Editorial Editorial

Editorial Editorial

23 Oct. 2017

O SENÃO DO DISCURSO

A generalidade da opinião já se antecipou a elogiar o último diagnóstico à Nação de João Lourenço. À semelhança das anteriores aparições públicas, o Presidente da República esteve, de facto, bem na avaliação do estado da Nação, salvo um único reparo. Desta vez, a excepção que manchou o brilhante discurso foi a forma despropositada como desmontou a autoridade do governador do Banco Nacional de Angola (BNA)Despropositada, sobretudo, pelo facto de a exoneração política de Valter Filipe não ter transitado, pelo menos até sexta-feira última, para a exoneração administrativa. Porque, no fundo, foi isso o que aconteceu. Em termos políticos, João Lourenço desarmou completamente o governador do BNA. A autoridade do gestor número um do banco central está profundamente afectada, após a mensagem directa de Lourenço de querer ver pessoas da área a governar o BNA.

Desprovida de autoridade política, a manutenção de Valter Filipe, que, após o discurso do Presidente, se tornou inexplicável, corre o risco de corroer ainda mais a credibilidade do regulador. Especialmente no plano externo. É improvável, por exemplo, que, por esta altura, Valter Filipe tenha condições de sentar-se à mesa para discutir dossiers de fundo com instituições estrangeiras. E mesmo com entidades internas, Filipe não estaria em posição cómoda. Lourenço provocou, portanto, uma embrulhada que urge ultrapassar, porque coloca em estado de suspensão o regulador do sistema financeiro, num contexto impróprio à promoção da desconfiança.

Mas a referência do Presidente aos “profissionais da área” levanta outro problema de interpretação. No contexto histórico da governação do BNA, insinuar que a formação na área jurídica de Valter Filipe é um problema estrutural na gestão do banco central sugere um erro de análise do Presidente.

Salvo Aguinaldo Jaime, que é jurista como Valter Filipe, nas últimas duas décadas, o BNA esteve sempre sob o comando de profissionais da área das economias e finanças. E rigorosamente nenhum desses saiu com fama de grande governador. Porque os raríssimos que saíram com esse rótulo não conseguiram conservá-lo, rapidamente perseguidos por revelações posteriores de consulados do descalabro. Nos média externos como nos internos.

Contas feitas, sendo desejável que o banco central seja governado por profissionais da área, não é verdade que, em termos históricos, isso seja relevante. O diagnóstico duro de Valter Filipe à sua chegada ao BNA, há mais de 20 meses, foi esclarecedor neste sentido. O problema de fundo foi o facto de o banco central nunca ter regulado verdadeiramente nada, pela promiscuidade pornográfica entre regulador, regulados e ‘tutti quanti’. Foi o facto de o banco central ter sido transformado numa verdadeira ‘casa da mãe joana’, aberta até à madrugada, para o regabofe da classe mais refinada de predadores.

Com o seu discurso apontado para a moralização da sociedade, com o combate às práticas que lesam o Estado, o Presidente da República devia ter referido que, em termos históricos, esse era, na verdade, o problema central do BNA. O resto viria necessariamente por arrasto.

As preocupações com a segurança alimentar ganharam importância diferenciada nos últimos seis anos em Angola. O ponto marcante foi a publicação de um Decreto Presidencial que, a partir de 2011, passou a tornar obrigatórias as análises laboratoriais dos produtores alimentares, à entrada do país. O argumento central na alteração legislativa era compreensível. Com o país absolutamente dependente das importações na altura (e em grande medida ainda hoje), fazia sentido o reforço da certificação de que o que entrava era bom para o consumo. Antes de 2011, essas garantias eram significativamente reduzidas na medida em que só se podia confiar na boa-fé dos importadores, dos respectivos fornecedores e na ilusão de que, ao longo do transporte, os produtos não eram afectados com qualquer tipo de contaminantes. Isto, claro, falando dos produtos importados.

