Editorial Editorial

Editorial Editorial

A crise pode ser uma oportunidade.” Está escrito e consagrado nos livros. Todos reconhecem e repetem o refrão, de forma fervorosa. Os membros do Governo (ou auxiliares do titular do poder executivo, no rigor técnico) e as autoridades afins, em Angola, não perdem uma oportunidade para o referir, com particular crença. Foi assim aquando da primeira crise do petróleo do século XXI que bateu às portas do país em 2009. Está a ser assim agora, com a segunda crise do petróleo no século XXI que irrompeu as fronteiras de toda a gente que depende do ‘ouro negro’, com particular violência. Mas, como já antecipado, não é apenas dos membros do Governo de quem se ouve, com insistência, a mais conhecida frase dos tempos da desgraça. Os conselhos que chegam de fora, por via de regra, apontam para o mesmo sentido.

Esta semana é o representante residente do Banco Africano de Desenvolvimento que no-lo volta a recordar, de forma comprometida. Para Septime Martin, a crise é uma oportunidade que deve ser aproveitada, especialmente para a diversificação da estrutura económica. Até a este ponto, o da dimensão teórica, a comunicação flui. Toda a gente percebe. Ninguém discorda.

As interferências na comunicação surgem quando se chega ao momento de se evoluir para o outro ponto, para o lado prático. Aqui o discurso torna-se ininteligível, sobretudo o que vem das autoridades.

Prova disso são, por exemplo, as recorrentes queixas de vários investidores nacionais quanto às dificuldades na materialização dos projectos. Muitos dos quais até de dimensão estratégica, quer na substituição das importações pela produção local, quer na criação de empregos em massa.

O acompanhamento da agenda dos investimentos privados permite aferir que o que não falta são intenções de investimentos ou projectos concretos já elaborados. Alguns tantos, aliás, já em fase de execução, mas com obras paralisadas, por longos meses, por impossibilidade ou de aquisição de equipamentos do exterior ou de contratação de mão-de-obra especializada. É isso que torna a retórica da diversificação económica, em tempo de crise, irritante, quase insultuosa aos olhos de quem lida com os problemas reais.

Se é facto que a diversificação económica efectiva passa necessariamente pela dinamização do primeiro e segundo sectores da economia, conforme a agenda do próprio Governo, a pergunta que se coloca necessariamente é como esse processo pode ser iniciado nesta fase, de forma consistente, se vários projectos estratégicos não avançam. É certo que faltam ao Governo respostas terminantes, sobretudo quando se verifica que as fontes alternativas de financiamento estão praticamente bloqueadas. O mercado interno por reconhecida incapacidade de recursos da banca. O mercado externo pelo agravamento das condições de acesso aos financiamentos, pelo ‘outlook’ negativo que se coloca nos próximos tempos, como acabou de apontar a Ficth, ao baixar o ‘rating’ do país para o vulnerável ‘B’.

Lição de moral? Era óptimo que o Governo, mais do que ventilar a diversificação, explicasse, de forma perceptível, como pretende assegurar o processo nos próximos tempos, diante de todo este quadro adverso. Sob pena de continuar a frustrar expectativas de forma absolutamente inconsequente.

26 Sep. 2016

GORDURAS DO ESTADO

Quando a crise do subprime de 2008 atravessou as fronteiras dos Estados Unidos e da Europa e chegou a Angola um ano depois, o tema da reforma do Estado monopolizou as arenas do debate público. A sociedade informada voltou-se contra o Estado e exigiu do Governo medidas práticas que combatessem o despesismo público. O Governo respondeu, timidamente, com referências genéricas de que compreendia a urgência de cortes nos gastos supérfluos. Lançada a promessa oficial, ainda que em soltos discursos de circunstância, gerou-se a expectativa colectiva, mas, mal o petróleo regressou à casa dos 100 dólares por barril em 2011, o prometido deixou de ser devido. Não só o Governo ignorou os alertas para a necessidade da diminuição da estrutura do Estado, como descomprometeu-se com o despesismo, amparando uma gestão descontrolada dos recursos, como, por exemplo, não deixam de mentir os resultados que o sector empresarial público vem reportando nos últimos anos.

