momentos conturbados no ‘casamento por conveniência’
ANÁLISE. A iminente entrada em cena de empresas chinesas nos concursos públicos nacionais, anunciada e confirmada por fontes oficiais de ambos os lados, revela um período menos simpático nas relações sino-angolanas e fez emergir mais alguns sinais de preocupação entre outros parceiros económicos e comerciais ocidentais de Angola.
Importa perceber o contexto, além deste episódio aparentemente inócuo, que não mereceu muita atenção no espaço público.
A lua-de-mel das relações já expirou faz tempo pressionada, por um lado, pelo abrandamento da economia chinesa e, por outro, pela reestruturação da dívida de Angola à China, face à drástica redução das reservas cambiais.
Comecemos pelo princípio, a entrada dos chineses nos concursos públicos. A questão emergiu depois de ter sido divulgado, no início do mês de Fevereiro, um comunicado da Secção Económica e Comercial da Embaixada da China revelando ter recebido uma carta do Ministério da Saúde (Minsa) a convidar as empresas chinesas a registarem-se no Portal da Contratação Pública de Angola, para concorrerem para o fornecimento de medicamentos e equipamento médico, depois de aquele ter lançado um concurso público para a aquisição de medicamentos e equipamento médico que devia expirar a 2 de Março.
Importa reter um desenvolvimento recente que ocorreu com a entrada em vigor da nova lei dos contratos públicos, a 23 de Janeiro último, em que se pode destacar, entre as novidades, o já polémico procedimento de contratação emergencial e de um procedimento electrónico pragmático, sob pretexto da agilização da contracção de bens e serviços no contexto da pandemia.
A nova lei, além de incluir novos procedimentos de contratação pública, traduz a simplificação e criação de um novo regime sancionatório, que agora vai de um espectro de 550 a 3.300 dólares para pessoa singulares e de 2.700 a 16.500 dólares para empresas.
Os processos de contratação pública em Angola foram invariavelmente acompanhados de uma narrativa de corrupção e falta de transparência que o Presidente João Lourenço tentou dirimir ou minimizar com diversas medidas, entre as quais a criação, em Abril de 2018, de uma Unidade de Contratação Publica (UCP), concentrando nesse serviço todos os processos de contratação, como objectivo declarado conceder “rigor e profissionalismo” para obstaculizar a corrupção e a fraude, visando alcançar a melhoria da “qualidade da despesa pública”.
Um desiderato que parece ainda muito longe de ser alcançado. Basta recordar que apesar de o director do SNCPE (Serviço Nacional de Contratação Pública), Saydi Fernandes, ter tornado público, em Dezembro de 2020, que Angola tinha realizado 20 aquisições de bens e serviços em 2018, num valor de 309 mil milhões de kwanzas (quase 400 milhões de dólares), tendo, alegadamente, permitido “poupar” 99,75 mil milhões de kwanzas (cerca de 130 milhões de dólares), esses números são absolutamente insignificantes, face à dimensão da corrupção que o próprio Presidente tinha admitido existir, ainda no ano passado, quando afirmara, numa entrevista ao ‘Wall Street Journal’, que o Estado angolano tinha sido lesado em 24 mil milhões de dólares, um valor superior à dívida de Angola ao principal credor, a China.
Estima-se que 107 dos 135 procedimentos abertos, entre Janeiro de 2018 e Agosto de 2020, tenham sido realizados por ajuste directo, ou seja contratação simplificada, calculando-se que tenham sido adjudicadas obras no valor total de 2,5 mil milhões de dólares. Semelhante valor adensa as preocupações do frágil tecido empresarial nacional fortemente debilitado pelo impacto da pandemia da covid-19 e não só.
Desde o final de 2020 que já se adivinha, apesar da relutância do lado chinês, que a única saída seria conceder uma certa folga na resolução da dívida de Angola, algo que aconteceu no início deste ano, tendo os principais credores de Angola, designadamente os bancos chineses BDC (Banco de Desenvolvimento da china) e BICC (Banco Industrial e Comercial da China) anuído apenas ao pagamento dos juros da mesma, postergando o pagamento das amortizações para um horizonte de sete e três anos.
À medida que escasseiam as reservas internacionais de divisas, Angola está cada vez mais pressionada a reestruturar a dívida, pelo que a folga chinesa significa apenas um alívio momentâneo num momento em que o aumento da despesa pública em mais de 20% vai trazer maior pressão, atirando para as calendas gregas o proclamado desiderato de diversificação da economia.
O default (incumprimento) zambiano colocou Angola na difícil posição de país africano mais exposto entre os credores, tendo a Redd Intelligence de Londres confirmado que três quartos dos mais de 20 mil milhões de dólares de dívida angolana à China foram caucionados pelo China Development Bank (Banco de Desenvolvimento da China, CDB na sigla inglesa).
As reservas internacionais líquidas situavam-se em 8.680,43 milhões de dólares, o equivalente a 12,29 meses de importação a 1 de Marco de 2021, segundo o BNA, números mais ou menos constantes desde o início do ano. As reservas brutas estavam a 15.282,14 milhões de dólares, equivalentes a 12,29 meses de importações no mesmo período. O valor das RIL, muito abaixo do pico dos 34 mil milhões de dólares, registado em 2013, dão a dimensão da extensão da crise não obstante o recente optimismo de fontes oficiais.
Mas o modelo de financiamento chinês, suportado por garantias baseadas no petróleo, não significa, contrariamente a percepção comum, que Angola obtenha dinheiro vivo, pois os fundos são utilizados pelas empresas públicas chinesas para o desenvolvimento de projectos em Angola.