Fazendo fé nas declarações que reportamos dos diferentes laboratórios de análises dos produtos alimentares, essa alteração legal produziu sérios efeitos. Há consenso entre os vários operadores de que a situação hoje está mais controlada do que esteve ontem. E esses resultados só foram possíveis porque, além da alteração do quadro legal, houve investimentos de entidades públicas e privadas, que se interpretam comprometidos com a protecção da saúde pública.

Mas, dito isto, do outro lado da moeda, colocam-se inúmeras insuficiências por ultrapassar, já que, na prática, comprometem os avanços verificados, por exemplo, na área dos laboratórios. Como lembram oportunamente os especialistas, a segurança alimentar não se esgota na testificação laboratorial da qualidade dos produtos importados ou dos produzidos localmente. Todas as fases subsequentes até à chegada dos alimentos ao prato do consumidor requerem os mesmos ‘cuidados intensivos’ que, como se sabe, não existem. Até ao momento, o Estado não investiu o mínimo aceitável na fiscalização dos produtos quando já se encontram nas prateleiras das lojas e dos supermercados. O Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (INADEC), por exemplo, apesar de toda a exposição mediática, está muito longe de cumprir o mínimo que se lhe exige. A incapacidade operacional do INADEC é, aliás, reiteradas vezes assumida de forma oficial, razão por que sempre houve quem sugerisse a sua extinção, além de outras justificações de natureza técnica, como o facto de o instituto erradamente estar sob dependência directa do Governo.

A colocação de Angola na cauda da segurança alimentar tem, portanto, ponto em que se pegue, apesar da contestação dos laboratórios que assinalam melhorias nos últimos anos. Enquanto houver lacunas graves em factores-chave do processo de segurança alimentar, dificilmente se poderá contrariar, com convicção, a perspectiva do Mundo sobre a qualidade do que se consome em Angola. E, mais importante ainda, dificilmente poderá assegura-se o conforto aos angolanos de que podem estar descansados com o que consomem. Porque, ainda que se certifique, à partida, que não entra arroz e plástico, não há como afiançar que, ao chegar à prateleira da cantina ou ao prato do consumidor, o peixe não apanhou uma boa dose de coliformes fecais.

João Lourenço cumpriu a promessa de fazer um Governo menos numeroso, mas a generalidade das opiniões avalia que o Presidente da República foi excessivamente tímido. Cinco ministros e três secretários de Estado a menos não é nada que se possa considerar revolucionário, face à composição do último Governo de José Eduardo dos Santos. E, em relação ao sentimento de alguma decepção, o Presidente da República só se pode queixar de si próprio. Foi a tónica concentrada na redução da estrutura do Estado que elevou as expectativas, no sentido de que, desta vez, o Governo seria significativamente reduzido, em comparação ao histórico. Sobre esta matéria, o discurso do Presidente da República foi, a toda a hora, mais do que pragmático. Esperava-se, portanto, por mais, mas, como se manifestou a generalidade dos observadores “a montanha acabou por parir um rato”.

Neste quadro, há uma variável crucial que não pode deixar de ser referida. Ao que se percebe da composição do novo Executivo, João Lourenço teve mais espaço de manobra para escolher os seus homens, do que as opiniões tentaram sugerir à partida. Se, de alguma maneira, Lourenço ficou condicionado, terá sido mais pelo partido do que propriamente por José Eduardo dos Santos, a figura que alegadamente lhe começaria a fazer sombra, a partir da hora da formatação do primeiro Governo. Não há quaisquer sinais de que o ex-Presidente tenha determinado pessoalmente escolhas. Desde logo, porque dos conhecidos ‘homens do Presidente’ – referimo-nos, claro, aos de José Eduardo – praticamente não sobrou nenhum. Até a especulação sobre a manutenção de Hélder Vieira Dias Júnior na Casa de Segurança, pela estreitíssima ligação que se reconhece dele com José Eduardo, acabou por não se confirmar.