O regabofe teria, entretanto, de acabar da pior maneira. O país voltou a mergulhar numa crise sem precedentes, quebrando, de forma violenta, a entrada de receitas ordinárias, desde meados de 2014. O tema ‘esquecido’ voltaria a ser chamado, mas, desta vez, perante circunstâncias mais agravadas. O Governo reage, como sempre, com promessas de reformas, mas a evolução para a dimensão prática continua uma miragem. O Estado mantém-se pesado em toda a sua dimensão. Apesar de todos os apertos que afligem a economia desde há mais de dois anos, não há convicção para reformas de fundo. O esforço para a contenção do Orçamento não vai além de cortes nas despesas de capital. O que é sempre uma má notícia, porque, mesmo se tratando de uma medida contextual, a redução da despesa de investimento acarreta sempre consequências estruturais, especialmente para países subdesenvolvidos, tal é o caso de Angola. Na despesa má – nos custos correntes supérfluos - não se mexe, pelo menos em termos estruturais. Falta vontade e coragem políticas, mas também porque o poder encontrou, na dilatação do Estado, um mecanismo de contenção de conflitos ‘intramuros’, por via da acomodação da elite que o serve. Só assim se explica, por exemplo, a manutenção de ministérios justificados por eventos concretos de outros contextos, como é o caso do Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria. A este propósito, a avaliação do economista Victor Hugo até é mais extensa, elencando, de forma clara, os departamentos ministeriais que até para a percepção comum deveriam ser fundidos ou simplesmente extintos. O Observatório do VALOR, desta semana, explora, entretanto, uma dimensão ainda mais abaixo dos ministérios e mostra o peso relativo dos institutos públicos, dependentes e autónomos, nas contas do Estado. Exemplifica com casos de sobreposições funcionais ou de institutos que actuam em áreas de grande proximidade conceptual e que, só por isso, justificam, à semelhança do que se exige acima, fusões entre uns e a extinção de outros tantos. Enquanto houver resistência em manter-se as gorduras do Estado intactas, nas condições em que se apresentam, qualquer conversa sobre reforma estruturais será ‘para inglês ver’.

19 Sep. 2016

DESCOORDENAÇÃO

Raramente se ouvem referências, em discursos oficiais, sobre a necessidade de uma maior coordenação institucional. No mínimo, trata-se de uma omissão comprometedora, para não dizer inconsequente. A explicação é simples. A existência de descoordenação institucional é excessivamente visível. E todos sabem que se estende da super-estrutura à infra-estrutura da governação. Desde o nível dos departamentos ministeriais à esfera dos sectores de decisão intermédios. Não é por mero acaso que o tema faz parte inclusivamente das conversas de circunstância, nos corredores do poder. Se se tratasse de um drama, diríamos que os exemplos são arrepiantes. Os casos falam por si.

