Editorial Editorial

Editorial Editorial

06 Feb. 2017

O LEGADO

É impossível sintetizar o legado de José Eduardo dos Santos numa edição de jornal. Ainda que a história se circunscreva no período de liderança do país que chega ao fim, após a tomada de posse do próximo Presidente da República. Afinal, 38 anos não são 38 dias. Afinal, está em causa um homem que governou o país nas suas fases mais complicadas do percurso pós-colonial. Liderou, gerindo tudo e mais alguma coisa que se podia registar na governação de um país africano no século XX e nas primeiras décadas do século XXI. Enfrentou uma rebelião armada com várias tentativas fracassadas de aproximação pelo diálogo; estabeleceu alianças militares externas que o ajudaram a combater o ‘inimigo’ interno; enfrentou e cortou os tentáculos do intervencionismo que ameaçou, várias vezes, a integridade do território; estendeu a influência geopolítica do país no contexto africano; acabou com a guerra e, consequentemente, fez paz, poupando a vida aos adversários; lançou um processo de reconciliação nacional; arrojou as bases para a construção de uma economia moderna e, finalmente, conduz a transição política e geracional do MPLA e do país de forma controlada e serena, mitigando todos os argumentos de contestação dentro do seu partido. Todavia, e porque ‘não há bela sem senão’, enfrenta críticas. Nas matérias político-económicas, destaca-se a incapacidade do controlo da corrupção, que ditou o desvio de recursos públicos incalculáveis e que condicionou a partilha justa dos rendimentos e a transformação mais acelerada do crescimento em desenvolvimento. No campo sociopolítico, sobressai a dificuldade de instauração mais efectiva de alguns direitos civis, nomeadamente os relacionados com a liberdade de expressão. Mas os defensores de José Eduardo dos Santos evocam frequentemente a prolongada guerra que levou a sua liderança a cometer erros de iniciação, próprios de um país a erguer-se das cinzas. Tudo isso faz da história de José Eduardo dos Santos uma história sem paralelo, no conjunto dos registos dos líderes das últimas quatro décadas. Ao decidir abandonar o poder por vontade própria, apesar da legitimidade constitucional e política para um novo mandato, José Eduardo dos Santos reescreve o último capítulo da sua trajectória de liderança de Angola. Essencialmente, porque põe em xeque a integridade das críticas que lhe apontavam um apego desmesurado ao poder, além de desfazer em absoluto a narrativa que lhe atribuía total interesse por uma sucessão dinástica. Mas a escolha de José Eduardo dos Santos para a sua sucessão é ainda mais reveladora sobre a perspectiva com que olha para o país no contexto imediato, mas também a prazo. Ao optar por uma figura afastada dos círculos frequentemente associados à alta corrupção, o líder do MPLA sinaliza que deseja uma viragem do ‘modus operandi’ da classe política afecta à gestão dos recursos do Estado.

É esta viragem que há-de permitir, por exemplo, que o próximo Plano Nacional de Desenvolvimento, descontados os imprevistos conjunturais e assumindo que o MPLA mantenha o poder, tenha possibilidades mais efectivas de sucesso do que este que está em execução e que passa pelo Observatório do VALOR esta semana. E sobre isso vale a pena outra referência, mais uma vez, sobre a opção de agentes do Governo que se furtam de prestar informação útil aos jornais. O que acontecerá necessariamente é que haverá sempre quem fale por eles, ainda que sem conhecimento de causa.

30 Jan. 2017

EM NOME DA BANCA

Depois de toda a espera, alimentada também pelas exigências do Fundo Monetário Internacional, o Governo anunciou finalmente o plano de recapitalização da banca pública. Os números que envolvem a operação são expressivos: mais de 107 mil milhões de kwanzas. Ao câmbio de venda do Banco Nacional de Angola (BNA), da última sexta-feira, 27, estão em causa valores a roçar os 642 milhões de dólares. Sendo uma medida há muito esperada e porque é de recursos públicos que se trata, a questão de fundo que se coloca é simples: o Governo tem de explicar até que ponto foi exaustivo o processo de saneamento a que foram submetidos recentemente os bancos públicos. A resposta a esta questão é fundamental para que os contribuintes possam aferir em que medida os recursos a que todos pertencem estão a ser aplicados em instituições de facto renovadas e ‘limpas’.

