentos, os defensores da ilegalidade do acto do Presidente da República, como a jurista Mihaela Webba ou o jurista Pedro Kaparakata, não conseguiram evoluir para além do artigo 28º da Lei da Probidade Pública.

Do outro lado, os defensores da legalidade, tal como dizem agora os constitucionalistas portugueses, evocaram a impossibilidade de uma lei infraconstitucional limitar o exercício de governação do Presidente da República, cujas fronteiras apenas a Constituição estabelece. João Pinto, conhecido jurista angolano, assim como Jorge Bacelar Gouveia, questionou a actuação do Tribunal Supremo, indicando que este órgão de soberania deveria pura e simplesmente responder com um indeferimento liminar ao pedido de impugnação de Isabel dos Santos apresentado por um grupo de advogados. Itiandro Simões, outro conhecido jurista angolano, lembra outra perspectiva, em alinhamento com a legalidade do Presidente. Defende que reconhecer a aplicabilidade da Lei da Probidade ao Presidente da República implica, simultaneamente, admitir que as consequências decorrentes da sua violação são também aplicáveis ao Titular do Poder Executivo, o que, nos termos da Constituição, é simplesmente inadmissível.

O debate, no plano legal, está relançado. A bola está agora do lado dos contestatários. Aguardemos pelos próximos argumentos.

A proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) para o próximo ano foi encaminhada para análise nas comissões de especialidade, após aprovação do documento pela maioria do MLPA, na última quinta-feira. A Oposição, fiel a si própria, votou contra. Neste caso, a UNITA e a CASA-CE. Com as críticas de costume, a paradoxal FNLA votou a favor e o confuso PRS absteve-se.

O fio de argumentação da Oposição relevante é conhecido e perceptível, em toda a linha. O compromisso com a transparência que o MPLA vai evocando cada vez com menos timidez exige alterações efectivas nos esquemas de elaboração do Orçamento Geral do Estado. Entre as mudanças urgentes, a UNITA apontou a necessidade de clareza na cabimentação das verbas. Nada mais assertivo. Existirem hoje entidades a sorver recursos do Estado sem o mínimo conhecimento público é no, no limite, injustificável. Os casos das instituições de utilidade pública, nesta condição, vão além do inaceitável. Se a utilidade de algumas dessas instituições é inexplicável, muito menos é o facto de receberem dinheiros públicos, no todo, inescrutável.

O tema da sustentabilidade da dívida pública não é menos fracturante. E, mais uma vez, a Oposição apresentou dúvidas que inquietam. A referência que, com alguma simplicidade, os defensores da sustentabilidade da dívida fazem aos rácios internacionalmente recomendados, por regra, não leva em conta as lacunas estruturais da nossa economia. Um país amarrado ao petróleo e sem perspectivas claras de se desembaraçar da monodependência não pode defender-se com uma comparação às crónicas dívidas públicas na Europa, muito acima dos 100% do Produto Interno Bruto. É qualquer coisa a roçar a irresponsabilidade pelo simples facto de que ‘não se comparam laranjas com bananas’. Mas sobre a dívida há outro dado desconcertante: o facto de, como mostram os números do OGE, estar a servir, sobretudo, para financiar a má despesa.

O discurso da Oposição perde-se apenas na crítica à dotação orçamental dos órgãos de defesa e segurança. Adalberto da Costa Júnior, o líder da bancada parlamentar da UNITA, ao reprovar os mais de 545 mil milhões de kwanzas atribuídos à Defesa, exigiu que o Governo se explica se o país estaria a entrar numa guerra. Ora, pela mesma lógica do deputado, a resposta seria necessariamente não. E não é nada senão a própria natureza dos gastos a responder o deputado. Não há orçamento de guerra que concentre 98,82% dos gastos da defesa em despesas correntes. Muito menos 63% do total dessa parcela em gastos com o pessoal. Não há orçamento de guerra que canalize 98% das despesas totais da Segurança em gastos correntes, com o pessoal a reclamar 78% deste bolo.

As questões que se colocam são necessariamente outras. Uma das mais imediatas será até que ponto as despesas correntes com o pessoal da defesa e segurança estão catalogadas ao limite. O país vem, por exemplo, de um histórico recente de desordem total no processo de pagamentos dos salários de militares, polícias, professores e pessoal de saúde. Na educação, o processo de cadastramento dos funcionários parece mãos rápido e ainda hoje reportam-se professores fantasmas. Quantos não os haverá nas forças armadas e na polícia? Mas estas é apenas uma das várias perguntas cujas respostas poderão explicar o que se passa com os gastos correntes da defesa e segurança.