Quem anda por fóruns, conferências e espaços afins já terá assistido a cenas deprimentes de governantes a trocarem acusações entre si por causa de incumprimentos em processos de decisão que requerem mais de uma assinatura. Normalmente a troca de ‘sopapos’ acontece de forma indirecta. Mas há também registos em que os recados são distribuídos às claras, com contornos incompreensíveis. Numa recente conferência de iniciativa pública, em Luanda, uma ministra que coordena um dos sectores produtivos mandou recados a um dos seus homólogos, através de um responsável intermédio deste último. A governante usou palavras precisas, como “vá dizer” isso e aquilo ao ministro, perante a assistência atónita. Em causa estavam processos, ou seja iniciativas de investimento, que teriam transitado do primeiro ministério e acabaram estagnados no segundo, à espera da necessária ratificação. Nos círculos institucionais, correm outras histórias inusitadas que mostram o nível de descoordenação das estruturas de governação. Há relatos de governadores que se deslocam a Luanda para ‘suplicar’ transferências, no âmbito das verbas que são cabimentadas às províncias no Orçamento Geral do Estado. Com o agravante de, muitas vezes, conforme os relatos, os governadores terem de ‘pedinchar’ a inferiores hierárquicos. Há queixas de várias instituições públicas que trabalham com dados estatísticos e que estão impossibilitadas de realizar o seu trabalho, porque estão amarradas a outros órgãos públicos que se recusam a conceder informação. Que o digam, por exemplo, os técnicos do Instituto Nacional de Estatística. Mas há casos em que a descoordenação evolui para a confusão institucional. Como nas conhecidas situações em que dois ou mais ministérios ou instituições diferentes aparecem a executar programas com a mesma vocação, cada um virado para si mesmo. Acontece muito, por exemplo, nos programas de combate à pobreza. Ou nos casos em que uma multiplicidade de órgãos, ligados a diferentes ministérios, aparece a controlar uma mesma operação, de forma desconectada. É o que ocorre, por exemplo, no processo de fiscalização das farmácias em que intervêm pelo menos quatro ministérios descoordenados, conforme exemplificado na bienal do ‘Direito na Saúde’, realizada na última semana em Luanda.

Estes e os outros casos, que não cabem aqui, são exemplos de descoordenação institucional à vista desnuda. O que ninguém sabe, infelizmente, é o peso desta desorganização nas contas do Estado. Só uma coisa é certa: são rios de recursos e de energia que se esgotam de forma, inexplicavelmente, chocante e que nos embrulham a todos em infindáveis novelos burocráticos. A receita, claro, é necessariamente a marcha no sentido inverso. E o primeiro passo, ainda que doa, deve ser o reconhecimento público do problema.

12 Sep. 2016

ESCLARECIMENTOS

Na última sexta-feira, 2 de Setembro, o VALOR foi alvo de um desmentido da Sonangol, a propósito de uma matéria publicada na edição número 23, de 22 de Agosto. O ortigo, objecto do comunicado da petrolífera pública, reportava uma dívida de cerca de 1,2 mil milhões de dólares da empresa estatal junto do Banco Millennium Atlântico, através da Sonangol Holdings, a sua gestora de participações. No comunicado, repetido por alguma imprensa, a petrolífera optou deliberadamente por ocultar o nome do órgão que divulgou a matéria. Por isso, e antes de mais nada, voltamos a esclarecer. Foi o jornal Valor Económico que trouxe a informação à estampa. Mas vale a pena acrescentar outro esclarecimento. O jornal só não pôde reagir no seu último número, de 5 de Setembro, porque, infelizmente, a edição impressa já estava fechada no momento em que os portais começaram a divulgar o comunicado da petrolífera pública. Claro que fica, automática e paradoxalmente, explicado que ao jornal que divulgou a matéria contestada não foi enviado o comunicado.

Desmanchemos agora os factos. Sugerir que o jornal teria simplesmente inventado os números, para embarcar na especulação gratuita, é, no mínimo, surreal, na ausência de outro adjecivo. Rotular o jornal, com epítetos de falta de rigor, é, pelo menos, grosseria, para não dizer irresponsabilidade.

Está tudo mais do que claro. Como refere a matéria do dia 22 de Agosto e como reitera o texto desta edição (na página 17), o jornal teve acesso a relatórios do banco. Está na posse desses documentos. Trata-se de documentação oficial, com a assinatura de vários responsáveis da instituição bancária. Mas, ainda assim e precisamente pelo rigor que por simples soberba não nos é reconhecido, contactámos a Sonangol, antes de divulgar a notícia. Demos a conhecer que tínhamos os dados e que precisávamos dos comentários da petrolífera pública. Em troca, não nos chegou qualquer resposta. O porquê só a própria Sonangol pode esclarecer. Mas não foi apenas isso. Outras instituições interessadas na matéritambém foram contactadas. A atitude foi a mesma. Escusaram-se, no todo, a comentar os factos. Por razões, mais uma vez, que não nos cabe explicar.