Até ao momento, dos três bancos públicos que operam no sistema financeiro, apenas o processo de saneamento do Banco de Poupança e Crédito (BPC) e do Banco de Desenvolvimento de Angola (BDA) foi explicado com algum nível de detalhe. O BDA anunciou níveis de imparidades proibitivos, tendo chegado a admitir que cerca de metade do crédito que concedeu até hoje é praticamente irrecuperável. Qualquer coisa como 400 milhões de dólares acumulados em perdas que colocaram o banco quase a declarar falência. Mas o conselho de administração do banco anunciou medidas na expectativa de recuperação de algum dinheiro, entre as quais incluiu a possibilidade de mover processos contra clientes incumpridores. E fez um pouco mais: em termos futuros, comprometeu-se, sobretudo, com uma gestão mais cuidada na avaliação dos processos de crédito. Mais coisa menos coisa, foi o que se ouviu também da nova administração do BPC. Aqui, além das revelações de que o banco jamais tinha sido submetido a qualquer auditoria externa, conforme admitiu o novo conselho de administração, a nova gestão também se comprometeu com práticas mais convencionais do negócio. Do Banco de Comércio e Indústria (BCI) é que pouco ou nada se sabe sobre o saneamento a que as suas contas terão sido submetidas. Além dos dados dos relatórios e contas dos exercícios dos últimos anos que acumulam sistematicamente perdas avultadas (entre 2012 e 2015 o BCI acumulou perdas globais de 14,9 mil milhões de kwanzas), não houve, até ao momento, qualquer informação oficial sobre planos de realinhamento das práticas de gestão no banco. E se não há razões para quaisquer reajustamentos, apegando-se no facto de que a administração deste banco foi a única que resistiu à ‘dança das cadeiras’ nos últimos dois anos, também não foi explicado.

Postos aqui, a questão de fundo, sobressai novamente. Não está em causa a (re)capitalização das instituições, porque esta não é só necessária, como é vital à sobrevivência do próprio sistema financeiro. O que se exige é a necessária garantia ao contribuinte, ainda que formal, de que, desta vez, estão criadas condições para que, ao virar na esquina, os cofres públicos não voltem a ser sacrificados, em nome de irresponsabilidades.

23 Jan. 2017

‘NOVO NORMAL’

Colocar a racionalização dos gastos públicos entre as prioridades da agenda da governação é uma atitude que deve ser valorizada. E, mais do que isso, deve ser reconhecida e estimulada. É a nossa realidade que assim o determina. É o contexto histórico e presente de gestão dos dinheiros do Estado, repleto de buracos sem fundo, que transforma em notícia especial qualquer sinalização no sentido da moral e da parcimónia nos gastos públicos.

O novo ministro das Finanças dissemina o discurso de num “novo normal”. E fá-lo num tom austero, mas ao mesmo tempo rogador, dirigindo-se, ‘stricto sensu’, aos gestores do erário. É impossível ser-se mais elucidativo. O contraste explícito na mensagem de Archer Mangueira alude o combate ao tal ‘velho normal’ em que, em relação à gestão dos recursos públicos, imperava tudo menos o rigor e a disciplina. A ênfase que se dá agora à necessidade da sobriedade nas despesas do Estado, no discurso oficial, é animadora neste sentido. Não que, a nível do Governo, não se falasse, no passado, sobre a importância de melhorias na execução e controlo dos dinheiros públicos. Ao mais alto nível da governação, vários discursos tocaram consecutivamente na necessidade de uma maior transparência. O que acontece, desta vez, é que a mensagem se vai replicando, com uma preocupação aparentemente mais prática, a nível mais intermédio e de base. Na última semana, o Ministério das Finanças concentrou, em Luanda, gestores públicos para lembrar as razões do imperativo do “novo normal”. As justificações são de domínio comum: o Estado está aflito, já ultrapassou o limite referencial do rácio da dívida pública e não há financiamentos para vários projectos e que, por isso, vão permanecer suspensos.