Uma pesquisa realizada por um grupo de investigadores da Universidade de Bucareste de Estudos económicos (Liviu Begu, Maria Vasilescu, Larisa Stanila e Rozana Clodnitchi) em 2018 sobre o Modelo de Investimento China-Angola estima que, desde 2010, quase metade das exportações de petróleo tiveram como destino a China e, tendo em consideração que os pagamentos dos empréstimos chineses eram apoiados no preço do petróleo do momento, isso conduzia automaticamente ao aumento das exportações quando a cotação do barril estava em baixa. Sequer no domínio do emprego os acordos com a China foram favoráveis, na medida em que as companhias chinesas introduziram em Angola os próprios trabalhadores.
Cerca de 260 mil chineses tinham trabalhado em Angola até meados de 2019, ocasião em que o director-adjunto do Departamento dos Assuntos Africanos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Li Chong, confirmou estes números na abertura de uma conferência internacional da comunidade China-África sobre a ‘Nova Rota da Seda e a Cooperação’, que decorreu em Pequim de 7 a 21 de Maio de 2019, embora se acredite numa redução significativa destes números em consequência do agravamento da crise económico-financeira, primeiro, e depois da pandemia da covid-19. Não são conhecidos números oficiais exactos actualmente.
Parece difícil que Angola possa fugir ao ‘casamento de conveniência’ com parceiro chinês que por agora atravessa ‘marés turbulentas’, num momento em que se acentua o declínio da produção petrolífera nacional que caiu mais de um terço desde 2015, quando as grandes companhias decidiram diminuir os investimentos, face à queda acentuada de preços do barril do bruto.
A produção angolana caiu no seu nível mais baixo em 15 anos, situando-se abaixo dos 1.2 milhões b/d desde Novembro, inferior aos níveis da Líbia sob guerra civil em Dezembro passado, confere a Bloomberg. Com o preço do barril em baixa, nos últimos anos as grandes companhias deixaram de considerar atractivos os investimentos.
Angola tem tentado abrandar o declínio da produção em diversas frentes, incluindo a licitação de novos blocos e a reestruturação da Sonangol, tendo o próprio ministro dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás, Diamantino Azevedo, reconhecido os erros da estatal, assumindo que deveriam ter sido feitos maiores investimentos nas operações, refinação e capacidades. Nas actuais circunstâncias, a meta média de 1.22 milhões b/d estabelecida pelo Governo ainda está num nível modesto.
A China respondia por 70% das exportações ao final de três trimestres de 2020 (i.e., até Setembro) e era o segundo maior fornecedor, segundo o BNA, que colocava a Índia como o segundo destino de exportação do bruto com uma quota de 6.6%, seguido de outros destinos tais como Tailândia (5.2%), Singapura (2.6%) e França (2.24%).
Portugal surge como principal fornecedor no mesmo período com 14.4% do total das importações angolanas, logo seguido da China, com 13.8%. Importa salientar que as importações dos principais parceiros comerciais experimentaram um declínio no período homólogo, designadamente de 26.6% de Portugal e 33.6% da China.
Ainda segundo dados do banco central angolano, a actividade económica permaneceu fraca em 2020, apontando para uma queda do PIB de pelo menos 4%, de ano a ano. Uma evolução previsível tomando em linha de conta o persistente declínio da produção petrolífera e baixa do preço do bruto, aliado ao impacto negativo da covid-19 nos sectores não-petrolíferos.
A agência Eaglestone Securities realçou recentemente que “Angola continua a enfrentar riscos significativos devido à persistente dependência do sector petrolífero, elevados níveis de dívida e a incerteza do ambiente económico global”. Nem a contenção orçamental, nem a gestão da dívida externa, nem reformas estruturais efectivas parecem concretizar-se de modo a mitigar os riscos actuais para encontrar uma saída de cinco anos sucessivos de recessão.
Relativamente às condições laborais, um relatório do Ceic/Ucan sobre as relações sino-angolanas de Agosto de 2019 refere que “as condições laborais dos trabalhadores angolanos nas empresas chinesas, em geral as de construção civil, têm sido alvo de muitas críticas por vários sectores da sociedade”. Um estudo recente citado pelo Ceic, sobre Condições de Emprego em Angola, feito pelos investigadores Carlos Oya e Fernandes Wanda revela que “as práticas nas empresas chinesas mudaram muito nos últimos 10 anos” e as mesmas estão a empregar mais mão-de-obra local do que nos anos anteriores.
Segundo o Ceic, “o estudo ainda mostra que, em comparação às empresas angolanas e outras ocidentais que operam nos sectores de construção civil e na indústria de materiais de construção, as empresas chinesas são as que mais empregam pessoal nacional não qualificado, que, em geral, são mais jovens e relativamente mais pobres, muitos dos quais provindos do centro sul do país e encontram o primeiro emprego nestas empresas”.
Quanto à remuneração, o estudo supracitado revelou que as empresas chinesas pagam, em média, 24.993 kwanzas por mês ao pessoal não qualificado, enquanto as empresas nacionais e as ocidentais pagam relativamente mais, ou seja, 37.181 kwanzas. Para o pessoal semi-qualificado, a remuneração média mensal paga é quase a mesma entre as empresas chinesas e as outras empresas, 63.971 kwanzas nas chinesas e 62.671 kwanzas nas outras. (Oya e Wanda 2019, Condições de Emprego em Angola, página 40).
O corrente ano, tanto em Angola como a escala continental [é] apresenta[do] um conjunto de desafios nas relações sino-africanas marcadas, sobretudo, pela emergência e impacto da covid-19 desde o ano passado. Claramente, antecipa-se já uma redução dos empréstimos chineses, numa perspectiva mais restritiva e selectiva em linha com uma maior gestão de riscos.
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