Mas ainda bem que assim foi. O novo Presidente merecia toda a margem de manobra para fazer as suas escolhas. Entre inúmeras explicações, porque era eticamente aconselhável e politicamente necessário. O vigor do discurso de mudança na continuidade só ganharia alguma credibilidade, se, aos olhos da opinião pública, o novo Presidente assumisse, de facto, o leme. É a ele afinal a quem se vai pedir contas no fim de tudo. E não haveria nada mais injusto, se Lourenço tivesse de prestar contas sobre o desempenho de uma equipa que não fosse maioritariamente escolhida por si. Politicamente, é, portanto, também mais responsabilizador.

Tão comprometedor como as respostas que se esperam para o facto de Lourenço ter apostado em alguns nomes de uma geração que deveria estar reformada. Não há nenhuma explicação minimamente razoável para que o conjunto da nova estrutura de Lourenço, incluindo a nível provincial, tenha governantes septuagenários. E, em tese, não se consegue perceber de que forma é que uma mudança positiva, ainda que na continuidade, possa ser promovida, sobretudo, por governantes, para os quais a função de ministro e/ou de governador é qualquer coisa que se confunde com uma carreira profissional. A tudo isso, o novo Presidente deverá dar respostas algum dia. E, porque o benefício da dúvida é inevitável, tomara que ele tenha razão.

27 Sep. 2017

ANGOLA AVANTE

O mérito de um país e de uma sociedade residirá, também, na capacidade do seu povo de varrer os pedaços do desentendimento para fora do seu quintal e olhar em frente. Não significando necessariamente passividade, mas deverá prevalecer a ideia de que o que nos aguarda como sociedade é bem mais urgente do que as diferenças que, em determinada altura, nos separou.

Amanhã, Angola terá um novo líder no exercício do mais importante cargo de Estado. João Manuel Lourenço será empossado num contexto em que o bom senso, obviamente, aconselharia que fosse diametralmente diferente. A esta altura, estaria o país todo em júbilo e manifesta esperança de que os grandes desafios que se nos apresentam como país são bem merecedores das nossas preocupações do que qualquer outro tópico, seja de que natureza for.

A profunda crise económico-financeira continua a privar milhões de famílias angolanas, não sendo, por isso, demais notar que esse tópico deverá pontuar no topo das prioridades não apenas do novo Executivo, mas também dos legisladores que, até ao final de Setembro, deverão tomar posse. Com o país ainda dependente do seu quase exclusivo produto de troca, o cenário internacional apresenta-se, neste momento, desfavorável e a projecção dos próximos tempos ainda não anima. O preço do crude regista melhorias tímidas. Até poderá passar da timidez e atrever-se a espreitar a fasquia seguinte, mas não é crível que alcance o valor que permitirá ao país algum desafogo a curto ou médio prazo.

Regra geral, os problemas políticos resultam em distracção e é isso que os angolanos quererão evitar. Pelo contrário, desejarão que a união entre as várias frentes seja a nota tónica no momento em que se espera que a renovação do ciclo político traga nova dinâmica e novas abordagens para a solução gradual de problemas estruturantes e transversais.

Não será certamente fácil arquivar pretextos que se acreditem terem razão de existir, sobretudo se esses decorrerem da vontade de milhares ou mesmo milhões de cidadãos. Mas também de estes milhares ou milhões que se espera o entendimento de que problemas diários de sobrevivência, por um lado, e de progresso, por outro, se sobrepõem a reivindicações políticas decorrentes de um processo em que quase é consenso que teve falhas sim, mas deve agora ser superado e servir de exemplo para que amanhã façamos melhor.

É quase certo que as duas principais forças da oposição não se farão presentes da Praça da República para testemunhar o render da guarda, mas regozijemo-nos porque prevaleceu o bom senso e terão os seus militantes a engrossar outra frente indispensável para o processo democrático que temos vindo a erigir e a consolidar nos últimos 25 anos.