É secundário destacar o facto de esse “novo normal” ter sido forçado pela circunstância da desvalorização do petróleo nas praças internacionais. E não propriamente pela materialização de um pacto de regime pela transparência e pela boa gestão dos recursos do Estado. A história da humanidade abunda de exemplos de sociedades que se viram obrigadas a mudar do dia para a noite, forçadas por eventos alheios à vontade destas. Foi a derrota na Segunda Guerra Mundial que amainou a ‘cultura e consciência militarizada’ do império nipónico. Há autores que defendem que o ataque surpresa a Pearl Harbor foi determinante para os Estados Unidos embarcarem de forma definitiva na ‘loucura’ armamentista, ao ponto de reclamarem hoje o poderio militar que põe o mundo inteiro de sentido. Dois casos reais do que se pode chamar de crises transformadas em oportunidades.

No nosso caso, se a maior novidade que a crise económica e financeira traz é a correcção da prática como se gere a riqueza pública, não se podia pedir melhor oportunidade. Porque, pela razão de o Estado até agora ser o centro da gravidade de todo o processo económico, melhorar a sua gestão significa criar mais e melhores oportunidades para as empresas e para as famílias. O que interessa, no fundo, é que o ‘novo normal’ seja, de facto, efectivo e não apenas um ‘neologismo’ bonito de se dizer e escrever.

Mais um palpite a ter em conta sobre as verdadeiras ameaças à recuperação da estabilidade económica do país. Mais uma especulação sobre a possibilidade de alguma instabilidade, provocada por divergências políticas a propósito do conjunto do processo eleitoral que se desenrola. Desta vez, os avisos chegam da Economist Intelligence Unit (EIU), a unidade de análise da revista britânica ‘The Economist’. Nada, entretanto, é rigorosamente novo. Nenhum dos alertas identifica qualquer ameaça que não tenha sido ainda denunciada e explicada. Particularmente pelos angolanos que se dedicam, de forma profissional, à observação da realidade económica, política e social, com algum pragmatismo e realismo.

A necessidade de maior transparência na gestão dos recursos do Estado é uma reclamação mais do que recorrente. Não apenas neste e noutros espaços de opinião e de análise. Não apenas entre as vozes que assumem posições mais críticas à governação. No próprio discurso oficial, é cada vez mais presente o reconhecimento de que a melhoria da gestão do erário é uma condição decisiva à estabilidade económica. E social. E política. O combate à corrupção, que a EIU faz questão de voltar a recordar, logicamente que entra nas contas. Catalogada como um cancro que se metastizou pela sociedade e que a corrói continuadamente, a corrupção aparece também no topo das causas que afugentam o investimento privado, nomeadamente o estrangeiro. Logo, um dos graves entraves ao crescimento e ao desenvolvimento. E, ao contrário do que alguns já defenderam de forma pública, no caso de Angola, a grande corrupção supera de longe a pequena corrupção, em matéria de agressão ao progresso. É uma pena que nenhum estudo ainda se tenha atrevido a precisar o impacto da corrupção na obstrução do desenvolvimento. Mas não há dúvidas de que os números serão vergonhosamente assombrosos.

