Editorial Editorial

Editorial Editorial

Assim como sucede com os demais sectores nevrálgicos da economia, os desafios essenciais que se colocam à distribuição alimentar, em Angola, já existem identificados. A consultora Deloitte resumiu-os num estudo: melhoria da eficiência e a fiabilidade das cadeias de abastecimento, diminuição da dependência das importações, pela promoção da produção nacional, e qualificação do capital humano.

Vistos no conjunto, é fácil perceber como esses desafios se entrelaçam. E, sobretudo, até que ponto são completamente interdependentes. No plano interno, a fiabilidade das cadeias de abastecimento está condicionada obviamente à elevação da produção nacional a escalas industriais. É uma relação íntima do tipo causa-efeito. Não é possível pensar-se no fornecimento regular das superfícies comerciais, com recurso aos produtos locais, quando a produção nacional estagia em níveis residuais de subsistência. É certo que, pelo meio, se colocam outros actores, como os segmentos de logística e transporte, mas estes sucedem necessariamente à expansão da produção nacional. Contas feitas, a solução ao segundo constrangimento elencado pela Deloitte – a diminuição das importações - fica automaticamente explicado. Mais uma vez, são os níveis de subsistência da produção nacional a condicionar a redução das compras ao exterior que alimentam o comércio. Não será demais reactualizar, com informação oficial, que Angola importa 96% dos produtos que abastecem o comércio interno, onde naturalmente se junta a distribuição alimentar.

Mas, dito isto, não se podem precipitar conclusões que isentem os operadores das superfícies comerciais das obrigações, referidas acima como desafios. Não sendo propriamente um encargo directo seu, o sector da distribuição tem responsabilidades evidentes no conjunto das dificuldades que emperram a produção nacional.

Ao contrário do que diz, por exemplo, António Soares, presidente da empresa que controla os supermercados Mangolê (ver título da página 9), vários observadores consideraram sempre o negócio da distribuição como um dos que mais interessado esteve nas compras ao exterior. Pelo menos até à instalação da crise cambial. Uma das razões é de natureza económica. Os produtos importados, pelo menos até ao agravamento da crise, eram mais baratos. Importar era mais competitivo do que adquirir os produtos locais que, além de poucos e muitas vezes de qualidade questionável, eram mais caros. A outra razão envolve contornos criminais. O negócio da distribuição é, várias vezes, associado aos esquemas que levaram à saída de divisas do país de forma escandalosa. Sobretudo pela prática da sobrefacturação, que facilitava a transferência e a acumulação de valores no exterior para propósitos não declarados. Acredita-se que essas ‘facilidades’ terão contribuído, em parte, para que algum do produto nacional disponível fosse, em alguns casos, preterido em benefício das importações.

O último desafio – a qualificação do capital humano – não pode ser dissociado dos condicionalismos que envolvem a educação e o ensino em Angola. Todavia, não deixa de ser verdade que, a nível da qualificação profissional, as empresas têm palavra decisiva. E as do sector da distribuição não serão uma excepção.

23 Aug. 2016

VER PARA CRER

O Congresso do MPLA terminou com uma crítica contundente de José Eduardo dos Santos à classe empresarial. Ou, pelo menos, à parte dela. O líder dos camaradas questionou a atitude de certos empresários desonestos, por recorrerem a práticas que lesam gravemente os interesses do Estado. Dos homens de negócios que acedem, de forma criminosa, aos recursos públicos, e que, por via disso, se enriquecem, pondo em causa as aspirações da maioria esmagadora dos angolanos.

Nada disso é, na verdade, estranho em José Eduardo dos Santos. Nos últimos anos, aliás, o presidente do MPLA transformou-se simultaneamente num dos principais defensores e críticos da actuação dos segmentos favorecidos dos militantes do partido no poder. E a classe empresarial é, na verdade, o grupo mais privilegiado de todos, senão o único.