Há mais. O rigor que, por mera altivez, não nos é admitido é o mesmo que nos levou a olhar para o manancial de informação na nossa posse e, através de critérios editoriais, divulgar apenas o que julgamos de interesse público. E sobre este ponto específico – o do interesse público – declinamos qualquer debate com qualquer um em quem não reconhecemos o mérito da causa. Incluindo com alguns congéneres que manipulam o espaço da filosofia editorial, para confundir o exercício da intermediação jornalística com a inebriação elitista. Para o nosso entendimento, quaisquer factos relevantes que digam respeito à saúde ou aos negócios de qualquer instituição com pertinência económica, política ou social farão sempre parte da esfera do interesse público. Não interessa que a instituição seja pública ou privada. E isto não quer dizer outra coisa, senão exercício do jornalismo. Apenas isso. É assim que se faz. Somos um jornal de uma única causa. A causa do jornalismo. O resto é imaginação de cada um.

05 Sep. 2016

SOBRE AS RIQUEZAS

A acumulação de riqueza aumentou nos últimos dez anos em Angola, sem qualquer paralelo. Calcula a consultora britânica Knight Frank que, entre 2005 e 2015, o número de angolanos, com pelo menos um milhão de dólares, cresceu 318%, saindo de 1.600 para 6.400 pessoas.

A fiabilidade dos números, desde já, não é necessariamente relevante. Para todos os efeitos, a consultora faz análises especializadas, o que significa que tem informação diferenciada. Dedica-se à investigação da acumulação e distribuição dos grandes rendimentos pelo mundo, pelo que só é possível confrontá-la com argumentos que se sustentem também em estudos especializados.

Por isso, partamos para o que mais interessa. Desde já, trata-se de uma boa notícia. Pelo simples facto de ser óptimo que haja também angolanos ricos e muito ricos. Em teoria, hoje as economias só se tornam verdadeiramente consolidadas, se alicerçadas também em segmentos da sociedade capazes de criar riqueza. O momento que vivemos hoje será o mais clarificador. Quando o país se abeirou da falência, um dos gritos de socorro mais audíveis foi claramente dirigido aos detentores de grandes recursos para que investissem mais, em auxílio do Estado. E, apesar do contexto de dificuldades, o que se percebe em termos práticos é exactamente isso. Há casos indesmentíveis de investidores angolanos que não desistem. E outros tantos que decidiram, justamente nesta fase, anunciar a implementação de vários projectos, quando, em sentido contrário, se verifica um resfriamento mais agressivo do capital estrangeiro. Não é apenas o legítimo sentido de oportunidade que estará aqui em jogo. Há também laivos de patriotismo que devem ser reconhecidos. Só isso é suficiente para se reafirmar o quão é importante para o país que tenhamos angolanos ricos.

Mas, dito isto, há o outro lado da moeda que não pode ser ignorado. Com os vícios crónicos de corrupção e dilapidação do erário, através de múltiplos esquemas, torna-se quase impossível distinguir os que se tornaram verdadeiramente ricos por esforço próprio. É esta dificuldade que potencia, na verdade, os sentimentos de contestação e abominação contra esse crescimento galopante de ricos. Com o agravante, apesar de compreensível, de esta subida meteórica das fortunas ter-se registado justamente no período em que o país mais prosperou. Por outras palavras, se é lógico que o crescimento económico que Angola registou, depois de 2002, propiciou negócios que, em condições normais, levariam à ‘fabricação’ de muitos ricos, não é menos verdade que foi precisamente essa situação que favoreceu, na maioria dos casos, a acumulação de riqueza de forma criminosa. A descomplexização das fortunas angolanas encalha neste ponto. Uma solução realista seria a instauração prática e definitiva da tolerância zero, da probidade pública. No fundo, da cultura da responsabilização que, até provas em contrário, continua ausente. O partido no poder voltou a assumir o compromisso no último Congresso. Mais uma vez, é uma questão de ver para crer.