Mas o bom exemplo deverá partir também de quem foi declarado vencedor. O princípio de quem vence governa todos, até quem em si não confiou no momento do voto, será crucial para que se garantam abordagens inclusivas e participativas dos problemas políticos, económicos e sociais, sejam eles de alcance nacional, provincial ou mais restrito. Importará que se atenda o cidadão. Sempre.

Na liderança do Executivo e da Assembleia Nacional, será legítimo esperar do MPLA a garantia de que também da Oposição partem propostas válidas e patrióticas; que também ela tem iniciativas legislativas e de governação que o domínio parlamentar não deve menosprezar. Será precisamente aqui que residirá a capacidade da nova classe dirigente angolana de encarar o essencial para que Angola supere problemas e encontre soluções que permitam ao país mover avante.

18 Sep. 2017

O "PATRIOTA"

Dentro de uma semana e dois dias, José Eduardo dos Santos deixa definitivamente a Cidade Alta, cedendo a casa ao homem que escolheu para o suceder, o general João Lourenço. Para trás ficam 38 anos à frente dos destinos do país, ainda que na maior parte desse tempo tivesse partilhado o poder real sobre o território, com Jonas Savimbi que, com a sua rebelião, manteve erguido por cerca de duas décadas um verdadeiro estado paralelo. No pós 26 de Setembro de 2017, a história recente do país ficará então formal e definitivamente dividida entre o antes e o depois de José Eduardo dos Santos. E ainda que Dos Santos se mantenha por algum tempo a influenciar a agenda política nacional, sobretudo, pelo cargo que conserva a prazo no seu partido, os laboratórios de História dos séculos XX e XI entrarão finalmente em abolição para estudar e catalogar a vida da figura mais relevante da Angola independente.

É precisamente por isso que não se resume a vida e obra de JES numa edição de jornal, muito menos num conjunto de folhas em livro. Própria de lideranças longevas, a interpretação do legado de José Eduardo vai continuar certamente controversa, a multiplicar e a dividir paixões. E, como é natural, no fim de contas, a balança pendera conforme forem mais ou menos intensos o rigor e a objectividade com a sua obra for julgada.

Da nossa parte, e como já o deixámos claro vezes sem conta, não existem equívocos. José Eduardo dos Santos cometeu erros enquanto líder, mas o conjunto da sua obra é incontestavelmente positivo. Mas afirmar isso, na verdade, é insuficiente. Parte dos erros de governação de José Eduardo só podem ser avaliados no contexto de um país que, aceite-se ou não, carrega uma história sem igual no conjunto dos pares africanos que lhe servem de paralelo. Sem essa contextualização e sem essa perspectiva comparativa racional, não é possível compreender o legado de José Eduardo e, por extensão, a história das últimas quatro décadas do próprio país. Até 2002, as decisões de José Eduardo estavam condicionadas ao factor guerra. É um período em o Presidente da República cessante é praticamente impoluto. Nos seis anos subsequentes ao fim guerra, as opções que tomou em termos de reconstrução são amplamente compreensíveis e só podem ser questionadas, se apresentadas alternativas recusadas verdadeiramente viáveis. Até hoje ninguém foi capaz de as mostrar. O período compreensivelmente mais questionável é o que se segue às eleições de 2008 e que se estende até ao ano da sua retirada. Foi, de resto, neste período em que se adensaram as insuficiências graves de governação, pontuadas sobretudo com altos índices de corrupção e má gestão do erário. Mas José Eduardo nunca deu costas a essas críticas. Assumiu-se ele próprio várias vezes como o maior crítico interno do seu partido, em relação ao conjunto das falhas na governação. E, à sua saída voluntária, delegou o poder a um general influente no MPLA que assumiu precisamente o combate aos cancros da governação como prioridade absoluta. Contas feitas, se a história lhe fizer justiça, José Eduardo dos Santos terá de ser efectivamente lembrado, sobretudo, como o patriota pacificador.