Curiosamente, uma das mais recorrentes defesas de José Eduardo ao empresariado está relacionada com as acusações também sistemáticas de sectores críticos sobre o chamado enriquecimento pela acumulação primitiva de capital. A última vez em que José Eduardo dos Santos respondeu a essas críticas, rebateu com o argumento de que os sectores adversos ao regime colocavam em causa os esforços legítimos do Estado de criação de uma classe empresarial nacional robusta e garante da soberania económica.

Colocado agora na posição de crítico, o líder dos camaradas sugere que nem todos os empresários são da mesma espécie. Há os que protegem e há os que lesam os interesses do Estado. Mas esta distinção não é necessariamente o mais importante por ser, no mínimo, óbvia. O problema é como identificar uns dos outros. E, mais do que isso, como premiar os bons e punir os maus. Essa é a preocupação essencial. Sobretudo quando se sabe que a maioria esmagadora dos empresários mais relevantes, onde se juntam malignos e benignos, são governantes ou ex-governantes. Ou altas figuras de outras estruturas do aparelho do Estado. Ou simplesmente membros influentes do partido no poder.

É essa a barreira intransponível que esvazia qualquer ‘discurso de boas intenções’, salvo se acompanhado de sinais claros de mudança.

É o que já dizíamos, na semana passada, no texto de antecipação ao sétimo Congresso MPLA. O debate interno sobre a viabilização da probidade pública é obrigatório no MPLA, mas só terá serventia, se for acompanhado de exemplos práticos de punição aos infractores. Se o compromisso com a ‘tolerância zero’ não for mais um recurso político de distracção dos incautos. A mesma receita aplica-se ao combate à corrupção, à gestão danosa do erário e a todos os outros cancros que inviabilizam o progresso de Angola.

Por agora, a bola foi passada aos empresários do lado mau. Vamos esperar se reagem. Mas também aos órgãos de justiça que têm a responsabilidade de punir os que atentam contra os recursos que a todos pertencem. É uma questão de ver para crer.

15 Aug. 2016

EXPECTATIVAS

O Congresso do MPLA, apesar da conotação que lhe é associado como sendo uma sentada de renovação do mesmo, é sempre um acontecimento digno de expectativas. Há uma explicação relativamente simples. O partido dos camaradas, sob certo ponto de vista, é a instituição mais importante do país. A sua omnipresença em todas as esferas da vida, sobretudo por razões históricas, deu-lhe a ‘prerrogativa’ de condicionar, em certa medida e em última instância, o destino de cada angolano. Pelo sim e pelo não. No bom e no mau sentido. Não há qualquer exagero em admitir-se que até hoje nada ‘respira’, em Angola, sem a presença física ou metafísica do MPLA. As instituições do Estado, a todos os níveis, funcionam sob a inegável batuta do partido dos camaradas. Incluindo aquelas nas quais são vetadas influências partidárias, por limites éticos e constitucionais. Incluindo aquelas que têm, por vocação absoluta, a defesa da republicanidade do Estado.

Toda essa presença faz do Congresso MPLA um evento necessariamente marcante, porque ressuscita expectativas sobre a possibilidade, ainda que remota, de novos caminhos. De novas opções políticas. E de novas soluções para a multiplicidade de cancros que se metastizaram pela política, pela sociedade e pela economia.

O contexto de crise económica e financeira que mergulhou o país num mar de incertezas sobre o futuro imediato coloca ainda uma pressão maior sobre os congressistas do MPLA, na perspectiva da reflexão sobre a necessidade de mudanças práticas. Mudanças, sobretudo, na gestão da coisa pública e os sinais podem ser dados através de atitudes simples. Basta que haja vontade. Basta que a vontade seja imposta.