O perigo de instabilidade, decorrente das eleições, apontado pela EIU, já foi objecto de alguma reflexão neste espaço. Ao contrário do que julgam os analistas da EIU, não é crível que um eventual processo de transição no MPLA desencadeie crises de proporções incontroláveis. Aquilo a que chamam de uma possível ‘transição frágil’ é um cenário que, desde já, não se coloca. Nos termos em que de discute a eventual sucessão de José Eduardo dos Santos, não se vislumbram sinais de protestos relevantes ‘intramuros’, caso a mudança se concretize. Pelo menos, não no período posterior imediato. A explicação é simples. É a incontestável força centrípeta de José Eduardo dos Santos dentro do MPLA que garante que a sua vontade consumada, no extremo, seja simplesmente respeitada. A suposição de possíveis protestos na rua, justificáveis pela agenda de austeridade do Governo, também perde cada vez mais força, à medida em que a economia se afastas do ponto mais grave da crise. Se em 2015 e 2016, com todos os apertos que incluíram alterações bruscas nos preços dos combustíveis e perdas expressivas nos rendimentos e no poder de compra, não houve manifestações populares importantes, é menos provável que em 2017 haja protestos significativos na rua por causa da agenda da austeridade. Em todo o caso, o ano mal começou. Há tempo para confirmar ou desfazer todos os receios e medos.

09 Jan. 2017

(IN) CERTEZAS

Com o novo ano a marcar os primeiros passos, apenas um facto pode ser antecipável com certeza matemática no conjunto da agenda útil de 2017: a realização das eleições gerais no segundo semestre. Sem histerias futuristas, só uma catástrofe inimaginável impediria a concretização da disputa eleitoral, já embebida em algum mistério pela (in)decisão de José Eduardo dos Santos de declinar a posição de cabeça de lista do partido no poder. O resto do processo político relevante, ainda que pintado de disputas por opções político-legislativas divergentes, está suficientemente assegurado. O abandono do projecto de alteração da Lei Geral da Eleições, aprovada em 2011, assinalou um raríssimo consenso entre o MPLA e a UNITA que refreou os ânimos de todas as bancadas no Parlamento, não obstante os votos em contrário da CASA-CE e do PRS. As divergências entre poder e oposição, face à distribuição de competências entre o Governo e a Comissão Nacional Eleitoral, no âmbito do registo eleitoral, não devem precipitar também qualquer abanão significativo ao ambiente pré-eleitoral. E não há melhor prova disso do que os apelos sucessivos das principais lideranças na oposição à população adulta para a adesão em massa ao registo eleitoral. Pior incongruência do que conspirar contra o registo eleitoral, nesta fase, seria ouvir um Samakuva ou um Chivukuvuku a elogiar efusivamente a governação de José Eduardo dos Santos, o que é mais do que improvável. Por isso, a partir de hoje, podemos escrever, com segurança, que as condições políticas para as eleições deste ano estão asseguradas. Com mais ou menos insultos, com mais ou menos tensão, o que se seguirá é o natural jogo político, incontornável nas disputas de poder, especialmente em contextos, como o nosso. Contextos em que um dos lados da contenda anseia pelo poder há décadas, como quem, abandonado no deserto, clama por água.

Diferente dos factos mais palpáveis na política, na economia, as incertezas, entretanto, abundam. E, como não podia ser diferente, o comportamento do preço do petróleo coloca-se incontornavelmente como o factor decisivo. Os sinais de recuperação nos últimos dois meses, precipitados pelo acordo entre os membros da OPEP, no sentido do corte na produção em 1,1 milhões de barris por dia, são excessivamente recentes para oferecem garantias estáveis e prolongadas ao longo do ano. Outra incógnita destacável são indiscutivelmente os resultados que se esperam da ‘campanha’ do BNA pelos palcos dos reguladores europeus para a credibilização do sistema financeiro nacional. Se é verdade que a equipa de Valter Filipe espalha entusiasmo e confiança, à volta de uma provável mudança de percepção da banca angolana pelos europeus, não é menos verdadeiro que esse trabalho depende também da capacidade dos operadores angolanos de se adaptarem às regras e de cumprirem exigências. E sobre esse processo de ajustamentos a nível da banca, vitais à credibilização do sistema financeiro, é de que menos se sabe. Não se sabe até que ponto já atingiu a vassoura de Valter Filipe para limpar um sistema que, alguma vez, a própria governação do BNA chamou de “promíscuo”. O que todos sabemos, como certeza, é que uma avaliação positiva dos europeus começaria por ser uma lufada de ar fresco até sobre a crise cambial que continua a triturar o Estado, as empresas e as famílias.