Tomemos como o exemplo a promiscuidade, sistematicamente questionada, entre os interesses públicos e privados, na gestão dos recursos públicos. Os congressistas do MPLA têm a obrigação moral de reanimar, internamente, a viabilidade da probidade pública. Têm de ter a coragem de dizer que um ministro não pode gerir interesses privados ligados ao sector que dirige. Têm de criticar a postura de governantes a nível local e central que condicionam projectos privados, porque entendem que afrontam os seus projectos pessoais. Têm de questionar o comportamento dos servidores públicos que entram nos gabinetes, pela manha, a pensar em como fazer negócios consigo próprios, aproveitando-se das respectivas posições. E saem pela noite a pensar em como ganhar dinheiro, facilitados pelos cargos que ocupam. Mas não bastará isso. O debate só será consequente e válido se for ao ponto de evoluir para uma espécie de pacto de regime interno, que consagra uma verdadeira punição dos prevaricadores. De resto, é no mínimo atroz que, em plena situação de uma dramática crise, circulem relatos indesmentíveis de que muito ‘boa gente’ viu exactamente no definhar da maioria a oportunidade para juntar os milhões que não faltam nas contas bancárias.

Está relançado o desafio. À porta estão as eleições de 2017 e o tema da gestão da crise será indiscutivelmente o ‘calcanhar de Aquiles’ do MPLA. Um debate destemido e comprometido, com visibilidade fora, seria uma forma de dizer, ou de fingir, que há vontade de mudança.

08 Aug. 2016

SOBRE O PAPAGRO

Há três semanas, mais precisamente na sua edição número 19, de 25 de Julho, o VALOR publicou uma matéria que noticiava a passagem do Programa de Aquisição de Produtos Agro-Pecuários (PAPAGRO) do Ministério do Comércio (MINCO) para o Ministério da Família e Promoção da Mulher. A matéria citava e identificava uma fonte oficial do Comércio, no caso o director do gabinete do ministro, Conceição Gaspar, que falou a este jornal, confirmando a mudança institucional de mãos do conhecido programa, lançado em 2013 pela então ministra Rosa Pacavira. Para que não houvesse espaço para dúvidas e especulação, além de identificar claramente a fonte, o articulista preferiu passar um trecho da breve declaração do responsável do MINCO em discurso directo: “O PAPAGRO passou agora para o Ministério da Família e Promoção da Mulher”. E o texto prosseguia, com outras referências de ‘background’ sobre o titubeante histórico do programa. A rádio ‘LAC’ – Luanda Antena Comercial – retomou oportunamente a matéria, citando o VALOR, e, por consequência, a notícia chegou a um público muito mais vasto.

Pouco depois, o Ministério do Comércio distribuiu à imprensa um comunicado com seis pontos. E, logo no primeiro, anunciava que a informação divulgada pelo VALOR e retomada pela LAC “não corresponde à verdade”. O MINCO aproveitou o comunicado para corrigir que o projecto transferido para a Família e Promoção da Mulher era o Programa Municipal Integrado de Desenvolvimento Rural e Combate à Pobreza (PMIDRCP) e não o PAPAGRO. Acrescentou outras referências, como o facto de o ministro Fiel Constantino nunca ter relatado, em nenhuma das suas intervenções “o insucesso do programa, nem a exoneração de técnicos do Ministério”. O comunicado fecha com o ponto seis, em que o MINCO “reconhece o empenho e vontade por parte dos órgãos em informar, e apela a que o exercício seja feito com a prudência e o zelo que tal exercício exige”.

Tudo estaria bem feito e esclarecido, não fosse o Ministério ter falhado num detalhe de natureza ética. Numa tentativa lamentável de autoprotecção, o MINCO ocultou, de forma tendenciosa, que foi o único responsável pelo facto de a informação ter passado com a imprecisão em causa. O que parece absolutamente óbvio para qualquer pessoa que tenha tomado contacto com a matéria. Foram precisamente “a prudência” e o “zelo”, questionados no comunicado, que levaram o jornalista a apurar a informação junto do MINCO, que acabou por confirmá-la. É, por isso, no mínimo desonesta a omissão deliberada do Ministério em assumir o erro, transferindo-o para os órgãos de informação.

Sobre as declarações do ministro do Comércio, coloca-se também o devido esclarecimento. Não há uma única frase no texto do VALOR que cita o ministro Fiel Constantino a declarar o insucesso do PAPAGRO. O jornal cita fontes não reveladas que atribuem o insucesso do programa a uma alegada falta de coordenação entre o Ministério e o BPC, a entidade financiadora.

Posto isto, é preciso dizer que os jornais também cometem erros. E, sempre que isto sucede, é prática terem a sobriedade de os reconhecer. O VALOR, pelo menos, assume-os. Por honestidade e obrigatoriedade profissionais e pelo respeito que nos merecem os leitores. É exactamente por essas razões que também não assumimos erros alheios.

26 Jul. 2016

DESPEDIMENTOS

Os números são oficiais. E são arrasadores. Nos últimos sete anos, mais de 80 mil trabalhadores perderam o emprego. Cerca de dois terços por responsabilidade directa da crise, como calculam as próprias autoridades. Mas também a curva ascendente nos últimos três anos é esclarecedora. Se, entre 2009 e 2012, os despedimentos ficaram contabilizados em cerca de 23 mil, no mesmo espaço de tempo imediato (entre 2013 e 2016), mais de 59 mil pessoas perderam o emprego. É claro que estão em causa números que pecam por defeito, sem margem de dúvidas. Porque é consensual que as estatísticas oficiais dificilmente se aproximam dos factos. E o grau de dificuldades varia conforme a complexidade da realidade em análise. Ou seja, quanto mais complicado é apurar os factos, mais irrealistas são os números oficiais.

Os despedimentos são precisamente dos casos que muito facilmente escapam do controlo das autoridades. Por factores burocráticos, mas também por razões eventualmente culturais. Para começar, não existe qualquer sistema que obriga as empresas a comunicar os despedimentos às autoridades. Se o processo de despedimento não desencadeia qualquer disputa legal que passe pelos órgãos oficiais ligados ao trabalho, as entidades públicas não têm como aperceber-se dos factos. Porque se o empregador não informa, muito menos ainda o trabalhador o faz. E, em muitos casos, o trabalhador não o faz - não informa as autoridades - mesmo quando os seus direitos são postos em causa pelo empregador. Umas vezes por ignorância, outras por desconfiança e outras ainda por simples passividade. O certo é que muitos processos viciados de despedimento acabam consumados sem qualquer consequência para a parte infractora.

Com a proactividade da inspeccão, também pouco se pode contar. Porque, por muita vontade que eventualmente haja da Inspecção Geral do Trabalho, a verdade é que ‘não se fazem omeletes sem ovos’, como sentencia o velho ditado. 27 inspectores é um número francamente insignificante para responder aos níveis a que atingiu a acção empresarial em Luanda, província que reclama mais de dois terços de toda a actividade económica do país. Augusto Pombal, o inspector geral do trabalho, até considera estar “bem servido” na capital. Mas essa visão oficial facilmente cai por terra, quando se sabe que há empresas implantadas há décadas que jamais viram à porta um inspector do trabalho. E se Luanda, mais sujeita a algum escrutínio por razões óbvias, apresenta esta realidade, é muito fácil imaginar o que será a inspecção do trabalho no resto do país.

Em relação ainda aos números dos despedimentos, há que recordar que as estatísticas oficiais se situam, sobretudo, no mercado de trabalho formal. Se juntarmos a perda de emprego nas actividades informais, os resultados serão indiscutivelmente muito mais assustadores. É, portanto, uma pena que ninguém esteja em condições de atrever-se a lançar números mais fiéis a essa realidade.

Mas, seja como for, as autoridades que têm a responsabilidade de estimular a recuperação do emprego, e a julgar pelo sem número de empresas que ainda vão fechar as portas, convém estarem conscientes de que os 82 mil despedidos contabilizados até agora podem ser apenas a ‘ponta do iceberg’.